fabiano barros

Ji-Paraná - RO

Fragmento Teatral

Mulher – Ainda bem que tu num acertou a faca na cara. Ele se enterrou com o terno dele. Estava guardado (...) do teu batizado. Bem que o povo fala que não é bom batizar menino depois de velho. Essa foi a derradeira vez que ele usou o terno. A primeira no nosso casamento, a segunda no teu batizado e a terceira no enterro dele. Pena que você nem pôde vê ele, ficou até apresentado, estava com um semblante sereno, parecia até que tava rindo, nem parecia que tava todo furado, enterraram logo. Já tava fedendo demais. (Silêncio.) O bolo está bom? (O rapaz não responde, a mulher tira uma faca debaixo do vestido.) Trouxe pra partir o bolo. Fiz esse vestido só pra entrar aqui, costurei um bolso por dentro pra esconder a faca, eu sabia que eles num iam vistoriar pelas minhas vestes, toma. (Dá a faca ao rapaz.)

Rapaz (Rapaz pega a faca e fica olhando para a mulher.) Está gostoso o bolo. A senhora acha que vão me matar aqui mesmo?

Mulher – Sei não. Mas se não matarem aqui dentro, vão te matar lá fora. Só tinha anjinho enterrado. E teu pai menino? Pai e mãe é sagrado.

Rapaz – Eu só queria ser perdoado (Silêncio.) Aqui na terra não, lá com Deus. Parece que ele vivia dormindo nas hora que eu tava acordado. Eu chamava tanto, pedia tanto, igual a minha avó me ensinou, se lembra? Das rezas que a ela mandava eu fazer quando eu tivesse medo? Mas adiantava não, sei lá, até parece que Deus não se importa com criança. Ficava pensando nisso, só gente grande tem a vez com Deus.

Mulher – É pecado muito grande. Fale isso não, Deus está pra todo mundo, e você já todo errado devendo explicação pra ele falando tolice.

Rapaz – Na primeira comunhão a professora falou que não tem pecado grande nem pecado pequeno, dizia que pecado é pecado, o mesmo de roubar uma galinha era o mesmo que roubar um ovo, disse que Deus não conta pecado pelo tamanho, conta pelas vezes que faz, a senhora acha que é assim?

Mulher – Sei não.

Rapaz – Ela disse também que só precisa pensar numa coisa ruim e já é pecado. Que pensar era o mesmo que fazer.

Mulher – Nisso eu concordo. Por isso passo o tempo todo pensando em Deus, rezando.

Rapaz – Então eu acho que ele não vai me perdoar. Antes de matar o pai, eu já tinha pensando fazer isso mil vezes.

Mulher – Deus que te perdoe, porque acho que eu não consigo.


Rapaz – Estou pedindo perdão da senhora não. Porque quando eu precisei de ajuda da senhora e de Deus nenhum dos dois me ouviu. Vai vê que os dois estavam ocupados um com o outro. Já que a senhora diz que vive pensando nele.

Mulher – Pede perdão a Deus menino. Tira essa coisa ruim de dentro de você, esse demônio.

Rapaz(Começa a rir baixo.) Pedi tanta ajuda, tanta ajuda a Deus e só recebi dor. Depois nem sabia mais o que era sentir alguma coisa.

Mulher – Fala isso não, ele castiga.

Rapaz – Castiga? Que castigo eu mereço? (Silêncio.) A senhora me ama?

Mulher(Baixa a cabeça.) Amo. Sei lá.

Rapaz – E meu pai, a senhora ama? (Mulher balança a cabeça abaixada que sim.) Ama mais ele? Ou eu?

Mulher(Silêncio.) Amor deve ser que nem pecado, não tem grande nem pequeno.

Rapaz – A gente ama ou não ama, não é? A senhora sempre amou ele. Só ele. Eu era um atrapalho, a senhora nunca amou nem a senhora mesmo.

Mulher(Com a voz de choro.) E ele só te amava.

Rapaz(Sorrir baixo.) A senhora acha que amor é o quê? Machucar? Amor é fazer medo? Amor é o que pra senhora?

Mulher – Sei lá, menino, acho melhor ir embora. (Levantando-se.)

