A relação com o corpo é um dos disparadores da criação dramatúrgica da cearense Jéssica Teixeira, nascida em 1993, em Fortaleza. Em Monga, texto inédito que deve ser levado à cena em 2022, o leitor é avisado de pronto: “Essa atriz que usa um figurino de mulher-gorila é dona e habitante de um corpo estranho. Ela possui uma deficiência física na coluna diagnosticada de fusão de arcos costais: vértebras e costelas fundidas e soldadas entre si, escoliose acentuada e lordose na região torácica”.
Licenciada em Teatro pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes também pela UFC, a artista que assume múltiplas funções – é ainda atriz, diretora, produtora e roteirista – lida cotidianamente com o incômodo que o seu corpo provoca nas pessoas, antes mesmo que ela possa dar bom dia ou pedir um café no boteco da esquina.
No teatro, experimentou estratégias diversas para subverter a regra de que o seu corpo sempre chega antes que ela mesma. Em seu trabalho de mais fôlego e repercussão, o solo E.L.A., o espetáculo começa no breu. O espectador é levado a estabelecer conexão com a voz da atriz e, em alguns lugares do país, o sotaque cearense é o primeiro estranhamento percebido, até que o público descobre que a protagonista da peça é uma pessoa com deficiência física.
A experiência da leitura da dramaturgia de Jéssica Teixeira – o texto E.L.A. está disponível em e-book gratuitamente – nos remete à encenação de uma maneira vertiginosa. Há orientações muito específicas sobre como a atriz age, os movimentos, a intenção do olhar ou do suspiro a cada momento do texto-espetáculo e especificações sobre todos os demais elementos: figurino, cenografia, iluminação, música. O leitor é munido com tantos subsídios que a criação das imagens vai se dando de forma recorrente no decorrer do texto.
A riqueza de detalhes relativos à encenação talvez aconteça porque a relação mais profunda com a escrita da dramaturgia veio com a decisão de que era chegado o momento de se apoderar do protagonismo no discurso do que iria à cena, de assumir com mais propriedade o que fazia sentido para ela levar aos palcos, depois da experiência de trabalhar colaborativamente com vários grupos e artistas da capital e do interior cearense. Para Teixeira, a escrita sempre esteve atrelada à montagem do espetáculo.
E.L.A., por exemplo, estreou em fevereiro de 2018 tendo como estruturadores a história pessoal da atriz e uma pesquisa sobre como os corpos não padrões são enxergados pela sociedade. Um dos trechos discorre sobre os elementos químicos que compõem os nossos corpos, questionando quanto valeria um corpo humano; outro trata sobre Josef Mengele, médico nazista responsável por experimentos macabros e pela morte de milhares de pessoas com deficiência física na Alemanha de Hitler.
Os dados de história geral são potencializados e alternados pelo conteúdo autobiográfico, pela franqueza da artista, pela dramaturgia que é crua e direta quando retrata as suas experiências e fala sobre o seu próprio corpo. Documentos de naturezas diversas viram dramaturgia, como uma carta da mãe relatando objetivamente os erros médicos a que foi submetida. Na peça, Jéssica se refere ao seu corpo sempre na terceira pessoa, como se conseguisse marcar um distanciamento de si mesma. “E ela me perguntava: ele quem? E eu apontava para meu corpo e dizia: Ele! Como eu poderia achar que isso aqui era meu, se eu chamava ele de Ele?”.
Em 2021, enquanto vivíamos a pandemia de Covid-19, a artista enveredou pelas experimentações audiovisuais em trabalhos que pulsavam teatralidade, como é o caso de Lugar de falta, vídeo que estreou na programação intitulada Cena Agora, do Itaú Cultural, que naquela edição tinha como tema Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, e O que tem a ver ostra com guacamole?, exibido na Todos os gêneros: mostra de arte e diversidade, também do Itaú Cultural. Os dois vídeos têm direção, roteiro e atuação de Jéssica Teixeira e, assim como todos os trabalhos encabeçados pela cearense, têm um cuidado particular no que diz respeito à acessibilidade, experimentando possibilidades, por exemplo, com relação à audiodescrição, que é incorporada ao roteiro.
Ainda em 2021, ampliando sua relação com o cinema, um projeto que seria um espetáculo foi transformado em curta-metragem diante das instabilidades provocadas pelo cenário de pandemia. O curta Curva sinuosa tem roteiro assinado por Jéssica Teixeira e Andreia Pires. Essa última fez a direção do filme. Outro projeto de cinema, gravado em 2021, é Às margens do buraco negro, com roteiro de Jéssica Teixeira, direção de Estela Lapponi, e um elenco que também é composto por artistas com deficiência, assim como Jéssica e Estela.
Ao longo da sua trajetória, uma das principais causas de Jéssica é a luta contra o capacitismo. E, na dramaturgia, há uma tentativa recorrente de diminuir os apagamentos e as invisibilidades do cotidiano da pessoa com deficiência, escrevendo a partir do seu próprio contexto. A possibilidade de, tendo lugar de fala, esgarçar os limites da provocação e da ironia é um dos recursos utilizados pela dramaturga. É o caso de Monga, que usa a imagem dessa mulher que se transforma em gorila, uma personagem de terror, fruto do ilusionismo, que era comum nos circos tradicionais e fazia as pessoas saírem correndo assustadas.
Nesse texto, ainda inédito, a dramaturga retoma e retrabalha trechos de Lugar de falta para falar a partir das perspectivas da vulnerabilidade em circunstâncias que podem ser distintas e múltiplas. A vulnerabilidade da deficiência, do corpo que não performa atendendo aos padrões, da doença, do envelhecimento. Como lidar com medos, com a fragilidade, com o que seria considerado fracasso numa sociedade que reprime a diversidade.
Nesse cenário, Jéssica questiona o que seria normalidade e o preconceito de quem enxerga a deficiência como um fardo, um castigo do divino, uma represália por algum malfeito em vidas passadas. Discute a hegemonia do belo estetizado pelo padrão, do saudável que é uma utopia que nunca será alcançada. A artista cutuca as pessoas “inteiras”, aquelas que acham que nada falta e não conseguem perceber potência na suposta ausência. Destinada a caminhar pelo lado contrário e a trazer o seu leitor-espectador junto, celebra a narrativa dos corpos que são tidos como estranhos, inclusive os que possuem deficiências, mas não só, ampliando o olhar para questões de raça e de gênero, inspirada, entre outros, por Paul B. Preciado, filósofo trans, uma das referências de pesquisa dos seus últimos trabalhos.
Pollyanna Diniz