jéssica teixeira

Fortaleza - CE

Fragmento Teatral

FRAGMENTO 3

As cortinas se abrem. Um foco de luz branca, de um refletor posicionado na vara do proscênio, reflete no ciclorama branco. Um pouco da luz vaza, refletindo difusa numa grande escada branca com três degraus vazados, localizada logo abaixo do foco. Não há ninguém no foco. 

Voz off. Desliga as luzes, por favor. Black out. Obrigada. No breu, é melhor assim. Sem contato. Sem contornos. Apenas pela imagem da minha voz rouca e do meu sotaque cearense. Eu me chamo Ela. Bom... gosto de ir a lugares que nunca fui, conhecer estranhos, conversar com desconhecidos e falar sobre qualquer assunto: política, cinema, religião, futebol, psicanálise, medicina! Como no caso daquela garota – talvez vocês tenham ouvido falar – a filha do relojoeiro, dotada de uma perfeição intrigante e de uma exuberância indescritível. Ainda que eu pudesse falar de seu olhar com aquele brilho de olho de gente, sabe?! Cabelos impecáveis e uma voz de uma suavidade penetrante. Poderia falar de muitos outros atributos, mas esses eram suficientes para exercer sobre os homens de sua cidade um encanto que, inclusive, levou alguns à loucura.

O que muitas pessoas não percebiam era que ela, a filha do relojoeiro, havia nascido uma boneca. Talvez fosse por isso que era dona de encaixes tão precisos e engrenagens biologicamente eficazes. A água, a carne e o sangue que bombeava em seu corpo eram metáfora. Essa con-fusão encantava, sim, mas não posso dizer que não amedrontava também. E me faz perguntar se tudo isso é verdade ou o que é verdade de tudo isso. Ou será que importa isso tudo ser verdade?

Bom... mas, antes de tudo, preciso dizer a vocês, já que estamos nos conhecendo um pouco melhor agora, que, ao longo da minha vida, eu fui perdendo um pouco a paciência. Digo que perco a paciência, porque muitas vezes não tenho a oportunidade de falar primeiro, ou até de falar, porque ele sempre chega antes de mim. E, geralmente, ele chega gritando ou grunhindo estranhamente feito um rinoceronte. Difícil ele falar baixinho ou tranquilamente.

Ele só chega causando sentimentos extremos: medo, surpresa, dor, paralisia, incômodo, dó, repulsa, espanto, pavor. Fico pensando em como calar Ele, por um momento, ou pelo menos pedir para que Ele fale mais baixo, porque eu também quero conversar.

Eu queria que os encontros, as trocas, as aproximações fossem mais simples e informais. Mas eu percebo que qualquer movimento fora da linha vira tabu. Ou cena! Eu percebo que vira tabu e faço questão de que vire cena, mesmo quando eu – digo, Ela – é silenciada ou fica pra depois d’Ele. É foda!

FRAGMENTO 11

Música: “Concierto de Aranjuez: Adagio”, de Miles Davis.

Luz de pino sobre uma escultura fragmentada do corpo dEla, que aparece pendurada no topo, ao fundo e do lado direito do palco – entre a escada e a mesa.

Foco frontal redondo de luz âmbar. Ela está em posição esfíngica, deitada de lado, apoiada sobre o antebraço direito e com a mão esquerda sobre o chão, em frente à barriga. Todos os movimentos que Ela faz são muito lentos. Abre e fecha o olho. Olha para os lados. Olha para cima. Olha para baixo, inclinando o corpo para frente, até quase tocar o chão com a ponta do nariz. Move a perna esquerda para frente do corpo, de modo que o pé quase encosta na mão. Com o apoio do pé esquerdo e das duas mãos, levanta o bumbum o mais alto que consegue, com a lateral esquerda do corpo de frente para a plateia. Deixa as duas mãos próximas e os dois pés próximos para encolher-se de joelhos e sentada sobre os pés. Posição fetal, com exceção da cabeça, que olha para frente. Os cotovelos estão próximos à coxa e as palmas das mãos estão próximas do joelho. O corpo dEla forma uma imagem compactamente encaixada. Ela desencaixa numa alavancada e segue com o movimento lento até ficar em posição de engatinhar. Antes de parar nessa posição, Ela dá outra alavancada. Alavanca novamente, para retornar à posição compactada. Repete essa movimentação lenta e com alavancas três vezes.

