paula lice

Salvador - BA

Fragmento Teatral

MARIA DA GRAÇA: Come o sonho, mãe.

ALICE: Não posso, está na mesa há muitos dias.

MARIA DA GRAÇA: Eu acho que tem um buraco embaixo dele.

ALICE: É de mistério, pequena, não mexe.

MARIA DA GRAÇA: Eu quero saber o que tem embaixo do sonho que ninguém comeu.

ALICE: Para, pequena, não faz isso. (Buzina.) Meu irmão chegou, vamos recebê-lo, pequena!

MARIA DA GRAÇA: Me ajuda a subir.

ALICE: Meu irmão é um homem alto, gordo e cinza.

ULISSES: Cinza?

ALICE: Na época você era cinza, Ulisses.

ULISSES: Ah. É uma história antiga?

ALICE: Do ano passado.

ULISSES: Está bem, está bem.

ALICE: Vamos continuar?

ULISSES: Vamos. A cidade está muito quente hoje, minha irmã.

ALICE: É o sol, está cada vez mais perto, meu irmão.

ULISSES: Desse jeito ficamos todos cegos.

ALICE: Ou passamos a enxergar melhor.

ULISSES: Ninguém vê bem no excesso, seja luz ou seja sombra.

ALICE: Paciência, querido, temos que ter paciência.

ULISSES: É verdade, Alice.

ALICE: Senta, Ulisses.

ULISSES: Alice, seu feijão está muito cheiroso, vou ter que abrir uma exceção à dieta.

ALICE: Uma vez na vida, Ulisses, uma vez na vida.

ULISSES: Você cortou os cabelos?

ALICE: Não, mas estou usando brincos novos. Eu podia apontar para as minhas orelhas agora, para você ver a pequena/pulga.

ULISSES: Verdade. Pode ficar bom. Vou continuar. Eu me preocupo tanto com você sozinha nesta casa enorme.

ALICE: Eu não estou mais sozinha, irmão, você não vê?

ULISSES: Quem está aqui com você, as tias voltaram?

ALICE: Elas não vão voltar, você sabe.

ULISSES: A gente nunca sabe de tudo, minha irmã.

ALICE: Ulisses, quero que você conheça a pequena.

ULISSES: O que é isso em cima da mesa, um sonho, você que fez?

(Alice, rapidamente, pega o sonho da mesa e come. Grito trágico.)

ULISSES: O que foi, Alice?

ALICE: Nada. (Coloca os cabelos para trás.) Estou criando uma pulga atrás da orelha.

MARIA DA GRAÇA: Mãe, eu não entendi.

ALICE: Como não, minha filha?

ULISSES: Ora, Alice, se a menina não entendeu, não entendeu e pronto.

ALICE: Mas não se pode entender tudo sempre.

ULISSES: Eu entendi isso. Você entendeu. Mas ela, não.

MARIA DA GRAÇA: Uai, tio. Eu entendi que não se pode entender tudo. Mas o que aconteceu com a pulga?

ULISSES: A pulga não existe.

ALICE: É uma imagem que passou por um processo de metáfora.

MARIA DA GRAÇA: Metáfora? E morreu?

ULISSES: Não, meu bem. Virou borboleta.

ALICE: Ulisses, você está confundindo mais ainda a menina.

ULISSES: Estou?

MARIA DA GRAÇA: Tio, eu posso entrar em processo de metáfora?

(Fragmento de Para o Menino-Bolha)

