fernando marques

Domingos Martins - ES

Fragmento Teatral

Atitide vai se afastando dos dois, como para sair de cena – mas não sai. À medida que caminha, Arabesque vai se despedindo do amigo, dirigindo-se a ele como se ele estivesse cada vez mais distante, até perdê-lo de vista. Mas ele permanece em cena todo o tempo, talvez menos iluminado, em outro plano, e sempre caminhando – a mímica do caminhar, com cansaço crescente.

ARABESQUE – Boa sorte, Atitide...

VENDEIRA – Que o diabo o carregue!

ARABESQUE – Com que, então, a senhora não só leu Cervantes, como também Dante!

VENDEIRA – Não, eu não li, já disse que não li. Meu marido lia.

ARABESQUE – Ah, é verdade. Mas dá no mesmo. E, me diga, qual dos dois prefere?

VENDEIRA – Acho tudo muito triste.

ARABESQUE – Acho tudo muito bonito. E o que mais a senhora leu?

VENDEIRA – Bula de remédio, manual de instrução, placa de trânsito. Já não disse que quem lia era meu marido?!

ARABESQUE – Ah, é verdade. Mas dá no mesmo. E seu marido?

VENDEIRA – Lia.

ARABESQUE – Sim, sei. Mas o que foi feito dele? Ele... morreu?

VENDEIRA – Queira Deus que tenha morrido e esteja esperando pelo seu amigo.

ARABESQUE – No inferno?

VENDEIRA – No nono círculo, que é onde ficam os traidores.

ARABESQUE – Mas então a senhora não sabe se ele morreu.

VENDEIRA – Saiu para comprar cigarros no reino muito distante mais próximo daqui.

ARABESQUE – Mas a senhora não vende cigarros aí?

VENDEIRA – Ele disse que não tinha a marca dele.

ARABESQUE – Ah... Talvez ele volte, não? Um dia...

VENDEIRA – Melhor ele ficar longe.

ARABESQUE – Sei...

VENDEIRA – Ele também, provavelmente, sabe.

ARABESQUE – Entendo... A senhora não sente saudades?

VENDEIRA – Do traste?

ARABESQUE – É... do seu marido...

VENDEIRA – Sinto saudades do tempo em que não havia as estradas novas, em que as pessoas passavam por aqui. E compravam.

ARABESQUE – É assim comigo também. Saudades do circo, eu quero dizer.

VENDEIRA – Vocês eram mesmo de um circo?

ARABESQUE – Ah, sim. Um grande circo.

VENDEIRA – Olhando para vocês é muito, muito difícil acreditar que trabalhavam num grande circo.

ARABESQUE – A senhora não me leve a mal, mas olhando aí pra senhora e seu estabelecimento, também não é fácil acreditar que já foi grande coisa quando a estrada trazia muita gente. Aliás, olhando para a estrada, é difícil até acreditar que ela já tenha trazido gente.

VENDEIRA – Está certo. Está certo. Mas eu tenho aí a minha venda e o letreiro como provas. E você? O que prova o seu passado glorioso?

Arabesque faz um número de mágica, fazendo um lenço desaparecer e reaparecer em
seguida.

ARABESQUE – Vejam, senhoras e senhores... Ou só a senhora mesmo, não tem problema... Como eu faço este rubro lenço desaparecer entre meus dedos para, em seguida,
aparecer novamente!

Quando termina, a Vendeira faz o mesmo número – executa-o, entretanto, com desdém.

VENDEIRA – Vejam, senhoras e senhores... Ou só o senhor mesmo, não tem problema... Como eu faço este farrapo desaparecer entre meus dedos para, em seguida, aparecer novamente, fazendo o seu truque ir pro beleléu.

ARABESQUE – Puxa, mas a senhora, hein?... A senhora é mesmo surpreendente.

VENDEIRA – É com esse truque chinfrim que você quer me provar que fazia parte de um grande circo?

ARABESQUE – Não é bem assim... O número é bom. E a senhora é boa também, hein? Quero dizer, falta um certo élan, mas é boa sim...

VENDEIRA – O que foi, então, que aconteceu com o circo?

ARABESQUE – Eu não sei...

VENDEIRA – Ah, bom. O senhor, maltrapilho, canastrão, com esse truquezinho, quer me convencer de que, junto com seu amigo mal educado, fazia parte de um circo, mas não sabe sequer o que houve com ele.

