As investigações cênicas de José Fernando Peixoto de Azevedo, tanto em suas encenações quanto em suas dramaturgias, forjam uma crítica perspectiva acerca de algumas das mais acirradas tensões, urgências e desigualdades de nosso tempo histórico. As destruições ocasionadas pelo capitalismo neoliberal, a violência racista sistematicamente cravada na formação social do Brasil (e do mundo moderno) e a arrasadora colonialidade, continuamente reformulada, estão entre as questões nucleares que José Fernando se dedica a pesquisar. O pensamento estético-político de Bertold Brecht é certamente um dos pilares fundamentais de suas criações, ao lado de um apurado uso de recursos e técnicas cinematográficos, convidando-nos, a partir de tais articulações, a repensar as imagens deste mundo.
José Fernando é dramaturgo, curador, diretor e pesquisador teatral. Doutorou-se pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em cuja tese refletiu sobre o teatro épico de Brecht. Já colaborou com diversos coletivos teatrais paulistanos, como Os Crespos, o Chai-na, e a Ordinária Companhia. Ensaísta, possui escritos que versam sobre história e estética do teatro brasileiro; poéticas, teatralidades e dramaturgias negras; além de reflexões filosóficas e sociológicas. Coordena a coleção Encruzilhada da editora Cobogó, pela qual foram publicadas recentes obras de Jota Mombaça e Leda Maria Martins. Publicou, pela editora n-1, o volume da coleção Pandemia, intitulado Eu, um crioulo. José Fernando também é professor na Escola de Arte Dramática e no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes também da Universidade de São Paulo. Da teoria à sala de ensaio, das conferências aos palcos, Azevedo vem se projetando como uma das referências significativas de nossas cenas contemporâneas.
A trajetória artística e acadêmica de Zé Fernando, como é popular e ternamente conhecido, está fortemente ligada à cidade de São Paulo, onde cofundou, em 1997, o Teatro de Narradores, com o qual atuou na direção e/ou na dramaturgia até 2016. O grupo, nascido dentro dos muros da USP, desde o princípio primou por uma leitura a contrapelo da história brasileira, discutindo opressões, apagamentos e as contradições que, no passado e no presente, estruturam mecanismos de injustiça social. Depois de sair da universidade, a observação e o diálogo com o povo trabalhador, sujeito a tanta exploração, foi delineando a linguagem do grupo, adensando, com efeito, a relação entre atividade teatral e o movimento da cidade. Tais perquirições se concretizaram, em especial, nos espetáculos Cidade Desmanche (2009); Cidade Fim – Cidade Coro – Cidade Reverso (2011) e Cidade Vodu (2016), cujas dramaturgias foram tecidas por Zé Fernando. Em síntese, o que se presencia nestas três obras é uma profunda intermidialidade (projeções, imagens, filmes, musicalidades e sonoridades, múltiplos dispositivos tecnológicos), que coloca em questão a própria cidade, suas estruturas físicas e afetivas, os diversos sujeitos que a constituem, as marginalizações ali presentes, as macro e micro-histórias que dali brotam, rediscutindo o caráter público da cidade. Quem tem direito a transitar e a viver plenamente na pólis? As textualidades, entre contundentes diálogos e narrativas, perfuram o real, incorporando depoimentos, relatos e memórias dos atores, de imigrantes e dos moradores dos bairros. Sem pretender qualquer realismo no trato poético, a dramaturgia parte do real para reinventar modos outros de ocupar a cidade. “Quais vínculos, mesmo de imaginação, somos capazes de produzir?”, nos questiona o grupo no programa do espetáculo Cidade Fim. Todas as peças foram encenadas em espaços não convencionais (nas ruas, nas diferentes sedes que o grupo já teve, nas ruínas da cidade, etc.), realizando desenhos de cena que interpelam diretamente o público, solicitam o seu deslocamento com os atores, convidam-no a ser efetivamente coautor do espetáculo a se fazer, envolvem-no em uma atmosfera multissensorial, estimulando-o, por fim, a rever o seu próprio corpo na cidade.
Zé Fernando é também um destacado criador e pensador dos teatros negros no Brasil. Nesta linha, as suas colaborações com Os Crespos são expressivas. O sobredito coletivo foi fundado como um grupo de estudos entre 2004 e 2005 também no contexto universitário da Escola de Arte Dramática da USP, denunciando, de antemão, a exclusão maciça da população negra nas universidades brasileiras. Os cinco artistas fundadores eram os únicos estudantes negros do curso naquele período. Ao longo do tempo, a investigação de teatralidades e dramaturgias negras foi consolidando os horizontes poéticos do grupo, nos quais as relações sociais e as identidades de pessoas negras no Brasil são redimensionadas, articulando neste processo questões e noções de gênero, classe, ancestralidade, aquilombamento e diáspora. Entre espetáculos teatrais, intervenções urbanas, publicações e debates, Os Crespos foram (e continuam a ser) agentes determinantes de uma nova paisagem teatral negra em São Paulo, inspirando grupos por todo o país. A presença de Zé Fernando (diga-se de passagem, ele é, até 2022, o único professor negro do curso) é parte substancial dessa história. Para o coletivo, o autor escreveu três peças, a saber: Ensaio sobre Carolina (2007), primeira montagem do grupo, Além do ponto (2011) e Cartas a Madame Satã (2014). Estes dois últimos espetáculos integram a trilogia “Dos desmanches aos sonhos”, cujas reflexões nucleares voltam-se para as afetividades, os desejos, as relações, as sexualidades e os amores vividos (ou socialmente vetados) entre pessoas negras. A montagem, em 2013, de Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas, texto da escritora Cidinha da Silva, é o segundo capítulo desta trilogia.
Em Ensaios..., a dramaturgia parte do vigoroso livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, para refletir, em suma, sobre os efeitos do escravagismo e da racialização na formação das classes, da miséria e da exclusão geográfico-simbólica que engolfa o povo negro no Brasil. Além do ponto fabula uma agridoce relação entre uma mulher e um homem negros. Os dois estão, repetidamente, a ensaiar o término de seu relacionamento. A cada ensaio (ou tentativa) de rompimento, eles expõem suas fragilidades, contradições e sutis sentimentos que mostram uma relação composta não de inteiros, mas de cacos, em que não há encaixes perfeitos. As cenas, entre diálogos e narrações, armam uma delicada tensão entre as possibilidades de ruptura e de reencontro entre estas duas pessoas. O que fica e o que se apaga (ou se abandona) de uma relação? Cartas a Madame Satã, por fim, se debruça sobre as homoafetividades de homens negros, abordando seus processos de subjetivação, suas carências e sensibilidades em uma sociedade que veta tais relações. Em síntese, são obras que situam os signos, as corporeidades e as epistemologias negras não apenas como temas, mas como princípios construtores de linguagens artísticas.
Zé Fernando ainda coordena a plataforma Sociedade Abolicionista de Teatro, cujo objetivo principal é possibilitar parcerias entre artistas, especialmente artistas pretos, para que possam realizar projetos poético-políticos. Entre as criações desta plataforma destaca-se Três pretos: valor de uso, estreada em 2018 com dramaturgia de Zé Fernando.
Guilherme Diniz