(O homem para. Observa a trajetória que fazia. Começa a caminhar lentamente para trás, tentando colocar os pés na posição das pegadas anteriores. O movimento é muito lento e acompanha a silabação. O rapaz não para, e começa a cruzar com o homem a cada volta.)
HOMEM – A ro-da do tem-po não ro-da pra trás.
RAPAZ (girando)
HOMEM (continua) – A ro-da do tem-po não ro-da pra trás.
RAPAZ (mantendo o sentido horário, continua rodando e examinando a passagem do homem)
HOMEM (continua) – A ro-da do tem-po não ro-da pra trás.
RAPAZ (continua)
HOMEM (para, tentando perceber alguma mudança) – Nada.
RAPAZ (continua)
HOMEM (retoma o sentido horário, repentinamente) – A roda do tempo não para.
RAPAZ (continua caminhando e vai se emparelhando com o homem)
HOMEM (continua, repetidamente) – A roda do tempo não para. A roda do tempo não para...
RAPAZ (pressiona o andar, fazendo o homem acelerar por um longo tempo)
HOMEM (para) – Parou.
RAPAZ (estanca, logo atrás do homem)
HOMEM (permanece parado, tentando perceber alguma mudança) – Parou.
RAPAZ (movimenta-se, sem dar atenção, ainda um pouco tonto de tanto rodar)
HOMEM (percebe que apenas ele parou) – Não parou.
RAPAZ (continua cambaleando)
HOMEM (tenta caminhar, mas os pés permanecem grudados no chão) – Não posso continuar parado.
RAPAZ (tenta auxiliá-lo a mover os pés do chão)
HOMEM (faz um esforço imenso, tentando arrancar os pés do chão, em vão)
RAPAZ (desiste. Vai até a geringonça e pega um instrumento musical)
HOMEM (depois de muito esforço consegue se desgrudar do chão) – Eu vou... Conseguir!
RAPAZ (começa a tocar)
HOMEM (começa a se movimentar com certa leveza) – E agora o quê?
RAPAZ (tocando)
HOMEM (continua) – Em movimento tudo fica pior.
RAPAZ (tocando)
HOMEM (o movimento vai crescendo) – É difícil se concentrar.
RAPAZ (tocando)
HOMEM (o movimento vai se tornando uma dança frenética) – É difícil contar.
RAPAZ (tocando)
HOMEM (dançando) – É difícil controlar.
RAPAZ (tocando)
HOMEM (dançando) – É difícil calcular.
RAPAZ (tocando)
HOMEM (dançando) – Tudo tem que ser muito bem calculado.
RAPAZ (tocando)
HOMEM (dançando) – Cálculo perfeito!
RAPAZ (tocando)
HOMEM (dançando) – Feito o cálculo, perfeito!
RAPAZ (tocando)
HOMEM (dançando) – Perfeito!
RAPAZ (tocando)
HOMEM (deixa se seduzir pelo movimento e se entrega, abandonando o raciocínio) – Perfeito!... Perfeito!... Perfeito!... Perfeito!... Perfeito! ... Perfeito!... Perfeito!
RAPAZ (tocando)
HOMEM (depois de um longo momento, vai se extenuando) – Feito.
RAPAZ (tocando)
HOMEM (para de dançar) – Tudo já foi feito.
RAPAZ (para de tocar)
HOMEM (procura um livro na geringonça) – Pensamento.
RAPAZ (para)
(O homem acha um livro e começa a olhá-lo, folheá-lo, mas não o lê. O rapaz pega algumas roupas e agora é ele que começa a tentar se vestir, mas a ação é estéril. À medida que vai se vestindo, vai se desvestindo. Enquanto veste uma peça, desveste a outra.)
HOMEM (folheando o livro) – Um pensamento é sempre um pensamento.
RAPAZ (vestindo-se e desvestindo-se)
HOMEM (folheando o livro) – Uma ideia é sempre uma ideia.
RAPAZ (vestindo-se e desvestindo-se)
HOMEM (folheando o livro) – Sim.
RAPAZ (vestindo-se e desvestindo-se)
HOMEM (folheando o livro) – Uma ideia.
RAPAZ (vestindo-se e desvestindo-se)
HOMEM (folheando o livro) – Um pensamento.
RAPAZ (vestindo-se e desvestindo-se)
HOMEM (folheando o livro) – Mais eficaz.
RAPAZ (vestindo-se e desvestindo-se)
HOMEM (folheando o livro) – Daqui.
RAPAZ (vestindo-se e desvestindo-se)
HOMEM (folheando o livro) – Sem sair.
RAPAZ (no final desta ação longa e contínua, está exatamente igual ao começo dela)
(Pausa. Entreolham-se. O homem com as últimas palavras ainda na boca e o rapaz finalizando a tentativa estéril de sair. Congelados. Permanecem estáticos.)
HOMEM (procura uma caixa de fósforos na máquina e coloca fogo no livro) – Faz frio.
(Os dois permanecem em torno do fogo, estáticos, observando o livro queimar.)
RAPAZ (apanha a corda do início do espetáculo)
HOMEM (justificando a ação anterior) – Viver é importante.
RAPAZ (enquanto o livro ainda queima, começa a enrolar o homem na corda)
HOMEM – Abuso. Bestialidade. Covardia. Demagogia. Escuridão. Fanatismo. Ganância. Humilhação. Ingratidão. Jogo. Litígio. Morte. Nada. Ostracismo. Poder. Queixa. Roubo. Safadeza. Tirania. Ultraje. Vergonha. Xenofobia. Zero.
RAPAZ (enrolando)
HOMEM – Melhor assim.
RAPAZ (faz novamente o gesto de tentar apanhar o som que sai da boca do homem)
(Quando termina de falar, o homem está totalmente enrolado na corda, como no início do espetáculo.)
HOMEM (pausa) – Muito melhor assim.
RAPAZ (engole o som que pegava)
HOMEM (pausa) – Assim.
RAPAZ (depois de uma pausa, com sonoridade cavernosa, pronunciando sua única fala) – Sim.
(Torna a se ouvir o som da manifestação. O som vai se aproximando. O homem se deixa, aliviado. O rapaz volta para a máquina e desaparece nela.)
(Fragmento de Clausura)