ARABESQUE – Não! Quero dizer, eu sei...

VENDEIRA – Sabe ou não sabe?

ARABESQUE – Eu sei, só é difícil de entender... A senhora, por exemplo, sabe o que foi que aconteceu com esta estrada para que ninguém mais queira passar por ela e a senhora não tenha mais clientes?

VENDEIRA – Perfeitamente! Construíram estradas novas. Desde que fizeram isso, ninguém mais passa por aqui.

ARABESQUE – Sim, disso eu sei. Com o circo, a mesma coisa. Surgiram coisas novas, as pessoas não iam mais ao circo. Começaram a preferir outras coisas. Aí, o circo foi minguando... Aí, teve uma hora que o Respeitável, que era o dono, disse que não dava mais. E aí, cada um seguiu um caminho e depois...

VENDEIRA – Depois, eu sei. O senhor se tornou essa criatura miserável e veio pedir na minha porta.

ARABESQUE – Pois é. Foi isso. Mas eu não entendo.

VENDEIRA – Mas será possível?! Não entende o quê? Obsolescemos, não despertamos mais interesse, ninguém nos quer mais. Que parte o senhor não entende?

ARABESQUE – Isso. Quero dizer. Tudo bem, fizeram estradas novas. E daí?

VENDEIRA – Como assim, e daí?

ARABESQUE – Assim: e daí? Esta estrada não deixou de existir, deixou?

VENDEIRA – Não... Não.

ARABESQUE – Eu passei pela estrada nova, sabe? Um inferno!

VENDEIRA – Eu sei, já fui até lá olhar.

ARABESQUE – Pois é, um inferno. Um monte de carros passando numa velocidade que quase não se os vê.

VENDEIRA – Vai ver é por isso que preferem lá. Porque correm. Não param.

ARABESQUE – O que é ótimo. Quando se está com pressa. Mas quando não há pressa...

VENDEIRA – Eles sempre têm pressa.

ARABESQUE – Disso, eu sei. Mas é aí que eu não entendo: o porquê da pressa o tempo todo. Quero dizer: às vezes é normal ter pressa. Não é normal ter pressa o tempo todo, mesmo quando não há porque se apressar. A senhora entende?

VENDEIRA – Entendo... Acho que entendo...

ARABESQUE – Faça, então, a gentileza de me explicar?

VENDEIRA – Não, o que eu estou dizendo é que entendi o que você disse.

ARABESQUE – Ah! (Rindo). Entendi! Eu perguntei se a senhora tinha entendido e a senhora respondeu que sim, então eu pensei que a senhora tinha entendido o que eu não entendo, mas a senhora apenas entendeu o que eu tinha dito, e não entendeu o que eu também não entendo!

(Fragmento de O grande circo ínfimo)

Fernando Marques é dramaturgo, diretor e ator. Integrante do Grupo Z.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Fernando Marques é certamente um dos nomes mais significativos das artes cênicas no Espírito Santo, não apenas pela longevidade de seu trabalho, mas pela amplitude de ofícios a que se dedica, fortalecendo, continuamente, o cenário artístico capixaba. Marques é dramaturgo, ator, diretor, professor de dramaturgia (promovendo amiúde oficinas, debates e formações no campo da escrita teatral) e produtor cultural do Grupo Z, desde os seus primórdios, no final da década de 1990. O autor é prolífico, tendo já escrito mais de vinte textos teatrais, que, em termos estéticos, apontam para diferentes humores, estilos, formatos e concepções. Há, porém, um fundamental denominador comum que aproxima grande parte de suas criações sem, claro, homogeneizá-las. Fernando Marques elabora suas peças em íntimo diálogo com os atores, com seus corpos e, enfim, com a contextura do palco. A palavra proposta pelo dramaturgo é, nas salas de ensaio, recriada, revista, de modo que a sua tessitura dramatúrgica não se dá, em geral, isoladamente. Neste sentido, o seu percurso se confunde com a própria biografia do Grupo Z, do qual é membro fundador. Foi neste coletivo que Marques consolidou, gradualmente, a sua poética. 

