luciana lyra

Recife - PE

Fragmento Teatral

(VI) Movimento da Anunciação de Morte

(Joana adianta-se ao encontro de Linda. Joana carrega um calunga, é seu filho.)

Joana: Quando meu mênstruo cessou dentro mim, criei bucho! Eu tô só com o mundo e peguei bucho dentro de mim. É um bucho do mundo.

Linda: (encabulada.) Eu não menstruo, não!

Joana: Oxe! O fio vermelho liga todas as mulheres!

Linda: Em mim não tem fio que liga, não, nem branco, nem azul, nem encarnado! (muda de assunto.) Olha, tu pegasse bucho foi?

Joana: Foi o mênstruo que cessou dentro de mim.

Linda: Tás segurando o mênstruo?

Joana: Tô segurando esse menino aqui. Quero esquecer que ele é meu.

Linda: Esse menino é teu?

Joana: Estar grávida é meu suplício, meu castigo, minha cruz, são meus nove meses.

Linda: E tua mãe?

Joana: Mãe foi quem me deu a vida e a morte. Mãe foi dada numa noite de luar, feito eu.
Quanto mais esticava o bucho de mãe, mais crescia a cara amargurada dela.

Linda: Esse menino é teu?

Joana: Quando o mênstruo cessou dentro de mim, veio Ceça, veio Índia, veio Davi, veio Gabrielzinho, veio o paraíso. Todos os menino nascem de mãe, nascem de terra, carece de banho pra limpá. Limpo tudo os meus menino. Banho pra limpar a terra, pra apagar a febre, o fogo. Dou chá de hortelã miúdo pra eles subi. Aí num vem mais, nem Ceça, nem Índia, nem Davi, nem Gabrielzinho. Dá banho para limpá, curá... Ediana, Edilene, Wedyson...

(Joana retorce a cabeça do calunga.)

Linda: Desse jeito tu vai matá teu menino?

Joana: Melhor seria estar três vezes em combate, com escudo e tudo, do que parir uma vez! Vou matá este menino. Não quero que o menino sofra com o mundo que criei. Não
quero sofrer com o menino.

(Avançam todas as Guerreiras em coro.)

Tânia: Olha essa mulher antes que ela desça sobre o filho a mão sangrenta.

Joana: Meus filho foram minha primeira experiência de não gostá.

Linda: Vai matá o menino.

Nanã: Vai matá a própria carne.

Canu: Era melhor nem ter conhecido o menino. Nem ter visto a cara dele.

Tânia: Mulher, tu desse a luz em vão?

Joana: Esse poder que tenho de matá me apavora.

Tânia: Não faz isso, mulher. Deixa eu te mostrá outro caminho.

Linda: Vai matá o anjinho.

Nanã: Tu vai esquecer que o anjo é teu.

Linda: Ouve o grito do filho?

Nanã: Vai matá o menino.

(As guerreiras continuam insistindo numa ladainha em frases soltas para evitar a tragédia. Canu toca um tambor. Na escuta, Joana vai acalmando e acariciando o filho.)

(Fragmento de Guerreiras)

Luciana Lyra é atriz, encenadora, dramaturga, escritora e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fundadora do estúdio Unaluna - Pesquisa e criação em arte e pesquisadora-líder do Motim - Mito, Rito e Cartografias Feministas nas Artes (CNPq).

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

O que pode a escrita de uma mulher que decide se opor ao sistema patriarcal? A dramaturgia de Luciana Lyra se arvora a questionar e friccionar a sociedade machista, misógina, que intenciona subjugar mentes e corpos de mulheres. Na sua escrita, as mulheres são as protagonistas de suas próprias histórias, se insurgindo contra situações estabelecidas à revelia dos seus desejos.

Uma das especificidades dessa dramaturgia assumidamente feminista é que a teia onde essas histórias se entrelaçam não é necessariamente colada à realidade cotidiana. A dramaturga, que é também atriz, encenadora, professora e escritora, explora os mitos, os rituais, muitas vezes estabelecendo suas personagens em tempos e espaços suspensos, indefinidos. As histórias ficcionais se misturam ainda às inspirações e trajetórias de mulheres reais, além de beberem na criação colaborativa que se dá nas salas de ensaio.

