PRÓLOGO
Cena - Sonho 1
Luz baixa. Shakespeare entra com uma lamparina, resmungando algo em inglês. Traz papel e tinta.
SHAKESPEARE: (palavrões em inglês). Esta Rainha não respeita nada, nem meu ócio criativo; mas o que os monarcas sabem sobre respeitar? Só respeitam seu apetite e sua libido! Acha que é fácil? MEGERA DOMADA mal entrou em cartaz, nesta temporada ainda escrevi RICARDO III, lá vem ela com nova encomenda. Sou Shakespeare, mas não sou Deus. (T). Ainda. Só sabem explorar e explorar os artistas de teatro. Exigem, exigem e não pagam o justo. Mal acaba um serviço, já tem que fazer duas, três peças ao mesmo tempo. Eu não ganho para isso não.
Mas a Rainha que me aguarde, porque vou cutucá-la. Arranhar sutilmente sua empáfia e fome do mundo.
E ainda por cima me pede uma peça para um casamento! Coisa cansativa esta insistência em matrimônios. Quão tolos estes mortais são! How fools this mortals be! Mas escreverei sobre mais esta imbecilidade mundana. Meu dever é escrever sobre todas as mediocridades humanas, este animal trágico em suas escolhas. Vou fazer uma peça sobre o feitiço que é o amor, isso sim! O amor, a maior das comédias. Vou construir um conto de posse, miséria e insânia dos afetos, mas tudo travestido de comédia... Como poderia chamar esta peça?
VINE: Que tal ‘Sonho de uma noite de verão’?
SHAKESPEARE: Que título inspirado.
Shakespeare assusta-se com a chegada de Vine.
SHAKESPEARE: Quem é você e o que faz em meus aposentos? Foi a Rainha que o mandou para me vigiar e impor até o título? Esta Rainha não respeita minha autonomia artística.
VINE (emocionado): O senhor mora aqui? Caramba, foi neste local que o senhor escreveu HAMLET?
SHAKESPEARE: Como você sabe deste texto se ainda não o terminei? Andou lendo minhas anotações? Andam me espionando, é isso?
VINE: Ai, me desculpe, eu achei que o senhor já o tinha escrito.
SHAKESPEARE: És algum tipo de vidente? Leitor de borras, excrementos ou linhas da mão?
VINE: Digamos que sou um cigano na alma, tenho conversações com o futuro.
SHAKESPEARE: Do futuro? Nossa, há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Taí, gostei.
Shakespeare anota porque gostou do que disse.
VINE: E vejo que neste santuário escreverás obras lindas, como a do príncipe da Dinamarca. (vendo papéis ao chão). Estes rascunhos largados ao chão são sementes de joias cênicas que dominarão os palcos do mundo!
SHAKESPEARE: São apenas notificações de débitos.
Vine pegando um papel no chão, lê incrédulo.
VINE: “Ser ou não ser, eis a questão!... Dormir, talvez sonhar.”
SHAKESPEARE: Me devolva isso! É só um experimento, mas não tô muito seguro se a frase tem impacto, se cola, sabe?
VINE: Meu Deus, não acredito que eu estou pisando no santuário das grandes obras da
dramaturgia universal.
SHAKESPEARE: Santuário? Isto aqui é uma masmorra. Deste calabouço, mal saio para ver a luz do sol, nem sei quando é dia e quando é noite.
VINE: ‘Nunca mais dormirei; Macbeth matou o sono!’
SHAKESPEARE: Tô quase cego de tanto escrever à luz de velas, madrugadas inteiras, passando frio; só tenho meio pulmão de tanta tosse. Brônquios que são uma peneira.
VINE: ‘Morrer... Dormir... Talvez sonhar.’
SHAKESPEARE: E nem dedo eu tenho mais, só um cotoco, tudo carcomido pelas penas e as tintas.
VINE: ‘Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos; e nossa breve vida é cercada pelo sono.’
SHAKESPEARE: Tenho que escrever sobre sonhos, meu caro. E beber todo o álcool destilado da Inglaterra. Esta ilha chuvosa derruba qualquer espírito.
VINE: ‘Se nós, sombras, vos ofendemos, é pensar que estivestes a sonhar; foi tudo mera visão no correr desta sessão.’
SHAKESPEARE: Eu preciso de uma floresta com fadas, muitas ervas, elixir do amor e delírio para não deprimir. Afinal quem é você?
VINE: Eu nem me apresentei, Master Shakespeare. Meu nome é Vine, eu sou do Chile e estou neste momento estudando a sua peça.
SHAKESPEARE: Onde fica o Chile?
VINE: Chile, na América do Sul.
SHAKESPEARE: América, sim. Claro que sei, é a ‘Índia Ocidental’ tão cobiçada por todos os reinos, inclusive pela nossa megera indomada.
VINE: Acredite-me, este seu novo texto será um dos mais encenados. Eu tenho um projeto de montagem. E o que preciso é saber quais suas motivações ao escrevê-lo.
SHAKESPEARE: Apenas obedeço ao que minha imaginação pede. E o meu bolso. Não necessariamente nesta ordem.
VINE (implora): Gênios, como o senhor devem estudar, planejar, conceituar. Imploro, suplico, diga-me o que está por trás de sua nova peça?
SHAKESPEARE: Tá bom, tá bom. (confidenciando). A Rainha. Vou provocar a Rainha sutilmente. Vou tripudiar de sua ganância. Será uma história sobre poder, sempre sobre poder, até embaixo dos lençóis, ou principalmente debaixo dos lençóis...
VINE: Toda peça boa é sempre sobre o poder.
SHAKESPEARE: A Rainha Elizabeth tem planos megalomaníacos de conquista, que incluem também suas Índias Ocidentais, ela quer tudo abaixo da Europa. Esta mulher tem apetite de leoa, ela quer engolir o mundo. Este mote servirá de base para a nova peça, na fachada composta para o casamento de um nobre, mas será sobre a disputa entre Oberon e Titânia pelas ‘Índias Ocidentais’... ou o que você chama de América...
VINE: Tô todo arrepiado. A colonização já começou... e vai mudar o mundo.
Uma sombra se desenha ao fundo.
(Fragmento de Sueño)