Fundado em Vitória, capital do Espírito Santo, o Grupo Z se reuniu, inicialmente, em 1996, almejando projetar-se como um coletivo teatral pautado pela experimentação e pela constante pesquisa de linguagem. O desempenho inaugural do grupo se deu em 1997, encenando O maior espetáculo da terra, aglutinando, na dramaturgia e na direção de Fernando Marques, princípios das teatralidades de rua e das artes circenses. A encenação em espaços urbanos, para além da convencional sala de espetáculos, é traço recorrente na história do grupo, como nas peças Commedia, um experimento cênico delineado a partir da commedia dell’arte, e Joanas, cujo texto decupa a insondável protagonista feminina de Gota d’água, concebida por Chico Buarque e Paulo Pontes. Marques assina a dramaturgia dos espetáculos sobreditos. A investigação acerca da corporeidade do intérprete é uma das bases criativas do Grupo Z. Os trânsitos entre teatro e dança, a busca por uma gestualidade plástica e por qualidades de movimento apuradas são marcas de muitos espetáculos do grupo. Carla Van Den Bergen, cofundadora do coletivo, oriunda, profissionalmente, do universo da dança, realiza a preparação corporal e, em muitos casos, a coreografia e o desenho de cena das montagens, como é o caso exemplar do monólogo Tarde demais, também escrito por Marques em 2003. A preocupação do grupo para com a espacialidade cênica a partir da fisicalidade dos atores e a invenção de uma dramaturgia própria/autoral, isto é, um texto que incorpore os anseios, as demandas e as urgências coletivas do elenco, são incorporadas na escrita de Fernando Marques. Na metodologia do coletivo, a criação textual e os exercícios improvisacionais caminham juntos. O Grupo Z, ao lado da Repertório Artes Cênicas e Cia., e dos grupos Rerigtiba, Folgazões, Vira lata, Tarahumaras, para ficarmos somente com alguns nomes, alimenta o contemporâneo teatro capixaba e o apresenta fora das fronteiras do Espírito Santo. 

Entre suas obras, destaca-se O grande circo ínfimo, com o qual o Grupo Z circulou por diversos estados do país no âmbito do projeto Palco Giratório, sendo esta a primeira participação de um grupo teatral capixaba nesta relevante iniciativa de fomento e difusão nacional das artes cênicas. Estreada em 2008, a peça nos apresenta a agrura, o vazio e a melancolia de artistas circenses chafurdados no ostracismo, aferrados a longínquas e belas recordações dos tempos passados, nos quais a vitalidade do picadeiro reluzia inconteste. A penúria financeira e, por assim dizer, existencial discutem, direta e indiretamente, o papel social das manifestações artísticas em uma sociedade violentamente capitalista, apática, regida pela mercadoria e pela plutocracia. O diálogo de base realista é atravessado por planos e situações oníricas, poéticas, em que os velhos tempos de intensa atividade do circo nutrem de esperança os desencantados do presente. Ainda que apresente um fundo romanticamente idealista ou saudosista, O grande circo ínfimo aposta na singeleza do encontro e da fantasia como possibilidades para humanizarmos o mundo. 

Entre as investigações artísticas de Fernando Marques estão as microrrelações afetivas, os encontros e desencontros de nossas vidas, as míseras perdas e vitórias emocionais que se sedimentam no cotidiano. Exemplos dessa abordagem, a princípio, mais intimista são os textos teatrais Vizinhos e Pentagrama ou uma quase história de amor, ou uma história de quase amor, ou uma história de amor, escritas, respectivamente, em 2014 e 2016. O primeiro texto expõe a frágil e arenosa convivência entre Luiz e Lúcio, vizinhos de apartamento em um simples edifício. As situações mais comezinhas (como a clássica em que alguém pede açúcar emprestado), as miudezas e banalidades diárias vão, pouco a pouco, revelando aspectos mais profundos da vida desses solitários rapazes. Em suma, presenciamos a tentativa (e eventualmente a dificuldade) de sustentar um diálogo e construir uma real comunicação. Em alguns momentos, Vizinhos se aproxima daquela indecifrável tensão presente no antológico conto “Aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu. Entre a indiferença, a carência e os receios, Luiz e Lúcio acabam nos mostrando que nem toda relação ou encontro são necessariamente possíveis, mas o afeto é um convite. Já Pentagrama se inicia quase como a “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, em que cada personagem exprime, em sequência, seus sentimentos para com o outro. As transições entre o registro dialógico e o narrativo vão progressivamente delineando as frustrações, os desejos, as mágoas e as idealizações (naufragadas, por sinal) que as cinco figuras possuem entre si. No fim, assim como na vida, novos e imprevisíveis arranjos podem se formar. Os dois textos foram encenados pelo Grupo Z. 