Paula Lice é atriz, diretora, dramaturga e roteirista. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde coordena o grupo de pesquisa CRICA – Criar para criança.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Paula Lice, atriz, dramaturga, diretora e professora, graduou-se em Letras Vernáculas e Língua Estrangeira – Inglês, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mesma universidade onde seguiu carreira e estudos acadêmicos, completando seu mestrado e doutorado e lecionando como professora substituta na Escola de Dança. Hoje é professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Antes de escritora, Paula Lice é uma atriz, atuante no cenário profissional soteropolitano desde 1998, e parte importante dessa trajetória se deu dentro do grupo do qual fez parte durante 14 anos, o DIMENTI. Foi nesse espaço de troca e colaboração que Paula começou a experimentar seus escritos, em parceria com Jorge Alencar, que assumia a direção e dramaturgia dos espetáculos do grupo. Ainda no contexto do DIMENTI, no ano de 2004, assinou como uma das dramaturgas do espetáculo Chuá, e colaborou novamente com a dramaturgia do grupo em 2008, no espetáculo Batata, sendo este último um projeto que convidou diversos dramaturgos baianos para proporem cenas inspiradas no universo de Nelson Rodrigues.

No ano seguinte, 2009, Paula Lice estreia Miúda e o guarda-chuva, uma peça para crianças, como dramaturga e diretora. Olhar de perto para esse projeto nos mostra a relação da artista com a experimentação nas diversas mídias que se relacionam intimamente com a narrativa: Miúda e o guarda-chuva nasce como um conto da autora, torna-se uma peça de teatro no ano de 2009, mas em 2010 transforma-se em um curta de animação, realizado através da única edição do ANIMATV, e, em 2019, em um longa-metragem de animação. Todas as versões foram dirigidas e escritas por ela em parceria com Victor Cayres.

O tema da infância lhe é muito caro, e dentre sua produção autoral (pois segue escrevendo colaborativamente em processos, nos quais muitas vezes, também assume como diretora) se destaca Para o Menino Bolha, uma peça para crianças escrita, dirigida e produzida por ela. O espetáculo foi indicado ao Prêmio Braskem de Teatro 2015, nas categorias melhor direção, espetáculo infantojuvenil e texto, vencendo a última categoria. A peça também foi lançada em livro pela Coleção Dramaturgia da EDUFBA e teve uma obra derivada publicada de forma independente, o livro infantil A gilafa

Em sua produção para crianças, Paula Lice investe muita energia em tratar de temas profundos como perda, luto, saudade, amizade e metáfora. Também se dedica a não subestimar a sua audiência, o que faz com que algumas vezes os adultos, que acompanham essa criança-público, se questionem se aquela peça em questão é “de fato para crianças”. Mas o que esses adultos não perceberam é que, generosamente e intencionalmente, essa peça também era para eles. Inclusive, em 2016, estreou em parceria com o coletivo de palhaçaria Nariz de Cogumelo o espetáculo Priscilla e o tempo das coisas (infantil para adultos). 

Paula Lice se dedica a pensar a infância também nos espaços acadêmicos. Em 2014 defendeu a tese de doutorado Isso é infantil?: perspectivas, expectativas e tabus transmidiáticos a partir de Miúda e o guarda-chuva e atualmente coordena o grupo de pesquisas CRICA – Criar para Crianças: núcleo de estudos das artes e culturas da e para a infância na UFRB.

No cinema, escreveu e dirigiu em parceria com Ronei Jorge e Rodrigo Luna o documentário curta-metragem Jessy e Jéssica Cristopherry (2013), no qual realizou o sonho de ser transformista sendo amadrinhada por importantes drag queens do cenário soteropolitano e dando a sua drag o nome das personagens que vivia/inventava na infância: Jéssica Cristopherry. Além de receber inúmeros prêmios por essa iniciativa, o roteiro acabou derivando para um reality show intitulado Drag me as a queen (2018 e 2019). Em parceria com os mesmo colaboradores-amigos, escreveu e dirigiu Ridículos (2016). Um documentário longa-metragem sobre o rito de iniciação de um palhaço.

A honestidade com que Paula Lice lida e expõe temas e perspectivas que lhe são tão caras intimamente, a construção de parcerias duradouras que valorizam os vínculos afetivos que se estabelecem antes, durante e/ou depois da exposição inerente a um processo criativo, a generosidade de escuta aprendida numa trajetória de grupo e processos colaborativos, aliadas a uma incansável experimentação, fazem de seus textos uma espécie de aconchego, sem perder a criticidade que é parte de sua composição e estimulada em sua audiência.