Um dos textos mais emblemáticos na trajetória como dramaturga é Guerreiras, de 2009, escrito a partir de um mote real: a batalha de Tejucupapo. Em 1646, 600 holandeses invadiram a vila de São Lourenço de Tejucupapo, na Zona da Mata pernambucana, para roubar mantimentos e dinheiro. As mulheres se organizaram e saíram vitoriosas do conflito, que marca a resistência contra a invasão holandesa no estado. Até os dias de hoje, a história da batalha é recontada na comunidade, especialmente por meio do espetáculo A batalha das heroínas, encenado pelas moradoras do local.

O texto escrito por Luciana Lyra com a colaboração das atrizes-criadoras Cris Rocha, Katia Daher, Simone Evaristo e Viviane Madu, que estreou no mesmo ano em que foi escrito, no Recife, com direção de Lyra, vai trançando camadas. As histórias da batalha, as lutas diárias das mulheres que vivem em Tejucupapo, os intentos das atrizes e o imaginário coletivo da figura da mulher guerreira estabelecido na cultura ocidental estão nos interstícios. Além disso, as personagens foram construídas também a partir do estudo das mitologias grega e africana e das cartas do tarô mitológico. O texto toca em questões como a ancestralidade, a maternidade, a sororidade e foi publicado em livro em 2010.

A criação dramatúrgica está intrinsecamente ligada ao trabalho de Luciana Lyra como pesquisadora, professora e encenadora. A pernambucana é docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes) do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IART/UERJ) e docente efetiva do Departamento de Ensino da Arte e Cultura Popular na mesma universidade. É também docente permanente no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e docente colaboradora do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Luciana Lyra é pós-doutora em Artes Cênicas pela UFRN e em Antropologia pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

Muitas de suas pesquisas acadêmicas se desdobram em criações textuais e encenações, como Fogo de Monturo, escrita durante o pós-doutoramento na UFRN. A peça foi finalista do Concurso de Dramaturgia Feminina, do Projeto La Scrittura Della Diferenza, organizado pela Cia. Metec Alegre, de Nápoles, na Itália, e estreou em 2015, no Recife. O texto traz a história das mulheres de Monturo, especialmente de Fátima, que migra do seu lugar de origem para a capital, e se rebela contra a violência dos militares. As mulheres de Monturo não se deixam encaixar nas histórias a que estariam destinadas: se libertam pelo conhecimento, pelo trabalho, pela descoberta sexual.

Quarança, peça que divide a publicação em livro com Fogo de Monturo, foi escrita em 2016 e estreou em 2017, em São Paulo. Na comunidade de Alereda, as mulheres são oprimidas e violentadas, e os seus corpos quarados ao sol, como as roupas que as lavadeiras de antigamente deixavam expostas para branquear. A heroína desse enredo é Rosa Ararin, inspirada em Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, brasileira que ajudou judeus a fugirem da Alemanha durante o Holocausto, e no personagem Diadorim, de Guimarães Rosa, além de carregar as influências das atrizes-criadoras. Rosa é a justiceira que abraça consigo a memória da mãe, das tias, da avó, das mulheres de Alereda. Assim como noutras peças de Luciana Lyra, a ancestralidade toma forma também no coro, reforçando a ideia de que nós, mulheres, nunca estamos sós.

Em Hipátia, um dos textos mais recentes, cuja leitura dramática está disponível no YouTube, a atualidade é cortante. Hipátia foi uma filósofa grega, matemática, que amava a ciência e o conhecimento. No texto de Lyra, a personagem explicita a ignorância de governantes que se dizem democráticos, mas defendem a Terra plana.

Luciana Lyra escreveu A droga da obediência (uma adaptação, em 1998), Annexo secreto (2004), Joana IN Cárcere (2005), Guerreiras (2009), Sobre homens e caranguejos (2012), Njilas (2013), Obscena (2015), Fogo de Monturo (2015), Quarança (2016), Por Louise ou a desejada virtude da resistência (2017), Lunik (2020), Josephina (2021) e Hipátia (2021). Todos esses textos foram encenados ou lidos publicamente. Ainda inéditos, a autora tem Ensaio para velhos pretos, Concerto para Antares, Guiomar, Anayde, Branca Senhora e Orimcurumim, além do roteiro Cemitério de pássaros.