Outra expressiva dimensão do trabalho de Fernando Marques diz respeito à reflexão sociopolítica acerca da realidade brasileira, suas mazelas, injustiças e violências. Desta cepa, projeta-se Se eu fosse Iracema, estreada em 2016 pelo coletivo 1Comum, composto por artistas fluminenses e capixabas. A peça, que também excursionou pelo país, nas asas do projeto Palco Giratório, reflete sobre as desigualdades e iniquidades historicamente cometidas contra os povos indígenas no Brasil. Por excelência fragmentário, o texto articula mitos e cosmovisões das florestas em tensão com situações que expõem as marcas coloniais ainda reinantes na estrutura social do país. Resto – uma peça panfleto, de 2018, é também contundente em seu posicionamento. Encenada primeiramente em 2018 pelo Grupo Z, Resto revisita, crítica e sarcasticamente, a política brasileira após os descaminhos do golpe de estado perpetrado contra a ex-presidenta Dilma Rouseff, destituída de seu cargo em 2016. A dramaturgia, a exemplo de peças como Liberdade, Liberdade ou O homem do princípio ao fim (ambas de Millôr Fernandes) é uma colagem de cenas, citações, jogos intertextuais com outras obras e tradições teatrais que satiriza agudamente personalidades políticas, discursos reacionários, o autoritarismo e a parcialidade da justiça. 

O projeto Z Convida, realizado virtualmente em 2021, está entre as últimas realizações de Fernando Marques e do Grupo Z.  O seminário objetivou discutir aspectos estéticos e culturas do teatro contemporâneo a partir da realidade capixaba, criando registros e reflexões a respeito, especialmente, das cenas locais. Um compromisso que Marques possui com a história e a memória do teatro no Espírito Santo.

Guilherme Diniz

Fernando Marques é dramaturgo, diretor e ator. Integrante do Grupo Z.

Fernando Marques é certamente um dos nomes mais significativos das artes cênicas no Espírito Santo, não apenas pela longevidade de seu trabalho, mas pela amplitude de ofícios a que se dedica, fortalecendo, continuamente, o cenário artístico capixaba. Marques é dramaturgo, ator, diretor, professor de dramaturgia (promovendo amiúde oficinas, debates e formações no campo da escrita teatral) e produtor cultural do Grupo Z, desde os seus primórdios, no final da década de 1990. O autor é prolífico, tendo já escrito mais de vinte textos teatrais, que, em termos estéticos, apontam para diferentes humores, estilos, formatos e concepções. Há, porém, um fundamental denominador comum que aproxima grande parte de suas criações sem, claro, homogeneizá-las. Fernando Marques elabora suas peças em íntimo diálogo com os atores, com seus corpos e, enfim, com a contextura do palco. A palavra proposta pelo dramaturgo é, nas salas de ensaio, recriada, revista, de modo que a sua tessitura dramatúrgica não se dá, em geral, isoladamente. Neste sentido, o seu percurso se confunde com a própria biografia do Grupo Z, do qual é membro fundador. Foi neste coletivo que Marques consolidou, gradualmente, a sua poética. 