Na terceira vez, à medida que Ela vai sentando sobre os pés para encaixar o corpo na posição compacta, Ela vai girando a cabeça e olhando para toda a plateia, até chegar com o olhar no último espectador, que está na sua ponta esquerda. Vira de frente. Desce os três degraus da escada engatinhando com o olho fixo em uma pessoa do público. Ao tocar no chão do palco, levanta-se e caminha até o centro mais rápido. Boceja. Ergue o braço direito na lateral do corpo e, quando chega num ângulo de 90o, para com rigidez. 

Foi na psicanálise que eu descobri como eu me referia ao meu corpo: Ele. (Cada vez que ela pronuncia o Ele, a partitura corporal de apontar para o próprio corpo varia em qualidades de movimentos fluidos e stacattos, já registrados anteriormente por Ela no espetáculo, formando uma partitura coreográfica específica de movimentos codificados.) E ela me perguntava: ele quem? E eu apontava para meu corpo e dizia: Ele! Como eu poderia achar que isso aqui era meu, se eu chamava ele de Ele?

E o que seria um corpo pra mim? Tanta coisa. Ou apenas um bolo de carne, talvez. 

Depois do nascimento dEle, a história muda o seu rumo e não segue tranquila. Houve muita violência. Violência na cirurgia. Violência nos erros de diagnósticos. Violência na descrença. Violência no silêncio, digo, negligência, quando viram Ele. Negligência. Não havia quem, minimamente, acreditasse que aqui (aponta para si com as duas mãos) poderia haver uma história banal e corriqueira, pela frente, como qualquer outra. Foram tantos erros médicos graves. Aplicados não só nEle, como também diagnosticados e aplicados em minha mãe. Peço licença, a cada um de vocês, para compartilhar uma carta escrita por ela em 1993.

Ela vai até a mesa, afasta o saco azul para o canto direito. Vai até a coxia, pega uma taça branca com água, para qualquer emergência que ela possa ter durante a cena. Senta na mesa. Pega três folhas de um documento datilografado por Vera, que estava escondido dentro da mesa, e lê secamente, na tentativa de não esboçar emoções, ainda que não tenha conseguido em nenhuma apresentação até o lançamento deste livro.

(Fragmento de E.L.A.)

Jéssica Teixeira é atriz, produtora, diretora e dramaturga.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

A relação com o corpo é um dos disparadores da criação dramatúrgica da cearense Jéssica Teixeira, nascida em 1993, em Fortaleza. Em Monga, texto inédito que deve ser levado à cena em 2022, o leitor é avisado de pronto: “Essa atriz que usa um figurino de mulher-gorila é dona e habitante de um corpo estranho. Ela possui uma deficiência física na coluna diagnosticada de fusão de arcos costais: vértebras e costelas fundidas e soldadas entre si, escoliose acentuada e lordose na região torácica”.

Licenciada em Teatro pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes também pela UFC, a artista que assume múltiplas funções – é ainda atriz, diretora, produtora e roteirista – lida cotidianamente com o incômodo que o seu corpo provoca nas pessoas, antes mesmo que ela possa dar bom dia ou pedir um café no boteco da esquina.

No teatro, experimentou estratégias diversas para subverter a regra de que o seu corpo sempre chega antes que ela mesma. Em seu trabalho de mais fôlego e repercussão, o solo E.L.A., o espetáculo começa no breu. O espectador é levado a estabelecer conexão com a voz da atriz e, em alguns lugares do país, o sotaque cearense é o primeiro estranhamento percebido, até que o público descobre que a protagonista da peça é uma pessoa com deficiência física.

A experiência da leitura da dramaturgia de Jéssica Teixeira – o texto E.L.A. está disponível em e-book gratuitamente – nos remete à encenação de uma maneira vertiginosa. Há orientações muito específicas sobre como a atriz age, os movimentos, a intenção do olhar ou do suspiro a cada momento do texto-espetáculo e especificações sobre todos os demais elementos: figurino, cenografia, iluminação, música. O leitor é munido com tantos subsídios que a criação das imagens vai se dando de forma recorrente no decorrer do texto.

A riqueza de detalhes relativos à encenação talvez aconteça porque a relação mais profunda com a escrita da dramaturgia veio com a decisão de que era chegado o momento de se apoderar do protagonismo no discurso do que iria à cena, de assumir com mais propriedade o que fazia sentido para ela levar aos palcos, depois da experiência de trabalhar colaborativamente com vários grupos e artistas da capital e do interior cearense. Para Teixeira, a escrita sempre esteve atrelada à montagem do espetáculo.