Rapaz(Ele pega na mão dela.) A senhora me odeia demais.

Mulher – Quem? Eu o quê? Quem sou nesse mundo para odiar alguém? Só estou... (Desorientada.) Estou... (Silêncio.) Deixa eu ir embora. (Puxa sua mão, pega o prato do bolo, a garrafa de água e a faca, vira de costas para o rapaz.).

Rapaz – Benção. Me abençoe uma única vez.

Mulher(Contendo uma fúria.) Te odeio, menino. (Silêncio.) Desde que você saiu das minhas entranhas, te odeio desde que você desceu nesse mundo e roubou o amor que era meu. Roguei todas as noites no pé da santa pra te levar, “menino mulher do cão”. Agora, depois do que você fez, rogo para você ficar vivo. Rezo para que te arranquem pedaço por pedaço. Nunca tive um marido. Nunca tive paz depois que você nasceu. Parece que teu calor era melhor que o meu. Agora nada mais importa, ele já morreu, perdeu eu, perdeu você. Só me resta ver você apodrecendo. Morte é castigo pouco! Não se contentasse em me tirar teu pai em vida, agora me desse o luto de presente. Vou pra casa rogar pela tua carniça, que Deus te castigue. (Mulher vira as costas pra o rapaz.) Eu sou uma amaldiçoada, gerei uma carne podre, filho de satanás. Espero que o teu castigo seja pelo menos a metade do que eu te desejo.

Rapaz(Levanta-se.) Só tenho um olho. (Tira a camisa.) Tenho queimadura e ferida no lugar de pele, nem unha tenho mais. (Tira roupa.) Tá vendo? (Mostrando a região do seu pênis que está mutilado.) Sabe por que ele arrancou? A senhora não sabe, num é? Que castigo a senhora pode me rogar mais? Se quer me rogar mais, me rogue então duas vez o amor dele e o seu amor junto, assim não vai mais precisar de castigo de Deus nenhum, foi esse amor que a senhora diz que eu roubei que fez isso comigo, e com a senhora?

Mulher – Quer que eu sinta pena de você? Que te coloque no colo? Te faça carinho? Você caçou seu caminho. Não pode abrir sua boca pra falar de amor. Um demônio que nem você não merece nem morrer. Não sei como Deus deixa gente assim nascer e viver no mundo. Quem tem coragem de matar anjo e matar pai tem coragem de fazer qualquer coisa. Queria nem ter visto quando desenterraram aqueles meninos todos, só osso. Para mais de vinte. Agora tenho que ir embora do distrito. É muita desgraça só pra mim. Queria que Deus tivesse me feito cega pra não ter visto tudo isso. Não era nem para ter me dado vida.

Rapaz – Cega, surda ou não sei o quê? Era assim que eu sempre vi a senhora. Eu gritava na sua frente. Pedia socorro o tempo todo. Tantas vezes, e nunca me ouvia. Tinha feito uma semana que ele tinha ido para cidade do outro lado do rio, e no dia dele voltar, era de manhã ainda, nem consegui dormir a noite toda de cabeça perturbada. Quando o sol apareceu, corri logo para baixo do cu da vaca, esperando minha armadura cair sobre meu rosto e se espalhar por todo meu corpo. A senhora não tem ideia como demorou. Esperei, esperei, até que senti a quentura sobre mim. Lá achava que ia tá escondido para sempre, fiquei ali, parado, pensando que tava invisível, bem paradinho, foi quando ele chegou. A senhora nem viu. Ele só me arrastou pelo braço, que nem um jacaré pega um bezerrinho, e me arrastou que nem saco de farinha pelo chão. Pegou um barrote de sabão que estava na janela e na beira do igarapé me banhou daqui pra baixo, (apontando da cintura pra baixo.) naquele dia a espuma do sabão até que diminuiu a minha dor. Mas nem sei direito, minha cabeça se afundou na lama. Depois ele terminou as coisas dele em mim e entrou em casa, fiquei lá, todo sujo por fora e por dentro.

Mulher – É fácil falar de quem está morto. Queria vê se ele tivesse aqui na tua frente, se você tinha coragem de dizer essas coisas.