Fundado em Vitória, capital do Espírito Santo, o Grupo Z se reuniu, inicialmente, em 1996, almejando projetar-se como um coletivo teatral pautado pela experimentação e pela constante pesquisa de linguagem. O desempenho inaugural do grupo se deu em 1997, encenando O maior espetáculo da terra, aglutinando, na dramaturgia e na direção de Fernando Marques, princípios das teatralidades de rua e das artes circenses. A encenação em espaços urbanos, para além da convencional sala de espetáculos, é traço recorrente na história do grupo, como nas peças Commedia, um experimento cênico delineado a partir da commedia dell’arte, e Joanas, cujo texto decupa a insondável protagonista feminina de Gota d’água, concebida por Chico Buarque e Paulo Pontes. Marques assina a dramaturgia dos espetáculos sobreditos. A investigação acerca da corporeidade do intérprete é uma das bases criativas do Grupo Z. Os trânsitos entre teatro e dança, a busca por uma gestualidade plástica e por qualidades de movimento apuradas são marcas de muitos espetáculos do grupo. Carla Van Den Bergen, cofundadora do coletivo, oriunda, profissionalmente, do universo da dança, realiza a preparação corporal e, em muitos casos, a coreografia e o desenho de cena das montagens, como é o caso exemplar do monólogo Tarde demais, também escrito por Marques em 2003. A preocupação do grupo para com a espacialidade cênica a partir da fisicalidade dos atores e a invenção de uma dramaturgia própria/autoral, isto é, um texto que incorpore os anseios, as demandas e as urgências coletivas do elenco, são incorporadas na escrita de Fernando Marques. Na metodologia do coletivo, a criação textual e os exercícios improvisacionais caminham juntos. O Grupo Z, ao lado da Repertório Artes Cênicas e Cia., e dos grupos Rerigtiba, Folgazões, Vira lata, Tarahumaras, para ficarmos somente com alguns nomes, alimenta o contemporâneo teatro capixaba e o apresenta fora das fronteiras do Espírito Santo. 

Entre suas obras, destaca-se O grande circo ínfimo, com o qual o Grupo Z circulou por diversos estados do país no âmbito do projeto Palco Giratório, sendo esta a primeira participação de um grupo teatral capixaba nesta relevante iniciativa de fomento e difusão nacional das artes cênicas. Estreada em 2008, a peça nos apresenta a agrura, o vazio e a melancolia de artistas circenses chafurdados no ostracismo, aferrados a longínquas e belas recordações dos tempos passados, nos quais a vitalidade do picadeiro reluzia inconteste. A penúria financeira e, por assim dizer, existencial discutem, direta e indiretamente, o papel social das manifestações artísticas em uma sociedade violentamente capitalista, apática, regida pela mercadoria e pela plutocracia. O diálogo de base realista é atravessado por planos e situações oníricas, poéticas, em que os velhos tempos de intensa atividade do circo nutrem de esperança os desencantados do presente. Ainda que apresente um fundo romanticamente idealista ou saudosista, O grande circo ínfimo aposta na singeleza do encontro e da fantasia como possibilidades para humanizarmos o mundo. 

Entre as investigações artísticas de Fernando Marques estão as microrrelações afetivas, os encontros e desencontros de nossas vidas, as míseras perdas e vitórias emocionais que se sedimentam no cotidiano. Exemplos dessa abordagem, a princípio, mais intimista são os textos teatrais Vizinhos e Pentagrama ou uma quase história de amor, ou uma história de quase amor, ou uma história de amor, escritas, respectivamente, em 2014 e 2016. O primeiro texto expõe a frágil e arenosa convivência entre Luiz e Lúcio, vizinhos de apartamento em um simples edifício. As situações mais comezinhas (como a clássica em que alguém pede açúcar emprestado), as miudezas e banalidades diárias vão, pouco a pouco, revelando aspectos mais profundos da vida desses solitários rapazes. Em suma, presenciamos a tentativa (e eventualmente a dificuldade) de sustentar um diálogo e construir uma real comunicação. Em alguns momentos, Vizinhos se aproxima daquela indecifrável tensão presente no antológico conto “Aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu. Entre a indiferença, a carência e os receios, Luiz e Lúcio acabam nos mostrando que nem toda relação ou encontro são necessariamente possíveis, mas o afeto é um convite. Já Pentagrama se inicia quase como a “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, em que cada personagem exprime, em sequência, seus sentimentos para com o outro. As transições entre o registro dialógico e o narrativo vão progressivamente delineando as frustrações, os desejos, as mágoas e as idealizações (naufragadas, por sinal) que as cinco figuras possuem entre si. No fim, assim como na vida, novos e imprevisíveis arranjos podem se formar. Os dois textos foram encenados pelo Grupo Z. 