E.L.A., por exemplo, estreou em fevereiro de 2018 tendo como estruturadores a história pessoal da atriz e uma pesquisa sobre como os corpos não padrões são enxergados pela sociedade. Um dos trechos discorre sobre os elementos químicos que compõem os nossos corpos, questionando quanto valeria um corpo humano; outro trata sobre Josef Mengele, médico nazista responsável por experimentos macabros e pela morte de milhares de pessoas com deficiência física na Alemanha de Hitler.

Os dados de história geral são potencializados e alternados pelo conteúdo autobiográfico, pela franqueza da artista, pela dramaturgia que é crua e direta quando retrata as suas experiências e fala sobre o seu próprio corpo. Documentos de naturezas diversas viram dramaturgia, como uma carta da mãe relatando objetivamente os erros médicos a que foi submetida. Na peça, Jéssica se refere ao seu corpo sempre na terceira pessoa, como se conseguisse marcar um distanciamento de si mesma. “E ela me perguntava: ele quem? E eu apontava para meu corpo e dizia: Ele! Como eu poderia achar que isso aqui era meu, se eu chamava ele de Ele?”.

Em 2021, enquanto vivíamos a pandemia de Covid-19, a artista enveredou pelas experimentações audiovisuais em trabalhos que pulsavam teatralidade, como é o caso de Lugar de falta, vídeo que estreou na programação intitulada Cena Agora, do Itaú Cultural, que naquela edição tinha como tema Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, e O que tem a ver ostra com guacamole?, exibido na Todos os gêneros: mostra de arte e diversidade, também do Itaú Cultural. Os dois vídeos têm direção, roteiro e atuação de Jéssica Teixeira e, assim como todos os trabalhos encabeçados pela cearense, têm um cuidado particular no que diz respeito à acessibilidade, experimentando possibilidades, por exemplo, com relação à audiodescrição, que é incorporada ao roteiro.

Ainda em 2021, ampliando sua relação com o cinema, um projeto que seria um espetáculo foi transformado em curta-metragem diante das instabilidades provocadas pelo cenário de pandemia. O curta Curva sinuosa tem roteiro assinado por Jéssica Teixeira e Andreia Pires. Essa última fez a direção do filme. Outro projeto de cinema, gravado em 2021, é Às margens do buraco negro, com roteiro de Jéssica Teixeira, direção de Estela Lapponi, e um elenco que também é composto por artistas com deficiência, assim como Jéssica e Estela.

Ao longo da sua trajetória, uma das principais causas de Jéssica é a luta contra o capacitismo. E, na dramaturgia, há uma tentativa recorrente de diminuir os apagamentos e as invisibilidades do cotidiano da pessoa com deficiência, escrevendo a partir do seu próprio contexto. A possibilidade de, tendo lugar de fala, esgarçar os limites da provocação e da ironia é um dos recursos utilizados pela dramaturga. É o caso de Monga, que usa a imagem dessa mulher que se transforma em gorila, uma personagem de terror, fruto do ilusionismo, que era comum nos circos tradicionais e fazia as pessoas saírem correndo assustadas.

Nesse texto, ainda inédito, a dramaturga retoma e retrabalha trechos de Lugar de falta para falar a partir das perspectivas da vulnerabilidade em circunstâncias que podem ser distintas e múltiplas. A vulnerabilidade da deficiência, do corpo que não performa atendendo aos padrões, da doença, do envelhecimento. Como lidar com medos, com a fragilidade, com o que seria considerado fracasso numa sociedade que reprime a diversidade.

Nesse cenário, Jéssica questiona o que seria normalidade e o preconceito de quem enxerga a deficiência como um fardo, um castigo do divino, uma represália por algum malfeito em vidas passadas. Discute a hegemonia do belo estetizado pelo padrão, do saudável que é uma utopia que nunca será alcançada. A artista cutuca as pessoas “inteiras”, aquelas que acham que nada falta e não conseguem perceber potência na suposta ausência. Destinada a caminhar pelo lado contrário e a trazer o seu leitor-espectador junto, celebra a narrativa dos corpos que são tidos como estranhos, inclusive os que possuem deficiências, mas não só, ampliando o olhar para questões de raça e de gênero, inspirada, entre outros, por Paul B. Preciado, filósofo trans, uma das referências de pesquisa dos seus últimos trabalhos.

