Fernando Kike Barbosa é ator, diretor, dramaturgo e professor de teatro, formado em Letras (Tradução Inglês/Português) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Estudos da Literatura na mesma universidade. Iniciou sua trajetória artística em 1989, junto ao grupo de teatro Ói Nóis Aqui Traveiz, exercendo as funções de ator, diretor, oficineiro e produtor. Com o grupo, criou espetáculos tanto para a rua quanto para espaços fechados, manifestando continuamente um engajamento político em suas criações. Destacam-se trabalhos como Antígona – Ritos de paixão e morte (1990), Se não tem pão, comam bolo (1993) e Dr. Fausto (1994), pelo qual recebeu o Prêmio Açorianos de melhor ator-coadjuvante, no mesmo ano.
Em 1997, passou a trabalhar com a Cia. Stravaganza, de Adriane Mottola, grupo com o qual segue até hoje se revezando nas funções de diretor, ator e dramaturgo. Foi junto a este coletivo que começou a escrever peças para teatro e recebeu seus maiores reconhecimentos enquanto dramaturgo, como foi o caso da obra Pequenas violências silenciosas e cotidianas, estreada em 2013, com sua direção. O texto recebeu o Prêmio Ivo Bender de Dramaturgia, em 2011, além dos Prêmio Braskem de Melhor Espetáculo do 21º Porto Alegre em Cena, e Prêmio Açorianos de Melhor Dramaturgia, ambos em 2014.
A obra retrata um atropelamento contado sob diferentes pontos de vista. O acidente, que envolveu um ônibus e não teve vítimas fatais, serve de ponto de partida para falar sobre os pequenos grandes preconceitos cotidianos, apontando as violências diárias. Fala de desigualdade social, desemprego, desesperança, racismo, homofobia, gordofobia e machismo, denunciando a hipocrisia e os preconceitos que regem as relações humanas. A peça, que circulou pelo Brasil com o Festival Palco Giratório, em 2016, é construída por meio de personagens “passantes”, que operam como vozes fragmentadas e enunciadoras do discurso que vai se construindo na junção destes pedaços, destes personagens estilhaçados. Há uma fábula, mas é mais importante o como ela se constrói e as diferentes camadas que o texto desenha do que o próprio conflito central. Fala também de desejo, de amor, de desistência, de morte, de uma explosão terrorista que quase aconteceu. Fala sobre a possibilidade do fim.
"A minha experiência com dramaturgia surgiu de forma natural na minha trajetória, como extensão do meu trabalho de ator e diretor. Minha formação esteve ligada à criação de cenas através da técnica da improvisação e da criação coletiva, o que na prática requer do ator sua parcela de autoria, tanto na dramaturgia como na concepção da cena. Assim, a minha dramaturgia é atravessada naturalmente pelo meu olhar de ator e diretor. Quando escrevo, procuro sentir se determinada palavra, ou frase, ficará bem na boca do ator, se aquilo tem um bom ritmo ou não. Digo o texto em voz alta para experimentar se eu, como ator, gostaria de dizer a frase daquela maneira, e assim por diante.” (Fernando Kike Barbosa)
Em paralelo às experimentações com a Cia. Stravaganza, Fernando Kike Barbosa também atua, dirige e escreve em parceria com outras companhias e colaboradores. Cabe destacar as peças Circo de horrores e maravilhas e Zona Paraíso, ambas escritas com Vera Parenza, em 2012. Circo de horrores e maravilhas foi montada pelo grupo Oigalê para o teatro de rua, trazendo a questão das diferenças e da exclusão por meio de figuras recorrentes nos circos de horrores. Zona Paraíso foi encenada pelo grupo Povo da Rua, fazendo uma releitura irreverente a respeito da criação do mundo ao mesclar, com humor, personagens bíblicos, como Deus, Adão, Eva e a Serpente, a figuras como Lilith, que poderia ter sido a primeira mulher de Adão. A obra mescla canções a diálogos ágeis e textos ditos por personagens contadores, que se dirigem diretamente ao espectador, além da figura do coro, atestando o caráter musical e versátil que o texto propõe.
Escreveu também a peça musical Pompeu Homero – a saga de um homem comum (2015), montagem da Mosaico Cultural e Banda Capitão Rodrigo, com direção de Liane Venturella. A obra transita entre a música e o teatro, chegando ao espectador sob a forma de uma ópera-rock sobre Pompeu Homero, um assassino que assume a máscara de justiceiro social. No mesmo ano, escreveu e dirigiu A mulher do atirador de facas, encenada pelo Grupo Famili’arte, na qual é feita uma homenagem a esta profissão que gera medo, curiosidade e superação, associando o risco deste número de circo aos nossos pequenos grandes riscos cotidianos.
Como dramaturgo, também adaptou para o teatro algumas obras narrativas. É o caso de Homem Mãe, baseada no romance O filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe, encenada por Barbosa em 2016. A peça trata de temas já presentes na obra original, enfatizando o posicionamento político do dramaturgo ao trazer assuntos como o preconceito, o fanatismo religioso, a intolerância e o machismo, misturados a uma história em que o amor e o afeto ainda têm lugar. É autor e diretor do monólogo O sertão em mim (2017), feito a partir de fragmentos da obra Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, que traz questões sobre a relação do homem com o mundo, usando a metáfora dos demônios que assolam o sertão para falar dos demônios que existem em cada um de nós. Em 2021, traduziu e adaptou os contos “Girl e My Mother”, de Jamaica Kincaid, para o formato de teatro virtual, construindo junto à Cia. Stravaganza a obra 9 Saias, sob sua direção. Neste trabalho, o coletivo parte dos contos de Kincaid para revisitar suas próprias histórias e memórias, construindo uma obra que reúne elementos autobiográficos do elenco para refletir sobre nossa sociedade, apontando para questões como a homofobia, a misoginia e o racismo.
"A dramaturgia surgiu também como necessidade de encontrar uma voz própria, de dizer coisas que me interessam e me afetam. Nesse sentido, posso dizer que minha relação com o teatro sempre esteve vinculada à ideia de atuação política, de arte como possibilidade de interferência e de transformação social. Assim, escrevo buscando me equilibrar entre o político e a poesia, entendendo ambos como os dois lados da mesma moeda.” (Fernando Kike Barbosa)
Assim, como podemos constatar, a obra de Fernando Kike Barbosa é permeada pelo olhar de um artista de teatro inquieto, que transita entre diferentes funções da criação teatral. Suas peças têm ênfase em questões políticas, sociais e poéticas, se desafiando continuamente para novas possibilidades de escrita e atuação.
Camila Bauer