Outra expressiva dimensão do trabalho de Fernando Marques diz respeito à reflexão sociopolítica acerca da realidade brasileira, suas mazelas, injustiças e violências. Desta cepa, projeta-se Se eu fosse Iracema, estreada em 2016 pelo coletivo 1Comum, composto por artistas fluminenses e capixabas. A peça, que também excursionou pelo país, nas asas do projeto Palco Giratório, reflete sobre as desigualdades e iniquidades historicamente cometidas contra os povos indígenas no Brasil. Por excelência fragmentário, o texto articula mitos e cosmovisões das florestas em tensão com situações que expõem as marcas coloniais ainda reinantes na estrutura social do país. Resto – uma peça panfleto, de 2018, é também contundente em seu posicionamento. Encenada primeiramente em 2018 pelo Grupo Z, Resto revisita, crítica e sarcasticamente, a política brasileira após os descaminhos do golpe de estado perpetrado contra a ex-presidenta Dilma Rouseff, destituída de seu cargo em 2016. A dramaturgia, a exemplo de peças como Liberdade, Liberdade ou O homem do princípio ao fim (ambas de Millôr Fernandes) é uma colagem de cenas, citações, jogos intertextuais com outras obras e tradições teatrais que satiriza agudamente personalidades políticas, discursos reacionários, o autoritarismo e a parcialidade da justiça. 

O projeto Z Convida, realizado virtualmente em 2021, está entre as últimas realizações de Fernando Marques e do Grupo Z.  O seminário objetivou discutir aspectos estéticos e culturas do teatro contemporâneo a partir da realidade capixaba, criando registros e reflexões a respeito, especialmente, das cenas locais. Um compromisso que Marques possui com a história e a memória do teatro no Espírito Santo.

Guilherme Diniz

Atitide vai se afastando dos dois, como para sair de cena – mas não sai. À medida que caminha, Arabesque vai se despedindo do amigo, dirigindo-se a ele como se ele estivesse cada vez mais distante, até perdê-lo de vista. Mas ele permanece em cena todo o tempo, talvez menos iluminado, em outro plano, e sempre caminhando – a mímica do caminhar, com cansaço crescente.

ARABESQUE – Boa sorte, Atitide...

VENDEIRA – Que o diabo o carregue!

ARABESQUE – Com que, então, a senhora não só leu Cervantes, como também Dante!

VENDEIRA – Não, eu não li, já disse que não li. Meu marido lia.

ARABESQUE – Ah, é verdade. Mas dá no mesmo. E, me diga, qual dos dois prefere?

VENDEIRA – Acho tudo muito triste.

ARABESQUE – Acho tudo muito bonito. E o que mais a senhora leu?

VENDEIRA – Bula de remédio, manual de instrução, placa de trânsito. Já não disse que quem lia era meu marido?!

ARABESQUE – Ah, é verdade. Mas dá no mesmo. E seu marido?

VENDEIRA – Lia.

ARABESQUE – Sim, sei. Mas o que foi feito dele? Ele... morreu?

VENDEIRA – Queira Deus que tenha morrido e esteja esperando pelo seu amigo.

ARABESQUE – No inferno?

VENDEIRA – No nono círculo, que é onde ficam os traidores.

ARABESQUE – Mas então a senhora não sabe se ele morreu.

VENDEIRA – Saiu para comprar cigarros no reino muito distante mais próximo daqui.

ARABESQUE – Mas a senhora não vende cigarros aí?

VENDEIRA – Ele disse que não tinha a marca dele.

ARABESQUE – Ah... Talvez ele volte, não? Um dia...

VENDEIRA – Melhor ele ficar longe.

ARABESQUE – Sei...

VENDEIRA – Ele também, provavelmente, sabe.

ARABESQUE – Entendo... A senhora não sente saudades?

VENDEIRA – Do traste?

ARABESQUE – É... do seu marido...

VENDEIRA – Sinto saudades do tempo em que não havia as estradas novas, em que as pessoas passavam por aqui. E compravam.

ARABESQUE – É assim comigo também. Saudades do circo, eu quero dizer.

VENDEIRA – Vocês eram mesmo de um circo?

ARABESQUE – Ah, sim. Um grande circo.

VENDEIRA – Olhando para vocês é muito, muito difícil acreditar que trabalhavam num grande circo.

ARABESQUE – A senhora não me leve a mal, mas olhando aí pra senhora e seu estabelecimento, também não é fácil acreditar que já foi grande coisa quando a estrada trazia muita gente. Aliás, olhando para a estrada, é difícil até acreditar que ela já tenha trazido gente.