Pollyanna Diniz

Jéssica Teixeira é atriz, produtora, diretora e dramaturga.

A relação com o corpo é um dos disparadores da criação dramatúrgica da cearense Jéssica Teixeira, nascida em 1993, em Fortaleza. Em Monga, texto inédito que deve ser levado à cena em 2022, o leitor é avisado de pronto: “Essa atriz que usa um figurino de mulher-gorila é dona e habitante de um corpo estranho. Ela possui uma deficiência física na coluna diagnosticada de fusão de arcos costais: vértebras e costelas fundidas e soldadas entre si, escoliose acentuada e lordose na região torácica”.

Licenciada em Teatro pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes também pela UFC, a artista que assume múltiplas funções – é ainda atriz, diretora, produtora e roteirista – lida cotidianamente com o incômodo que o seu corpo provoca nas pessoas, antes mesmo que ela possa dar bom dia ou pedir um café no boteco da esquina.

No teatro, experimentou estratégias diversas para subverter a regra de que o seu corpo sempre chega antes que ela mesma. Em seu trabalho de mais fôlego e repercussão, o solo E.L.A., o espetáculo começa no breu. O espectador é levado a estabelecer conexão com a voz da atriz e, em alguns lugares do país, o sotaque cearense é o primeiro estranhamento percebido, até que o público descobre que a protagonista da peça é uma pessoa com deficiência física.

A experiência da leitura da dramaturgia de Jéssica Teixeira – o texto E.L.A. está disponível em e-book gratuitamente – nos remete à encenação de uma maneira vertiginosa. Há orientações muito específicas sobre como a atriz age, os movimentos, a intenção do olhar ou do suspiro a cada momento do texto-espetáculo e especificações sobre todos os demais elementos: figurino, cenografia, iluminação, música. O leitor é munido com tantos subsídios que a criação das imagens vai se dando de forma recorrente no decorrer do texto.

A riqueza de detalhes relativos à encenação talvez aconteça porque a relação mais profunda com a escrita da dramaturgia veio com a decisão de que era chegado o momento de se apoderar do protagonismo no discurso do que iria à cena, de assumir com mais propriedade o que fazia sentido para ela levar aos palcos, depois da experiência de trabalhar colaborativamente com vários grupos e artistas da capital e do interior cearense. Para Teixeira, a escrita sempre esteve atrelada à montagem do espetáculo.

E.L.A., por exemplo, estreou em fevereiro de 2018 tendo como estruturadores a história pessoal da atriz e uma pesquisa sobre como os corpos não padrões são enxergados pela sociedade. Um dos trechos discorre sobre os elementos químicos que compõem os nossos corpos, questionando quanto valeria um corpo humano; outro trata sobre Josef Mengele, médico nazista responsável por experimentos macabros e pela morte de milhares de pessoas com deficiência física na Alemanha de Hitler.

Os dados de história geral são potencializados e alternados pelo conteúdo autobiográfico, pela franqueza da artista, pela dramaturgia que é crua e direta quando retrata as suas experiências e fala sobre o seu próprio corpo. Documentos de naturezas diversas viram dramaturgia, como uma carta da mãe relatando objetivamente os erros médicos a que foi submetida. Na peça, Jéssica se refere ao seu corpo sempre na terceira pessoa, como se conseguisse marcar um distanciamento de si mesma. “E ela me perguntava: ele quem? E eu apontava para meu corpo e dizia: Ele! Como eu poderia achar que isso aqui era meu, se eu chamava ele de Ele?”.

Em 2021, enquanto vivíamos a pandemia de Covid-19, a artista enveredou pelas experimentações audiovisuais em trabalhos que pulsavam teatralidade, como é o caso de Lugar de falta, vídeo que estreou na programação intitulada Cena Agora, do Itaú Cultural, que naquela edição tinha como tema Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, e O que tem a ver ostra com guacamole?, exibido na Todos os gêneros: mostra de arte e diversidade, também do Itaú Cultural. Os dois vídeos têm direção, roteiro e atuação de Jéssica Teixeira e, assim como todos os trabalhos encabeçados pela cearense, têm um cuidado particular no que diz respeito à acessibilidade, experimentando possibilidades, por exemplo, com relação à audiodescrição, que é incorporada ao roteiro.

