fernando kike barbosa

Porto Alegre - RS

Fragmento Teatral

ELE
É agora.
Eu levo a mão no bolso
Pego a granada e de repente...
SOM DE BUZINA. FREADA BRUSCA. OS PASSAGEIROS GRITAM EM CORO. Sou jogado para frente. Caio sobre uma montanha de corpos. O pânico se instaura. Sou puxado, empurrado, arranhado, chutado. A granada salta do meu bolso e rola para baixo de um banco. Eu tento me livrar do bolo de braços e pernas. Me arrasto pra baixo do banco e estico o braço para tentar alcançá-la, mas um pé esmaga a minha mão direita. A granada rola para fora do meu campo de visão. Tento me levantar, mas sou derrubado outra vez. – Não empurra que todo mundo vai descer aqui! 
Então as portas se abrem e as pessoas começam a descer. Finalmente consigo ficar em pé e sou empurrado levado carregado pela turba porta afora. Tento voltar para o ônibus mas a polícia já faz o seu trabalho e sou interditado.
Não posso insistir. Correr o risco de ser descoberto antes de puxar o pino.
E agora, um outro circo já está montado.
Melhor adiar.
Por detrás das cabeças que formam o círculo de curiosos posso ver o atropelado.
Caído, com metade do corpo na rua e metade na calçada. Uma poça de sangue em volta da cabeça.
Parece morto!
Uma boa cena de cinema, embora bastante melancólica
Só mais uma morte simplória, acidental
Sem propósito
Um capricho do acaso
Uma pequena violência
Como tantas outras
Cotidianas
Silenciosas
Nada comparado ao poder de aniquilamento de que somos capazes
Inventamos a guerra para ter dignidade na morte
Grandiosidade na morte
Para sentir-se com o poder de Deus (de algum Deus) sobre a vida e a morte
E para a guerra precisamos de inimigos.
Desse outro que não é nosso semelhante
Alimento para nosso ódio
Válvula por onde cresce e se direciona a nossa violência

PASSANTE 3
As enfermeiras parecem saídas de uma câmara frigorífica.
Procedimento padrão!
– Eu sinto dores!

ENFERMEIRA
Mas é isso é muito normal. Afinal o senhor foi atropelado por um ônibus. Podia até ter morrido. Teve mais sorte que juízo. Tem que cuidar mais ao atravessar a rua! Mas não se preocupe, o senhor já está medicado. Daqui há pouco o remédio faz efeito e o senhor vai dormir.

PASSANTE 3
Fecho os olhos e já não estou aqui outra vez.
Vou atravessar a rua mas o sinal abre.
BUZINA. SOM SECO DA BATIDA.
Estou voando no ar, e bato a cabeça no meio-fio.
Eu corro para assistir ao meu atropelamento.
Junto meu corpo do asfalto seguro a minha cabeça.
Contemplo minha face e vejo o rosto de uma mulher morta.
– ELA FOI ATROPELADA! A MULHER DA ESQUINA!
Alguém passou correndo na frente da casa da minha família e avisou.
Eu, menino de calça curta
Corro junto com outros vizinhos e a tia que me criava
Na esquina caído o corpo da mulher a quem todos da vizinhança desprezavam
E a quem tantas vezes insultamos
A prostituta da casa pobre de madeira da esquina.
Recebia ali seus clientes.
Atiçados pelos comentários raivosos e de desprezo proferidos pelos vizinhos, pelas donas de casa temerosas por seus maridos,
eu e outras crianças da redondeza, subimos no terraço de um prédio e de lá jogamos
pedras, outras vezes sacos com mijo, no telhado da mulher perdida.
Às vezes ficamos vigiando a noite e quando entra algum homem na casa vamos até lá.
Nos aproximamos pé ante pé, nos colamos nas paredes e ficamos ali ouvindo os gemidos de prazer e de gozo. A gargalhada solta e retumbante da mulher parecia desafiar ainda mais a vizinhança. Era puta e era feliz.
Agora ela está morta na minha frente.
Nunca tinha visto de fato seu rosto.
Imaginei-o de muitas maneiras mas nunca assim tapado de sangue.
Subitamente sinto uma grande tristeza, uma pena inexplicável.
– Tão indefesa, tão frágil!
O atropelador fugiu e coincidentemente ninguém anotou a placa.
Alguns dizem que foi acidente, outros que foi vingança de mulher traída.
Eu choro de vergonha de mim mesmo.
Da nossa covardia, da nossa falta de compaixão.
Choro porque não tem mais volta.
Dias depois ninguém mais fala do assunto.
Não demora um mês e a velha casa de madeira é derrubada,
retirada da nossa vista como uma mancha de sujeira que foi removida.
E agora no seu lugar, na minha memória, tem um terreno baldio onde cresce mato e ervas daninhas.