Laís Machado

Paula Lice é atriz, diretora, dramaturga e roteirista. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde coordena o grupo de pesquisa CRICA – Criar para criança.

Paula Lice, atriz, dramaturga, diretora e professora, graduou-se em Letras Vernáculas e Língua Estrangeira – Inglês, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mesma universidade onde seguiu carreira e estudos acadêmicos, completando seu mestrado e doutorado e lecionando como professora substituta na Escola de Dança. Hoje é professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Antes de escritora, Paula Lice é uma atriz, atuante no cenário profissional soteropolitano desde 1998, e parte importante dessa trajetória se deu dentro do grupo do qual fez parte durante 14 anos, o DIMENTI. Foi nesse espaço de troca e colaboração que Paula começou a experimentar seus escritos, em parceria com Jorge Alencar, que assumia a direção e dramaturgia dos espetáculos do grupo. Ainda no contexto do DIMENTI, no ano de 2004, assinou como uma das dramaturgas do espetáculo Chuá, e colaborou novamente com a dramaturgia do grupo em 2008, no espetáculo Batata, sendo este último um projeto que convidou diversos dramaturgos baianos para proporem cenas inspiradas no universo de Nelson Rodrigues.

No ano seguinte, 2009, Paula Lice estreia Miúda e o guarda-chuva, uma peça para crianças, como dramaturga e diretora. Olhar de perto para esse projeto nos mostra a relação da artista com a experimentação nas diversas mídias que se relacionam intimamente com a narrativa: Miúda e o guarda-chuva nasce como um conto da autora, torna-se uma peça de teatro no ano de 2009, mas em 2010 transforma-se em um curta de animação, realizado através da única edição do ANIMATV, e, em 2019, em um longa-metragem de animação. Todas as versões foram dirigidas e escritas por ela em parceria com Victor Cayres.

O tema da infância lhe é muito caro, e dentre sua produção autoral (pois segue escrevendo colaborativamente em processos, nos quais muitas vezes, também assume como diretora) se destaca Para o Menino Bolha, uma peça para crianças escrita, dirigida e produzida por ela. O espetáculo foi indicado ao Prêmio Braskem de Teatro 2015, nas categorias melhor direção, espetáculo infantojuvenil e texto, vencendo a última categoria. A peça também foi lançada em livro pela Coleção Dramaturgia da EDUFBA e teve uma obra derivada publicada de forma independente, o livro infantil A gilafa

Em sua produção para crianças, Paula Lice investe muita energia em tratar de temas profundos como perda, luto, saudade, amizade e metáfora. Também se dedica a não subestimar a sua audiência, o que faz com que algumas vezes os adultos, que acompanham essa criança-público, se questionem se aquela peça em questão é “de fato para crianças”. Mas o que esses adultos não perceberam é que, generosamente e intencionalmente, essa peça também era para eles. Inclusive, em 2016, estreou em parceria com o coletivo de palhaçaria Nariz de Cogumelo o espetáculo Priscilla e o tempo das coisas (infantil para adultos). 

Paula Lice se dedica a pensar a infância também nos espaços acadêmicos. Em 2014 defendeu a tese de doutorado Isso é infantil?: perspectivas, expectativas e tabus transmidiáticos a partir de Miúda e o guarda-chuva e atualmente coordena o grupo de pesquisas CRICA – Criar para Crianças: núcleo de estudos das artes e culturas da e para a infância na UFRB.

No cinema, escreveu e dirigiu em parceria com Ronei Jorge e Rodrigo Luna o documentário curta-metragem Jessy e Jéssica Cristopherry (2013), no qual realizou o sonho de ser transformista sendo amadrinhada por importantes drag queens do cenário soteropolitano e dando a sua drag o nome das personagens que vivia/inventava na infância: Jéssica Cristopherry. Além de receber inúmeros prêmios por essa iniciativa, o roteiro acabou derivando para um reality show intitulado Drag me as a queen (2018 e 2019). Em parceria com os mesmo colaboradores-amigos, escreveu e dirigiu Ridículos (2016). Um documentário longa-metragem sobre o rito de iniciação de um palhaço.