VENDEIRA – Está certo. Está certo. Mas eu tenho aí a minha venda e o letreiro como provas. E você? O que prova o seu passado glorioso?

Arabesque faz um número de mágica, fazendo um lenço desaparecer e reaparecer em
seguida.

ARABESQUE – Vejam, senhoras e senhores... Ou só a senhora mesmo, não tem problema... Como eu faço este rubro lenço desaparecer entre meus dedos para, em seguida,
aparecer novamente!

Quando termina, a Vendeira faz o mesmo número – executa-o, entretanto, com desdém.

VENDEIRA – Vejam, senhoras e senhores... Ou só o senhor mesmo, não tem problema... Como eu faço este farrapo desaparecer entre meus dedos para, em seguida, aparecer novamente, fazendo o seu truque ir pro beleléu.

ARABESQUE – Puxa, mas a senhora, hein?... A senhora é mesmo surpreendente.

VENDEIRA – É com esse truque chinfrim que você quer me provar que fazia parte de um grande circo?

ARABESQUE – Não é bem assim... O número é bom. E a senhora é boa também, hein? Quero dizer, falta um certo élan, mas é boa sim...

VENDEIRA – O que foi, então, que aconteceu com o circo?

ARABESQUE – Eu não sei...

VENDEIRA – Ah, bom. O senhor, maltrapilho, canastrão, com esse truquezinho, quer me convencer de que, junto com seu amigo mal educado, fazia parte de um circo, mas não sabe sequer o que houve com ele.

ARABESQUE – Não! Quero dizer, eu sei...

VENDEIRA – Sabe ou não sabe?

ARABESQUE – Eu sei, só é difícil de entender... A senhora, por exemplo, sabe o que foi que aconteceu com esta estrada para que ninguém mais queira passar por ela e a senhora não tenha mais clientes?

VENDEIRA – Perfeitamente! Construíram estradas novas. Desde que fizeram isso, ninguém mais passa por aqui.

ARABESQUE – Sim, disso eu sei. Com o circo, a mesma coisa. Surgiram coisas novas, as pessoas não iam mais ao circo. Começaram a preferir outras coisas. Aí, o circo foi minguando... Aí, teve uma hora que o Respeitável, que era o dono, disse que não dava mais. E aí, cada um seguiu um caminho e depois...

VENDEIRA – Depois, eu sei. O senhor se tornou essa criatura miserável e veio pedir na minha porta.

ARABESQUE – Pois é. Foi isso. Mas eu não entendo.

VENDEIRA – Mas será possível?! Não entende o quê? Obsolescemos, não despertamos mais interesse, ninguém nos quer mais. Que parte o senhor não entende?

ARABESQUE – Isso. Quero dizer. Tudo bem, fizeram estradas novas. E daí?

VENDEIRA – Como assim, e daí?

ARABESQUE – Assim: e daí? Esta estrada não deixou de existir, deixou?

VENDEIRA – Não... Não.

ARABESQUE – Eu passei pela estrada nova, sabe? Um inferno!

VENDEIRA – Eu sei, já fui até lá olhar.

ARABESQUE – Pois é, um inferno. Um monte de carros passando numa velocidade que quase não se os vê.

VENDEIRA – Vai ver é por isso que preferem lá. Porque correm. Não param.

ARABESQUE – O que é ótimo. Quando se está com pressa. Mas quando não há pressa...

VENDEIRA – Eles sempre têm pressa.

ARABESQUE – Disso, eu sei. Mas é aí que eu não entendo: o porquê da pressa o tempo todo. Quero dizer: às vezes é normal ter pressa. Não é normal ter pressa o tempo todo, mesmo quando não há porque se apressar. A senhora entende?

VENDEIRA – Entendo... Acho que entendo...

ARABESQUE – Faça, então, a gentileza de me explicar?

VENDEIRA – Não, o que eu estou dizendo é que entendi o que você disse.

ARABESQUE – Ah! (Rindo). Entendi! Eu perguntei se a senhora tinha entendido e a senhora respondeu que sim, então eu pensei que a senhora tinha entendido o que eu não entendo, mas a senhora apenas entendeu o que eu tinha dito, e não entendeu o que eu também não entendo!

(Fragmento de O grande circo ínfimo)