ELE
Os policiais nos fazem recuar para a chegada da ambulância
Não tenho mais o que fazer nesse lugar
Não sei para onde ir
Mas sigo caminhando
É o centro da cidade
Dentro do emaranhado de prédios carros pessoas fumaça letreiros
Me vejo afundando como num mar revolto
E sou mais um corpo boiando sem direção
Como um pedaço de madeira podre, sobra de naufrágio
Sou mais um rosto feio anônimo triste cansado raivoso
Parado esperando ônibus
Sentado no parque jogando xadrez
Tomando cachaça numa espelunca
Estendendo a mão para pedir uma moeda
Cantando, dançando, vendendo CD
Olhando pela janela do 15° andar de um edifício
Fechado num apartamento solitário
Destilando minhas tristezas
Remoendo minhas frustrações, meu ódio
Esperando o meu momento de fúria
E os meus ‘15 minutos de fama’
Sou o refluxo desse mundo em que me afogo
Vômito de propagandas e luminosos da cidade
Sou ferida aberta em nossa carne comum
Mas que não dói mais
A notícia que caiu na rede
A preocupação nos aeroportos
Sou a outra face que não se oferece e que será a capa do jornal de amanhã
E o papel que embrulha o peixe de depois de amanhã
E depois
Coisa nenhuma
Esquecida
Perdida para sempre
Entre fragmentos de estrelas
Girando no pó do vento

(Fragmento de Pequenas violências silenciosas e cotidianas)

Fernando Kike Barbosa é dramaturgo, ator e diretor teatral.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Fernando Kike Barbosa é ator, diretor, dramaturgo e professor de teatro, formado em Letras (Tradução Inglês/Português) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Estudos da Literatura na mesma universidade. Iniciou sua trajetória artística em 1989, junto ao grupo de teatro Ói Nóis Aqui Traveiz, exercendo as funções de ator, diretor, oficineiro e produtor. Com o grupo, criou espetáculos tanto para a rua quanto para espaços fechados, manifestando continuamente um engajamento político em suas criações. Destacam-se trabalhos como Antígona – Ritos de paixão e morte (1990), Se não tem pão, comam bolo (1993) e Dr. Fausto (1994), pelo qual recebeu o Prêmio Açorianos de melhor ator-coadjuvante, no mesmo ano. 

Em 1997, passou a trabalhar com a Cia. Stravaganza, de Adriane Mottola, grupo com o qual segue até hoje se revezando nas funções de diretor, ator e dramaturgo. Foi junto a este coletivo que começou a escrever peças para teatro e recebeu seus maiores reconhecimentos enquanto dramaturgo, como foi o caso da obra Pequenas violências silenciosas e cotidianas, estreada em 2013, com sua direção. O texto recebeu o Prêmio Ivo Bender de Dramaturgia, em 2011, além dos Prêmio Braskem de Melhor Espetáculo do 21º Porto Alegre em Cena, e Prêmio Açorianos de Melhor Dramaturgia, ambos em 2014. 

A obra retrata um atropelamento contado sob diferentes pontos de vista. O acidente, que envolveu um ônibus e não teve vítimas fatais, serve de ponto de partida para falar sobre os pequenos grandes preconceitos cotidianos, apontando as violências diárias. Fala de desigualdade social, desemprego, desesperança, racismo, homofobia, gordofobia e machismo, denunciando a hipocrisia e os preconceitos que regem as relações humanas. A peça, que circulou pelo Brasil com o Festival Palco Giratório, em 2016, é construída por meio de personagens “passantes”, que operam como vozes fragmentadas e enunciadoras do discurso que vai se construindo na junção destes pedaços, destes personagens estilhaçados. Há uma fábula, mas é mais importante o como ela se constrói e as diferentes camadas que o texto desenha do que o próprio conflito central. Fala também de desejo, de amor, de desistência, de morte, de uma explosão terrorista que quase aconteceu. Fala sobre a possibilidade do fim.

