Fernando Marques é certamente um dos nomes mais significativos das artes cênicas no Espírito Santo, não apenas pela longevidade de seu trabalho, mas pela amplitude de ofícios a que se dedica, fortalecendo, continuamente, o cenário artístico capixaba. Marques é dramaturgo, ator, diretor, professor de dramaturgia (promovendo amiúde oficinas, debates e formações no campo da escrita teatral) e produtor cultural do Grupo Z, desde os seus primórdios, no final da década de 1990. O autor é prolífico, tendo já escrito mais de vinte textos teatrais, que, em termos estéticos, apontam para diferentes humores, estilos, formatos e concepções. Há, porém, um fundamental denominador comum que aproxima grande parte de suas criações sem, claro, homogeneizá-las. Fernando Marques elabora suas peças em íntimo diálogo com os atores, com seus corpos e, enfim, com a contextura do palco. A palavra proposta pelo dramaturgo é, nas salas de ensaio, recriada, revista, de modo que a sua tessitura dramatúrgica não se dá, em geral, isoladamente. Neste sentido, o seu percurso se confunde com a própria biografia do Grupo Z, do qual é membro fundador. Foi neste coletivo que Marques consolidou, gradualmente, a sua poética.
Fundado em Vitória, capital do Espírito Santo, o Grupo Z se reuniu, inicialmente, em 1996, almejando projetar-se como um coletivo teatral pautado pela experimentação e pela constante pesquisa de linguagem. O desempenho inaugural do grupo se deu em 1997, encenando O maior espetáculo da terra, aglutinando, na dramaturgia e na direção de Fernando Marques, princípios das teatralidades de rua e das artes circenses. A encenação em espaços urbanos, para além da convencional sala de espetáculos, é traço recorrente na história do grupo, como nas peças Commedia, um experimento cênico delineado a partir da commedia dell’arte, e Joanas, cujo texto decupa a insondável protagonista feminina de Gota d’água, concebida por Chico Buarque e Paulo Pontes. Marques assina a dramaturgia dos espetáculos sobreditos. A investigação acerca da corporeidade do intérprete é uma das bases criativas do Grupo Z. Os trânsitos entre teatro e dança, a busca por uma gestualidade plástica e por qualidades de movimento apuradas são marcas de muitos espetáculos do grupo. Carla Van Den Bergen, cofundadora do coletivo, oriunda, profissionalmente, do universo da dança, realiza a preparação corporal e, em muitos casos, a coreografia e o desenho de cena das montagens, como é o caso exemplar do monólogo Tarde demais, também escrito por Marques em 2003. A preocupação do grupo para com a espacialidade cênica a partir da fisicalidade dos atores e a invenção de uma dramaturgia própria/autoral, isto é, um texto que incorpore os anseios, as demandas e as urgências coletivas do elenco, são incorporadas na escrita de Fernando Marques. Na metodologia do coletivo, a criação textual e os exercícios improvisacionais caminham juntos. O Grupo Z, ao lado da Repertório Artes Cênicas e Cia., e dos grupos Rerigtiba, Folgazões, Vira lata, Tarahumaras, para ficarmos somente com alguns nomes, alimenta o contemporâneo teatro capixaba e o apresenta fora das fronteiras do Espírito Santo.
Entre suas obras, destaca-se O grande circo ínfimo, com o qual o Grupo Z circulou por diversos estados do país no âmbito do projeto Palco Giratório, sendo esta a primeira participação de um grupo teatral capixaba nesta relevante iniciativa de fomento e difusão nacional das artes cênicas. Estreada em 2008, a peça nos apresenta a agrura, o vazio e a melancolia de artistas circenses chafurdados no ostracismo, aferrados a longínquas e belas recordações dos tempos passados, nos quais a vitalidade do picadeiro reluzia inconteste. A penúria financeira e, por assim dizer, existencial discutem, direta e indiretamente, o papel social das manifestações artísticas em uma sociedade violentamente capitalista, apática, regida pela mercadoria e pela plutocracia. O diálogo de base realista é atravessado por planos e situações oníricas, poéticas, em que os velhos tempos de intensa atividade do circo nutrem de esperança os desencantados do presente. Ainda que apresente um fundo romanticamente idealista ou saudosista, O grande circo ínfimo aposta na singeleza do encontro e da fantasia como possibilidades para humanizarmos o mundo.