A honestidade com que Paula Lice lida e expõe temas e perspectivas que lhe são tão caras intimamente, a construção de parcerias duradouras que valorizam os vínculos afetivos que se estabelecem antes, durante e/ou depois da exposição inerente a um processo criativo, a generosidade de escuta aprendida numa trajetória de grupo e processos colaborativos, aliadas a uma incansável experimentação, fazem de seus textos uma espécie de aconchego, sem perder a criticidade que é parte de sua composição e estimulada em sua audiência.

Laís Machado

MARIA DA GRAÇA: Come o sonho, mãe.

ALICE: Não posso, está na mesa há muitos dias.

MARIA DA GRAÇA: Eu acho que tem um buraco embaixo dele.

ALICE: É de mistério, pequena, não mexe.

MARIA DA GRAÇA: Eu quero saber o que tem embaixo do sonho que ninguém comeu.

ALICE: Para, pequena, não faz isso. (Buzina.) Meu irmão chegou, vamos recebê-lo, pequena!

MARIA DA GRAÇA: Me ajuda a subir.

ALICE: Meu irmão é um homem alto, gordo e cinza.

ULISSES: Cinza?

ALICE: Na época você era cinza, Ulisses.

ULISSES: Ah. É uma história antiga?

ALICE: Do ano passado.

ULISSES: Está bem, está bem.

ALICE: Vamos continuar?

ULISSES: Vamos. A cidade está muito quente hoje, minha irmã.

ALICE: É o sol, está cada vez mais perto, meu irmão.

ULISSES: Desse jeito ficamos todos cegos.

ALICE: Ou passamos a enxergar melhor.

ULISSES: Ninguém vê bem no excesso, seja luz ou seja sombra.

ALICE: Paciência, querido, temos que ter paciência.

ULISSES: É verdade, Alice.

ALICE: Senta, Ulisses.

ULISSES: Alice, seu feijão está muito cheiroso, vou ter que abrir uma exceção à dieta.

ALICE: Uma vez na vida, Ulisses, uma vez na vida.

ULISSES: Você cortou os cabelos?

ALICE: Não, mas estou usando brincos novos. Eu podia apontar para as minhas orelhas agora, para você ver a pequena/pulga.

ULISSES: Verdade. Pode ficar bom. Vou continuar. Eu me preocupo tanto com você sozinha nesta casa enorme.

ALICE: Eu não estou mais sozinha, irmão, você não vê?

ULISSES: Quem está aqui com você, as tias voltaram?

ALICE: Elas não vão voltar, você sabe.

ULISSES: A gente nunca sabe de tudo, minha irmã.

ALICE: Ulisses, quero que você conheça a pequena.

ULISSES: O que é isso em cima da mesa, um sonho, você que fez?

(Alice, rapidamente, pega o sonho da mesa e come. Grito trágico.)

ULISSES: O que foi, Alice?

ALICE: Nada. (Coloca os cabelos para trás.) Estou criando uma pulga atrás da orelha.

MARIA DA GRAÇA: Mãe, eu não entendi.

ALICE: Como não, minha filha?

ULISSES: Ora, Alice, se a menina não entendeu, não entendeu e pronto.

ALICE: Mas não se pode entender tudo sempre.

ULISSES: Eu entendi isso. Você entendeu. Mas ela, não.

MARIA DA GRAÇA: Uai, tio. Eu entendi que não se pode entender tudo. Mas o que aconteceu com a pulga?

ULISSES: A pulga não existe.

ALICE: É uma imagem que passou por um processo de metáfora.

MARIA DA GRAÇA: Metáfora? E morreu?

ULISSES: Não, meu bem. Virou borboleta.

ALICE: Ulisses, você está confundindo mais ainda a menina.

ULISSES: Estou?

MARIA DA GRAÇA: Tio, eu posso entrar em processo de metáfora?

(Fragmento de Para o Menino-Bolha)