"A minha experiência com dramaturgia surgiu de forma natural na minha trajetória, como extensão do meu trabalho de ator e diretor. Minha formação esteve ligada à criação de cenas através da técnica da improvisação e da criação coletiva, o que na prática requer do ator sua parcela de autoria, tanto na dramaturgia como na concepção da cena. Assim, a minha dramaturgia é atravessada naturalmente pelo meu olhar de ator e diretor. Quando escrevo, procuro sentir se determinada palavra, ou frase, ficará bem na boca do ator, se aquilo tem um bom ritmo ou não. Digo o texto em voz alta para experimentar se eu, como ator, gostaria de dizer a frase daquela maneira, e assim por diante.” (Fernando Kike Barbosa)

Em paralelo às experimentações com a Cia. Stravaganza, Fernando Kike Barbosa também atua, dirige e escreve em parceria com outras companhias e colaboradores. Cabe destacar as peças Circo de horrores e maravilhas e Zona Paraíso, ambas escritas com Vera Parenza, em 2012. Circo de horrores e maravilhas foi montada pelo grupo Oigalê para o teatro de rua, trazendo a questão das diferenças e da exclusão por meio de figuras recorrentes nos circos de horrores. Zona Paraíso foi encenada pelo grupo Povo da Rua, fazendo uma releitura irreverente a respeito da criação do mundo ao mesclar, com humor, personagens bíblicos, como Deus, Adão, Eva e a Serpente, a figuras como Lilith, que poderia ter sido a primeira mulher de Adão. A obra mescla canções a diálogos ágeis e textos ditos por personagens contadores, que se dirigem diretamente ao espectador, além da figura do coro, atestando o caráter musical e versátil que o texto propõe.

Escreveu também a peça musical Pompeu Homero – a saga de um homem comum (2015), montagem da Mosaico Cultural e Banda Capitão Rodrigo, com direção de Liane Venturella. A obra transita entre a música e o teatro, chegando ao espectador sob a forma de uma ópera-rock sobre Pompeu Homero, um assassino que assume a máscara de justiceiro social. No mesmo ano, escreveu e dirigiu A mulher do atirador de facas, encenada pelo Grupo Famili’arte, na qual é feita uma homenagem a esta profissão que gera medo, curiosidade e superação, associando o risco deste número de circo aos nossos pequenos grandes riscos cotidianos. 

Como dramaturgo, também adaptou para o teatro algumas obras narrativas. É o caso de Homem Mãe, baseada no romance O filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe, encenada por Barbosa em 2016. A peça trata de temas já presentes na obra original, enfatizando o posicionamento político do dramaturgo ao trazer assuntos como o preconceito, o fanatismo religioso, a intolerância e o machismo, misturados a uma história em que o amor e o afeto ainda têm lugar. É autor e diretor do monólogo O sertão em mim (2017), feito a partir de fragmentos da obra Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, que traz questões sobre a relação do homem com o mundo, usando a metáfora dos demônios que assolam o sertão para falar dos demônios que existem em cada um de nós. Em 2021, traduziu e adaptou os contos “Girl e My Mother”, de Jamaica Kincaid, para o formato de teatro virtual, construindo junto à Cia. Stravaganza a obra 9 Saias, sob sua direção. Neste trabalho, o coletivo parte dos contos de Kincaid para revisitar suas próprias histórias e memórias, construindo uma obra que reúne elementos autobiográficos do elenco para refletir sobre nossa sociedade, apontando para questões como a homofobia, a misoginia e o racismo. 

"A dramaturgia surgiu também como necessidade de encontrar uma voz própria, de dizer coisas que me interessam e me afetam. Nesse sentido, posso dizer que minha relação com o teatro sempre esteve vinculada à ideia de atuação política, de arte como possibilidade de interferência e de transformação social. Assim, escrevo buscando me equilibrar entre o político e a poesia, entendendo ambos como os dois lados da mesma moeda.” (Fernando Kike Barbosa)

Assim, como podemos constatar, a obra de Fernando Kike Barbosa é permeada pelo olhar de um artista de teatro inquieto, que transita entre diferentes funções da criação teatral. Suas peças têm ênfase em questões políticas, sociais e poéticas, se desafiando continuamente para novas possibilidades de escrita e atuação. 