Ainda em 2021, ampliando sua relação com o cinema, um projeto que seria um espetáculo foi transformado em curta-metragem diante das instabilidades provocadas pelo cenário de pandemia. O curta Curva sinuosa tem roteiro assinado por Jéssica Teixeira e Andreia Pires. Essa última fez a direção do filme. Outro projeto de cinema, gravado em 2021, é Às margens do buraco negro, com roteiro de Jéssica Teixeira, direção de Estela Lapponi, e um elenco que também é composto por artistas com deficiência, assim como Jéssica e Estela.

Ao longo da sua trajetória, uma das principais causas de Jéssica é a luta contra o capacitismo. E, na dramaturgia, há uma tentativa recorrente de diminuir os apagamentos e as invisibilidades do cotidiano da pessoa com deficiência, escrevendo a partir do seu próprio contexto. A possibilidade de, tendo lugar de fala, esgarçar os limites da provocação e da ironia é um dos recursos utilizados pela dramaturga. É o caso de Monga, que usa a imagem dessa mulher que se transforma em gorila, uma personagem de terror, fruto do ilusionismo, que era comum nos circos tradicionais e fazia as pessoas saírem correndo assustadas.

Nesse texto, ainda inédito, a dramaturga retoma e retrabalha trechos de Lugar de falta para falar a partir das perspectivas da vulnerabilidade em circunstâncias que podem ser distintas e múltiplas. A vulnerabilidade da deficiência, do corpo que não performa atendendo aos padrões, da doença, do envelhecimento. Como lidar com medos, com a fragilidade, com o que seria considerado fracasso numa sociedade que reprime a diversidade.

Nesse cenário, Jéssica questiona o que seria normalidade e o preconceito de quem enxerga a deficiência como um fardo, um castigo do divino, uma represália por algum malfeito em vidas passadas. Discute a hegemonia do belo estetizado pelo padrão, do saudável que é uma utopia que nunca será alcançada. A artista cutuca as pessoas “inteiras”, aquelas que acham que nada falta e não conseguem perceber potência na suposta ausência. Destinada a caminhar pelo lado contrário e a trazer o seu leitor-espectador junto, celebra a narrativa dos corpos que são tidos como estranhos, inclusive os que possuem deficiências, mas não só, ampliando o olhar para questões de raça e de gênero, inspirada, entre outros, por Paul B. Preciado, filósofo trans, uma das referências de pesquisa dos seus últimos trabalhos.

Pollyanna Diniz

FRAGMENTO 3

As cortinas se abrem. Um foco de luz branca, de um refletor posicionado na vara do proscênio, reflete no ciclorama branco. Um pouco da luz vaza, refletindo difusa numa grande escada branca com três degraus vazados, localizada logo abaixo do foco. Não há ninguém no foco. 

Voz off. Desliga as luzes, por favor. Black out. Obrigada. No breu, é melhor assim. Sem contato. Sem contornos. Apenas pela imagem da minha voz rouca e do meu sotaque cearense. Eu me chamo Ela. Bom... gosto de ir a lugares que nunca fui, conhecer estranhos, conversar com desconhecidos e falar sobre qualquer assunto: política, cinema, religião, futebol, psicanálise, medicina! Como no caso daquela garota – talvez vocês tenham ouvido falar – a filha do relojoeiro, dotada de uma perfeição intrigante e de uma exuberância indescritível. Ainda que eu pudesse falar de seu olhar com aquele brilho de olho de gente, sabe?! Cabelos impecáveis e uma voz de uma suavidade penetrante. Poderia falar de muitos outros atributos, mas esses eram suficientes para exercer sobre os homens de sua cidade um encanto que, inclusive, levou alguns à loucura.

O que muitas pessoas não percebiam era que ela, a filha do relojoeiro, havia nascido uma boneca. Talvez fosse por isso que era dona de encaixes tão precisos e engrenagens biologicamente eficazes. A água, a carne e o sangue que bombeava em seu corpo eram metáfora. Essa con-fusão encantava, sim, mas não posso dizer que não amedrontava também. E me faz perguntar se tudo isso é verdade ou o que é verdade de tudo isso. Ou será que importa isso tudo ser verdade?

Bom... mas, antes de tudo, preciso dizer a vocês, já que estamos nos conhecendo um pouco melhor agora, que, ao longo da minha vida, eu fui perdendo um pouco a paciência. Digo que perco a paciência, porque muitas vezes não tenho a oportunidade de falar primeiro, ou até de falar, porque ele sempre chega antes de mim. E, geralmente, ele chega gritando ou grunhindo estranhamente feito um rinoceronte. Difícil ele falar baixinho ou tranquilamente.