Pollyanna Diniz

Luciana Lyra é atriz, encenadora, dramaturga, escritora e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fundadora do estúdio Unaluna - Pesquisa e criação em arte e pesquisadora-líder do Motim - Mito, Rito e Cartografias Feministas nas Artes (CNPq).

O que pode a escrita de uma mulher que decide se opor ao sistema patriarcal? A dramaturgia de Luciana Lyra se arvora a questionar e friccionar a sociedade machista, misógina, que intenciona subjugar mentes e corpos de mulheres. Na sua escrita, as mulheres são as protagonistas de suas próprias histórias, se insurgindo contra situações estabelecidas à revelia dos seus desejos.

Uma das especificidades dessa dramaturgia assumidamente feminista é que a teia onde essas histórias se entrelaçam não é necessariamente colada à realidade cotidiana. A dramaturga, que é também atriz, encenadora, professora e escritora, explora os mitos, os rituais, muitas vezes estabelecendo suas personagens em tempos e espaços suspensos, indefinidos. As histórias ficcionais se misturam ainda às inspirações e trajetórias de mulheres reais, além de beberem na criação colaborativa que se dá nas salas de ensaio.

Um dos textos mais emblemáticos na trajetória como dramaturga é Guerreiras, de 2009, escrito a partir de um mote real: a batalha de Tejucupapo. Em 1646, 600 holandeses invadiram a vila de São Lourenço de Tejucupapo, na Zona da Mata pernambucana, para roubar mantimentos e dinheiro. As mulheres se organizaram e saíram vitoriosas do conflito, que marca a resistência contra a invasão holandesa no estado. Até os dias de hoje, a história da batalha é recontada na comunidade, especialmente por meio do espetáculo A batalha das heroínas, encenado pelas moradoras do local.

O texto escrito por Luciana Lyra com a colaboração das atrizes-criadoras Cris Rocha, Katia Daher, Simone Evaristo e Viviane Madu, que estreou no mesmo ano em que foi escrito, no Recife, com direção de Lyra, vai trançando camadas. As histórias da batalha, as lutas diárias das mulheres que vivem em Tejucupapo, os intentos das atrizes e o imaginário coletivo da figura da mulher guerreira estabelecido na cultura ocidental estão nos interstícios. Além disso, as personagens foram construídas também a partir do estudo das mitologias grega e africana e das cartas do tarô mitológico. O texto toca em questões como a ancestralidade, a maternidade, a sororidade e foi publicado em livro em 2010.

A criação dramatúrgica está intrinsecamente ligada ao trabalho de Luciana Lyra como pesquisadora, professora e encenadora. A pernambucana é docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes) do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IART/UERJ) e docente efetiva do Departamento de Ensino da Arte e Cultura Popular na mesma universidade. É também docente permanente no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e docente colaboradora do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Luciana Lyra é pós-doutora em Artes Cênicas pela UFRN e em Antropologia pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

Muitas de suas pesquisas acadêmicas se desdobram em criações textuais e encenações, como Fogo de Monturo, escrita durante o pós-doutoramento na UFRN. A peça foi finalista do Concurso de Dramaturgia Feminina, do Projeto La Scrittura Della Diferenza, organizado pela Cia. Metec Alegre, de Nápoles, na Itália, e estreou em 2015, no Recife. O texto traz a história das mulheres de Monturo, especialmente de Fátima, que migra do seu lugar de origem para a capital, e se rebela contra a violência dos militares. As mulheres de Monturo não se deixam encaixar nas histórias a que estariam destinadas: se libertam pelo conhecimento, pelo trabalho, pela descoberta sexual.

Quarança, peça que divide a publicação em livro com Fogo de Monturo, foi escrita em 2016 e estreou em 2017, em São Paulo. Na comunidade de Alereda, as mulheres são oprimidas e violentadas, e os seus corpos quarados ao sol, como as roupas que as lavadeiras de antigamente deixavam expostas para branquear. A heroína desse enredo é Rosa Ararin, inspirada em Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, brasileira que ajudou judeus a fugirem da Alemanha durante o Holocausto, e no personagem Diadorim, de Guimarães Rosa, além de carregar as influências das atrizes-criadoras. Rosa é a justiceira que abraça consigo a memória da mãe, das tias, da avó, das mulheres de Alereda. Assim como noutras peças de Luciana Lyra, a ancestralidade toma forma também no coro, reforçando a ideia de que nós, mulheres, nunca estamos sós.