Camila Bauer

Fernando Kike Barbosa é dramaturgo, ator e diretor teatral.

Fernando Kike Barbosa é ator, diretor, dramaturgo e professor de teatro, formado em Letras (Tradução Inglês/Português) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Estudos da Literatura na mesma universidade. Iniciou sua trajetória artística em 1989, junto ao grupo de teatro Ói Nóis Aqui Traveiz, exercendo as funções de ator, diretor, oficineiro e produtor. Com o grupo, criou espetáculos tanto para a rua quanto para espaços fechados, manifestando continuamente um engajamento político em suas criações. Destacam-se trabalhos como Antígona – Ritos de paixão e morte (1990), Se não tem pão, comam bolo (1993) e Dr. Fausto (1994), pelo qual recebeu o Prêmio Açorianos de melhor ator-coadjuvante, no mesmo ano. 

Em 1997, passou a trabalhar com a Cia. Stravaganza, de Adriane Mottola, grupo com o qual segue até hoje se revezando nas funções de diretor, ator e dramaturgo. Foi junto a este coletivo que começou a escrever peças para teatro e recebeu seus maiores reconhecimentos enquanto dramaturgo, como foi o caso da obra Pequenas violências silenciosas e cotidianas, estreada em 2013, com sua direção. O texto recebeu o Prêmio Ivo Bender de Dramaturgia, em 2011, além dos Prêmio Braskem de Melhor Espetáculo do 21º Porto Alegre em Cena, e Prêmio Açorianos de Melhor Dramaturgia, ambos em 2014. 

A obra retrata um atropelamento contado sob diferentes pontos de vista. O acidente, que envolveu um ônibus e não teve vítimas fatais, serve de ponto de partida para falar sobre os pequenos grandes preconceitos cotidianos, apontando as violências diárias. Fala de desigualdade social, desemprego, desesperança, racismo, homofobia, gordofobia e machismo, denunciando a hipocrisia e os preconceitos que regem as relações humanas. A peça, que circulou pelo Brasil com o Festival Palco Giratório, em 2016, é construída por meio de personagens “passantes”, que operam como vozes fragmentadas e enunciadoras do discurso que vai se construindo na junção destes pedaços, destes personagens estilhaçados. Há uma fábula, mas é mais importante o como ela se constrói e as diferentes camadas que o texto desenha do que o próprio conflito central. Fala também de desejo, de amor, de desistência, de morte, de uma explosão terrorista que quase aconteceu. Fala sobre a possibilidade do fim.

"A minha experiência com dramaturgia surgiu de forma natural na minha trajetória, como extensão do meu trabalho de ator e diretor. Minha formação esteve ligada à criação de cenas através da técnica da improvisação e da criação coletiva, o que na prática requer do ator sua parcela de autoria, tanto na dramaturgia como na concepção da cena. Assim, a minha dramaturgia é atravessada naturalmente pelo meu olhar de ator e diretor. Quando escrevo, procuro sentir se determinada palavra, ou frase, ficará bem na boca do ator, se aquilo tem um bom ritmo ou não. Digo o texto em voz alta para experimentar se eu, como ator, gostaria de dizer a frase daquela maneira, e assim por diante.” (Fernando Kike Barbosa)

Em paralelo às experimentações com a Cia. Stravaganza, Fernando Kike Barbosa também atua, dirige e escreve em parceria com outras companhias e colaboradores. Cabe destacar as peças Circo de horrores e maravilhas e Zona Paraíso, ambas escritas com Vera Parenza, em 2012. Circo de horrores e maravilhas foi montada pelo grupo Oigalê para o teatro de rua, trazendo a questão das diferenças e da exclusão por meio de figuras recorrentes nos circos de horrores. Zona Paraíso foi encenada pelo grupo Povo da Rua, fazendo uma releitura irreverente a respeito da criação do mundo ao mesclar, com humor, personagens bíblicos, como Deus, Adão, Eva e a Serpente, a figuras como Lilith, que poderia ter sido a primeira mulher de Adão. A obra mescla canções a diálogos ágeis e textos ditos por personagens contadores, que se dirigem diretamente ao espectador, além da figura do coro, atestando o caráter musical e versátil que o texto propõe.