Entre as investigações artísticas de Fernando Marques estão as microrrelações afetivas, os encontros e desencontros de nossas vidas, as míseras perdas e vitórias emocionais que se sedimentam no cotidiano. Exemplos dessa abordagem, a princípio, mais intimista são os textos teatrais Vizinhos e Pentagrama ou uma quase história de amor, ou uma história de quase amor, ou uma história de amor, escritas, respectivamente, em 2014 e 2016. O primeiro texto expõe a frágil e arenosa convivência entre Luiz e Lúcio, vizinhos de apartamento em um simples edifício. As situações mais comezinhas (como a clássica em que alguém pede açúcar emprestado), as miudezas e banalidades diárias vão, pouco a pouco, revelando aspectos mais profundos da vida desses solitários rapazes. Em suma, presenciamos a tentativa (e eventualmente a dificuldade) de sustentar um diálogo e construir uma real comunicação. Em alguns momentos, Vizinhos se aproxima daquela indecifrável tensão presente no antológico conto “Aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu. Entre a indiferença, a carência e os receios, Luiz e Lúcio acabam nos mostrando que nem toda relação ou encontro são necessariamente possíveis, mas o afeto é um convite. Já Pentagrama se inicia quase como a “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, em que cada personagem exprime, em sequência, seus sentimentos para com o outro. As transições entre o registro dialógico e o narrativo vão progressivamente delineando as frustrações, os desejos, as mágoas e as idealizações (naufragadas, por sinal) que as cinco figuras possuem entre si. No fim, assim como na vida, novos e imprevisíveis arranjos podem se formar. Os dois textos foram encenados pelo Grupo Z.
Outra expressiva dimensão do trabalho de Fernando Marques diz respeito à reflexão sociopolítica acerca da realidade brasileira, suas mazelas, injustiças e violências. Desta cepa, projeta-se Se eu fosse Iracema, estreada em 2016 pelo coletivo 1Comum, composto por artistas fluminenses e capixabas. A peça, que também excursionou pelo país, nas asas do projeto Palco Giratório, reflete sobre as desigualdades e iniquidades historicamente cometidas contra os povos indígenas no Brasil. Por excelência fragmentário, o texto articula mitos e cosmovisões das florestas em tensão com situações que expõem as marcas coloniais ainda reinantes na estrutura social do país. Resto – uma peça panfleto, de 2018, é também contundente em seu posicionamento. Encenada primeiramente em 2018 pelo Grupo Z, Resto revisita, crítica e sarcasticamente, a política brasileira após os descaminhos do golpe de estado perpetrado contra a ex-presidenta Dilma Rouseff, destituída de seu cargo em 2016. A dramaturgia, a exemplo de peças como Liberdade, Liberdade ou O homem do princípio ao fim (ambas de Millôr Fernandes) é uma colagem de cenas, citações, jogos intertextuais com outras obras e tradições teatrais que satiriza agudamente personalidades políticas, discursos reacionários, o autoritarismo e a parcialidade da justiça.
O projeto Z Convida, realizado virtualmente em 2021, está entre as últimas realizações de Fernando Marques e do Grupo Z. O seminário objetivou discutir aspectos estéticos e culturas do teatro contemporâneo a partir da realidade capixaba, criando registros e reflexões a respeito, especialmente, das cenas locais. Um compromisso que Marques possui com a história e a memória do teatro no Espírito Santo.
Guilherme Diniz