Em Hipátia, um dos textos mais recentes, cuja leitura dramática está disponível no YouTube, a atualidade é cortante. Hipátia foi uma filósofa grega, matemática, que amava a ciência e o conhecimento. No texto de Lyra, a personagem explicita a ignorância de governantes que se dizem democráticos, mas defendem a Terra plana.

Luciana Lyra escreveu A droga da obediência (uma adaptação, em 1998), Annexo secreto (2004), Joana IN Cárcere (2005), Guerreiras (2009), Sobre homens e caranguejos (2012), Njilas (2013), Obscena (2015), Fogo de Monturo (2015), Quarança (2016), Por Louise ou a desejada virtude da resistência (2017), Lunik (2020), Josephina (2021) e Hipátia (2021). Todos esses textos foram encenados ou lidos publicamente. Ainda inéditos, a autora tem Ensaio para velhos pretos, Concerto para Antares, Guiomar, Anayde, Branca Senhora e Orimcurumim, além do roteiro Cemitério de pássaros.

Pollyanna Diniz

(VI) Movimento da Anunciação de Morte

(Joana adianta-se ao encontro de Linda. Joana carrega um calunga, é seu filho.)

Joana: Quando meu mênstruo cessou dentro mim, criei bucho! Eu tô só com o mundo e peguei bucho dentro de mim. É um bucho do mundo.

Linda: (encabulada.) Eu não menstruo, não!

Joana: Oxe! O fio vermelho liga todas as mulheres!

Linda: Em mim não tem fio que liga, não, nem branco, nem azul, nem encarnado! (muda de assunto.) Olha, tu pegasse bucho foi?

Joana: Foi o mênstruo que cessou dentro de mim.

Linda: Tás segurando o mênstruo?

Joana: Tô segurando esse menino aqui. Quero esquecer que ele é meu.

Linda: Esse menino é teu?

Joana: Estar grávida é meu suplício, meu castigo, minha cruz, são meus nove meses.

Linda: E tua mãe?

Joana: Mãe foi quem me deu a vida e a morte. Mãe foi dada numa noite de luar, feito eu.
Quanto mais esticava o bucho de mãe, mais crescia a cara amargurada dela.

Linda: Esse menino é teu?

Joana: Quando o mênstruo cessou dentro de mim, veio Ceça, veio Índia, veio Davi, veio Gabrielzinho, veio o paraíso. Todos os menino nascem de mãe, nascem de terra, carece de banho pra limpá. Limpo tudo os meus menino. Banho pra limpar a terra, pra apagar a febre, o fogo. Dou chá de hortelã miúdo pra eles subi. Aí num vem mais, nem Ceça, nem Índia, nem Davi, nem Gabrielzinho. Dá banho para limpá, curá... Ediana, Edilene, Wedyson...

(Joana retorce a cabeça do calunga.)

Linda: Desse jeito tu vai matá teu menino?

Joana: Melhor seria estar três vezes em combate, com escudo e tudo, do que parir uma vez! Vou matá este menino. Não quero que o menino sofra com o mundo que criei. Não
quero sofrer com o menino.

(Avançam todas as Guerreiras em coro.)

Tânia: Olha essa mulher antes que ela desça sobre o filho a mão sangrenta.

Joana: Meus filho foram minha primeira experiência de não gostá.

Linda: Vai matá o menino.

Nanã: Vai matá a própria carne.

Canu: Era melhor nem ter conhecido o menino. Nem ter visto a cara dele.

Tânia: Mulher, tu desse a luz em vão?

Joana: Esse poder que tenho de matá me apavora.

Tânia: Não faz isso, mulher. Deixa eu te mostrá outro caminho.

Linda: Vai matá o anjinho.

Nanã: Tu vai esquecer que o anjo é teu.

Linda: Ouve o grito do filho?

Nanã: Vai matá o menino.

(As guerreiras continuam insistindo numa ladainha em frases soltas para evitar a tragédia. Canu toca um tambor. Na escuta, Joana vai acalmando e acariciando o filho.)

(Fragmento de Guerreiras)