Escreveu também a peça musical Pompeu Homero – a saga de um homem comum (2015), montagem da Mosaico Cultural e Banda Capitão Rodrigo, com direção de Liane Venturella. A obra transita entre a música e o teatro, chegando ao espectador sob a forma de uma ópera-rock sobre Pompeu Homero, um assassino que assume a máscara de justiceiro social. No mesmo ano, escreveu e dirigiu A mulher do atirador de facas, encenada pelo Grupo Famili’arte, na qual é feita uma homenagem a esta profissão que gera medo, curiosidade e superação, associando o risco deste número de circo aos nossos pequenos grandes riscos cotidianos. 

Como dramaturgo, também adaptou para o teatro algumas obras narrativas. É o caso de Homem Mãe, baseada no romance O filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe, encenada por Barbosa em 2016. A peça trata de temas já presentes na obra original, enfatizando o posicionamento político do dramaturgo ao trazer assuntos como o preconceito, o fanatismo religioso, a intolerância e o machismo, misturados a uma história em que o amor e o afeto ainda têm lugar. É autor e diretor do monólogo O sertão em mim (2017), feito a partir de fragmentos da obra Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, que traz questões sobre a relação do homem com o mundo, usando a metáfora dos demônios que assolam o sertão para falar dos demônios que existem em cada um de nós. Em 2021, traduziu e adaptou os contos “Girl e My Mother”, de Jamaica Kincaid, para o formato de teatro virtual, construindo junto à Cia. Stravaganza a obra 9 Saias, sob sua direção. Neste trabalho, o coletivo parte dos contos de Kincaid para revisitar suas próprias histórias e memórias, construindo uma obra que reúne elementos autobiográficos do elenco para refletir sobre nossa sociedade, apontando para questões como a homofobia, a misoginia e o racismo. 

"A dramaturgia surgiu também como necessidade de encontrar uma voz própria, de dizer coisas que me interessam e me afetam. Nesse sentido, posso dizer que minha relação com o teatro sempre esteve vinculada à ideia de atuação política, de arte como possibilidade de interferência e de transformação social. Assim, escrevo buscando me equilibrar entre o político e a poesia, entendendo ambos como os dois lados da mesma moeda.” (Fernando Kike Barbosa)

Assim, como podemos constatar, a obra de Fernando Kike Barbosa é permeada pelo olhar de um artista de teatro inquieto, que transita entre diferentes funções da criação teatral. Suas peças têm ênfase em questões políticas, sociais e poéticas, se desafiando continuamente para novas possibilidades de escrita e atuação. 

Camila Bauer

ELE
É agora.
Eu levo a mão no bolso
Pego a granada e de repente...
SOM DE BUZINA. FREADA BRUSCA. OS PASSAGEIROS GRITAM EM CORO. Sou jogado para frente. Caio sobre uma montanha de corpos. O pânico se instaura. Sou puxado, empurrado, arranhado, chutado. A granada salta do meu bolso e rola para baixo de um banco. Eu tento me livrar do bolo de braços e pernas. Me arrasto pra baixo do banco e estico o braço para tentar alcançá-la, mas um pé esmaga a minha mão direita. A granada rola para fora do meu campo de visão. Tento me levantar, mas sou derrubado outra vez. – Não empurra que todo mundo vai descer aqui! 
Então as portas se abrem e as pessoas começam a descer. Finalmente consigo ficar em pé e sou empurrado levado carregado pela turba porta afora. Tento voltar para o ônibus mas a polícia já faz o seu trabalho e sou interditado.
Não posso insistir. Correr o risco de ser descoberto antes de puxar o pino.
E agora, um outro circo já está montado.
Melhor adiar.
Por detrás das cabeças que formam o círculo de curiosos posso ver o atropelado.
Caído, com metade do corpo na rua e metade na calçada. Uma poça de sangue em volta da cabeça.
Parece morto!
Uma boa cena de cinema, embora bastante melancólica
Só mais uma morte simplória, acidental
Sem propósito
Um capricho do acaso
Uma pequena violência
Como tantas outras
Cotidianas
Silenciosas
Nada comparado ao poder de aniquilamento de que somos capazes
Inventamos a guerra para ter dignidade na morte
Grandiosidade na morte
Para sentir-se com o poder de Deus (de algum Deus) sobre a vida e a morte
E para a guerra precisamos de inimigos.
Desse outro que não é nosso semelhante
Alimento para nosso ódio
Válvula por onde cresce e se direciona a nossa violência

PASSANTE 3
As enfermeiras parecem saídas de uma câmara frigorífica.
Procedimento padrão!
– Eu sinto dores!

