Dramaturgo, roteirista, diretor e ator, o pernambucano Newton Moreno saiu do Recife na década de 1990 e, desde então, vive em São Paulo. A sua produção, no entanto, não sente a distância: boa parte dela está embebida no universo da tradição popular nordestina. As memórias no Agreste e na Zona da Mata, as idas à casa da avó, a religiosidade, os folguedos, os brincantes e os contadores de histórias das feiras livres servem como inspiração para várias obras desse dramaturgo, um dos mais reconhecidos do país.
Dois de seus textos foram publicados juntos em livro pela editora Terceiro Nome, em 2009: As centenárias e Maria do Caritó. No primeiro, escrito a pedido das atrizes Marieta Severo e Andréa Beltrão, Moreno explora a figura da carpideira, aquela que chora os mortos nos interiores do Brasil. O ritual chamou a atenção do dramaturgo, que enxergou teatralidade e a possibilidade de investir numa peleja imbricada no imaginário sobre o Nordeste: a tentativa de negociar com a morte, de passar a perna no destino implacável. Se o mote pode ser considerado comum, o diferencial está em como a história se desenrola, nos diálogos fluidos e engraçados, mas cheios de imagens poéticas. Pelo texto, Newton Moreno ganhou o Prêmio Shell de Teatro em 2007.
Maria do Caritó, montado no teatro e depois adaptado para o cinema, também foi escrito sob encomenda: um pedido da atriz Lilia Cabral. Moreno se inspirou no universo do circo-teatro para criar uma “heroína incansável”: “Ela se equilibra no duplo feminino, sacra e profana, virgem e mundana, santa e palhaça, arquétipo-brincalhão de um feminino desdobrado”, explica na apresentação do livro.
Tanto o mergulho no imaginário do Nordeste quanto o gosto por um jeito mais tradicional na escrita – a estruturação da dramaturgia a partir do personagem, a fábula, o melodrama – não afastam o trabalho de Newton Moreno do contemporâneo. Pelo contrário, numa operação refinada, Moreno consegue levar discussões que, para outros dramaturgos, seriam realizadas tendo como pano de fundo uma metrópole, aos cenários da tradição. Os protagonistas são personagens marcados por experiências duras, vivenciando situações tidas como rotineiras, que passariam despercebidas por olhares menos atentos. É o caso, por exemplo, de Agreste, obra pela qual ganhou o seu primeiro Prêmio Shell de melhor autor, em 2004, e o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) de melhor texto.
Na dramaturgia elaborada como “exercício de narrativa para um ator-contador”, a história de um amor proibido revela discussões sobre questões de gênero, preconceito, violência e opressão do patriarcado. A montagem de maior repercussão de Agreste é da Cia. Razões Inversas, com direção de Marcio Aurélio e elenco formado por dois atores. Agreste foi publicado em livro junto com outros textos do autor: o díptico Body Art (A cicatriz é a flor e Dentro) e A refeição, em edição bilíngue, português-francês, pela Coleção Palco Sur Scène.
Uma das características do trabalho do dramaturgo é a sua presença na sala de ensaio. Apesar de comumente dizer que é um diretor bissexto, a experiência como encenador proporciona uma noção acurada sobre os meandros entre a dramaturgia, a encenação e a atuação. Reconhece que inicia os processos com excessos nos textos e que vai percebendo como as palavras escritas atravessam o corpo dos atores.
Os espetáculos da companhia Os Fofos Encenam, da qual Newton Moreno é um dos fundadores, são um capítulo fundamental na sua história. É com a companhia, por exemplo, que o artista coloca em prática a ideia de ir ao encontro do personagem na observação do outro, na convivência, investigando memórias. Isso aconteceu, por exemplo, em Assombrações do Recife Velho, de 2005 (para escrever esse espetáculo, adaptado livremente da obra de Gilberto Freyre, Moreno recebeu a bolsa Vitae de Artes, em 2003); Memória da cana, de 2009, um encontro entre Álbum de família, de Nelson Rodrigues, e a obra de Gilberto Freyre; e Terra de Santo, de 2012, que continua as investigações sobre a formação do povo brasileiro no cenário da cana-de-açúcar.
Mas a trajetória do pernambucano também é muito marcada pelo trabalho colaborativo de grupos importantes na cena de São Paulo, como a Cia. Livre, que em 2007 estreou Vemvai – O caminho dos mortos, trabalho assinado por Moreno em colaboração com a companhia a partir da livre recriação de mitos, cantos e rituais sobre as concepções de mortes indígenas; e a Cia. Teatro Balagan, que também em 2007 estreou Západ – A tragédia do poder, espetáculo cujo segundo movimento foi escrito por ele. Os outros dois movimentos eram de Alessandro Toller e Luís Alberto de Abreu.
O primeiro trabalho de Newton na retomada do teatro aos palcos presenciais desde a pandemia de Covid-19 é Sueño, que tem dramaturgia e direção assinadas pelo pernambucano, e é inspirado livremente em Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare. Usando o artifício do metateatro, a peça aborda os desmandos da ditadura no Chile e traça paralelos com a nossa complexa realidade. Para elaborar a dramaturgia, o autor esteve no Uruguai, Argentina, Chile e Peru, estudou os arquivos da Comissão Nacional da Verdade e revisitou obras como As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, e A elite do atraso, de Jessé de Souza. O espetáculo, que conta com algumas atuações impactantes, ganhou o prêmio APCA 2021 na categoria espetáculo presencial.
Pollyanna Diniz