Ele só chega causando sentimentos extremos: medo, surpresa, dor, paralisia, incômodo, dó, repulsa, espanto, pavor. Fico pensando em como calar Ele, por um momento, ou pelo menos pedir para que Ele fale mais baixo, porque eu também quero conversar.

Eu queria que os encontros, as trocas, as aproximações fossem mais simples e informais. Mas eu percebo que qualquer movimento fora da linha vira tabu. Ou cena! Eu percebo que vira tabu e faço questão de que vire cena, mesmo quando eu – digo, Ela – é silenciada ou fica pra depois d’Ele. É foda!

FRAGMENTO 11

Música: “Concierto de Aranjuez: Adagio”, de Miles Davis.

Luz de pino sobre uma escultura fragmentada do corpo dEla, que aparece pendurada no topo, ao fundo e do lado direito do palco – entre a escada e a mesa.

Foco frontal redondo de luz âmbar. Ela está em posição esfíngica, deitada de lado, apoiada sobre o antebraço direito e com a mão esquerda sobre o chão, em frente à barriga. Todos os movimentos que Ela faz são muito lentos. Abre e fecha o olho. Olha para os lados. Olha para cima. Olha para baixo, inclinando o corpo para frente, até quase tocar o chão com a ponta do nariz. Move a perna esquerda para frente do corpo, de modo que o pé quase encosta na mão. Com o apoio do pé esquerdo e das duas mãos, levanta o bumbum o mais alto que consegue, com a lateral esquerda do corpo de frente para a plateia. Deixa as duas mãos próximas e os dois pés próximos para encolher-se de joelhos e sentada sobre os pés. Posição fetal, com exceção da cabeça, que olha para frente. Os cotovelos estão próximos à coxa e as palmas das mãos estão próximas do joelho. O corpo dEla forma uma imagem compactamente encaixada. Ela desencaixa numa alavancada e segue com o movimento lento até ficar em posição de engatinhar. Antes de parar nessa posição, Ela dá outra alavancada. Alavanca novamente, para retornar à posição compactada. Repete essa movimentação lenta e com alavancas três vezes.

Na terceira vez, à medida que Ela vai sentando sobre os pés para encaixar o corpo na posição compacta, Ela vai girando a cabeça e olhando para toda a plateia, até chegar com o olhar no último espectador, que está na sua ponta esquerda. Vira de frente. Desce os três degraus da escada engatinhando com o olho fixo em uma pessoa do público. Ao tocar no chão do palco, levanta-se e caminha até o centro mais rápido. Boceja. Ergue o braço direito na lateral do corpo e, quando chega num ângulo de 90o, para com rigidez. 

Foi na psicanálise que eu descobri como eu me referia ao meu corpo: Ele. (Cada vez que ela pronuncia o Ele, a partitura corporal de apontar para o próprio corpo varia em qualidades de movimentos fluidos e stacattos, já registrados anteriormente por Ela no espetáculo, formando uma partitura coreográfica específica de movimentos codificados.) E ela me perguntava: ele quem? E eu apontava para meu corpo e dizia: Ele! Como eu poderia achar que isso aqui era meu, se eu chamava ele de Ele?

E o que seria um corpo pra mim? Tanta coisa. Ou apenas um bolo de carne, talvez. 

Depois do nascimento dEle, a história muda o seu rumo e não segue tranquila. Houve muita violência. Violência na cirurgia. Violência nos erros de diagnósticos. Violência na descrença. Violência no silêncio, digo, negligência, quando viram Ele. Negligência. Não havia quem, minimamente, acreditasse que aqui (aponta para si com as duas mãos) poderia haver uma história banal e corriqueira, pela frente, como qualquer outra. Foram tantos erros médicos graves. Aplicados não só nEle, como também diagnosticados e aplicados em minha mãe. Peço licença, a cada um de vocês, para compartilhar uma carta escrita por ela em 1993.

Ela vai até a mesa, afasta o saco azul para o canto direito. Vai até a coxia, pega uma taça branca com água, para qualquer emergência que ela possa ter durante a cena. Senta na mesa. Pega três folhas de um documento datilografado por Vera, que estava escondido dentro da mesa, e lê secamente, na tentativa de não esboçar emoções, ainda que não tenha conseguido em nenhuma apresentação até o lançamento deste livro.

(Fragmento de E.L.A.)