ENFERMEIRA
Mas é isso é muito normal. Afinal o senhor foi atropelado por um ônibus. Podia até ter morrido. Teve mais sorte que juízo. Tem que cuidar mais ao atravessar a rua! Mas não se preocupe, o senhor já está medicado. Daqui há pouco o remédio faz efeito e o senhor vai dormir.

PASSANTE 3
Fecho os olhos e já não estou aqui outra vez.
Vou atravessar a rua mas o sinal abre.
BUZINA. SOM SECO DA BATIDA.
Estou voando no ar, e bato a cabeça no meio-fio.
Eu corro para assistir ao meu atropelamento.
Junto meu corpo do asfalto seguro a minha cabeça.
Contemplo minha face e vejo o rosto de uma mulher morta.
– ELA FOI ATROPELADA! A MULHER DA ESQUINA!
Alguém passou correndo na frente da casa da minha família e avisou.
Eu, menino de calça curta
Corro junto com outros vizinhos e a tia que me criava
Na esquina caído o corpo da mulher a quem todos da vizinhança desprezavam
E a quem tantas vezes insultamos
A prostituta da casa pobre de madeira da esquina.
Recebia ali seus clientes.
Atiçados pelos comentários raivosos e de desprezo proferidos pelos vizinhos, pelas donas de casa temerosas por seus maridos,
eu e outras crianças da redondeza, subimos no terraço de um prédio e de lá jogamos
pedras, outras vezes sacos com mijo, no telhado da mulher perdida.
Às vezes ficamos vigiando a noite e quando entra algum homem na casa vamos até lá.
Nos aproximamos pé ante pé, nos colamos nas paredes e ficamos ali ouvindo os gemidos de prazer e de gozo. A gargalhada solta e retumbante da mulher parecia desafiar ainda mais a vizinhança. Era puta e era feliz.
Agora ela está morta na minha frente.
Nunca tinha visto de fato seu rosto.
Imaginei-o de muitas maneiras mas nunca assim tapado de sangue.
Subitamente sinto uma grande tristeza, uma pena inexplicável.
– Tão indefesa, tão frágil!
O atropelador fugiu e coincidentemente ninguém anotou a placa.
Alguns dizem que foi acidente, outros que foi vingança de mulher traída.
Eu choro de vergonha de mim mesmo.
Da nossa covardia, da nossa falta de compaixão.
Choro porque não tem mais volta.
Dias depois ninguém mais fala do assunto.
Não demora um mês e a velha casa de madeira é derrubada,
retirada da nossa vista como uma mancha de sujeira que foi removida.
E agora no seu lugar, na minha memória, tem um terreno baldio onde cresce mato e ervas daninhas.

ELE
Os policiais nos fazem recuar para a chegada da ambulância
Não tenho mais o que fazer nesse lugar
Não sei para onde ir
Mas sigo caminhando
É o centro da cidade
Dentro do emaranhado de prédios carros pessoas fumaça letreiros
Me vejo afundando como num mar revolto
E sou mais um corpo boiando sem direção
Como um pedaço de madeira podre, sobra de naufrágio
Sou mais um rosto feio anônimo triste cansado raivoso
Parado esperando ônibus
Sentado no parque jogando xadrez
Tomando cachaça numa espelunca
Estendendo a mão para pedir uma moeda
Cantando, dançando, vendendo CD
Olhando pela janela do 15° andar de um edifício
Fechado num apartamento solitário
Destilando minhas tristezas
Remoendo minhas frustrações, meu ódio
Esperando o meu momento de fúria
E os meus ‘15 minutos de fama’
Sou o refluxo desse mundo em que me afogo
Vômito de propagandas e luminosos da cidade
Sou ferida aberta em nossa carne comum
Mas que não dói mais
A notícia que caiu na rede
A preocupação nos aeroportos
Sou a outra face que não se oferece e que será a capa do jornal de amanhã
E o papel que embrulha o peixe de depois de amanhã
E depois
Coisa nenhuma
Esquecida
Perdida para sempre
Entre fragmentos de estrelas
Girando no pó do vento

(Fragmento de Pequenas violências silenciosas e cotidianas)