Rapaz – Quando acordei, estava no colo da minha avó, todo ensaboado. Eu gostava de tomar banho no rio com ela, ela entrava de vestido e tudo. (rindo.) Aí, lá para o fundo tirava a calcinha, (rindo lembrando com felicidade) a calçola dela pra esfregar com sabão. Ela nem deixava eu vê, dizia que era coisa de mulher. Só que um dia minha mão tava fedendo tanto que ele deixou eu esfregar a calcinha dela para sair à catinga. Esfreguei, esfreguei um monte de vez na mão, depois passei no corpo. Fiquei todo branco parecendo um “malassombro” (rir.) e toda vez era assim, parecia até que ela adivinhava quando eu precisava me limpar. Às vezes nem era de merda de vaca, era de outra coisa. Um abraço dela era o melhor banho que existia. Um dia ela me pegou chorando na beira do igarapé, ela me deu um cheirinho na cabeça e disse quando quiser chorar mergulha bem lá fundo do rio que as águas levam tua lágrima embora, até parecia que ela sentia tudo que eu sentia. A senhora já que ir embora?

Mulher – Quero não. Quer bolo ainda?

Rapaz – Sim! (Rapaz pega a garrafa e bebe água. Mulher olha fixamente para rapaz em silêncio.)

Mulher – Às vezes eu fico pensando. Essa vida é muito engraçada, muito doida. Parece que é tudo ao contrário. Dôra. (Silêncio.) Quando Dôra nasceu, já veio de olho aberto. Quando peguei ela pela primeira vez no meu colo parecia até que ela queria falar alguma coisa, sei lá. Fiquei com tanta raiva daquela menina feia, aleijada. Até hoje só serve para me dá trabalho, um estorvo, parece que todas as maldições de Deus veio para cima de mim, depois veio Neco...

Rapaz – Foi melhor assim. (Silêncio.) Para Neco, para senhora também.

(Fragmento de Memória d’alma)

Fabiano Barros é dramaturgo e diretor teatral. Dirige a Cia. de Artes Fiasco.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Escrever para teatro é um desafio. Falas de personagens operam em torno de mil possibilidades. Sentimentos, fatos, contradições, como administrar tudo isso em meio à criação de um texto dramatúrgico? Texto que nasce como um esqueleto a ser preenchido e “almado”, ou seja, só ganhará vida, sentido e visibilidade se for encenado. Ser ação é o maior motivo para criar dramaturgias.

Poderíamos, assim, sintetizar algumas das inquietações que movem o dramaturgo Fabiano Barros ao produzir seus textos para teatro. Gestor cultural, arte educador, diretor, roteirista, com formação em Letras e Literatura, este artista e homem da cultura rondoniense já escreveu e dirigiu diversas peças teatrais levadas à cena, já foram vistas em teatros no Rio de Janeiro, São Paulo, Acre, Manaus, Paraíba, Recife e Rondônia.

Atuante e inquieto, Fabiano Barros destaca-se no cenário artístico no norte do país; nascido em Pernambuco, mas vivendo há 20 anos em Rondônia, fundou em 2001, junto com o encenador e artista de dança Francis Madson, a Cia. de Teatro Fiasco, que se dedica à pesquisa teatral a partir das mais diversas experimentações.

Sempre abordando temas contemporâneos, encenados por sua companhia de teatro, Fabiano Barros, é pesquisador rigoroso do comportamento humano e das tramas cênicas. Tece histórias que, na leveza ou densidade de suas tessituras, exigem de seus intérpretes igual profundidade, pois, para o dramaturgo, o ator é “o próprio lugar onde acontece o fenômeno teatral”. Assim, do prazer do riso ao sombrio do que provoca dor, o público deve ser levado a um mergulho profundo, envolvido por aqueles que dão vida aos conflitos vistos em cena.

Centrado nas histórias que ouve, a partir das realidades que o cercam, Fabiano Barros escreveu textos com temáticas adultas e infantis como: O dragão de Macaparana, O segredo da patroa, Já passam das oito, Memória da carne, Memória da alma, Biu, A ópera do beradeiro, As nove luas, Onde morrem os pássaros e Ave de arribação. Destacando-se por sua atuação, enquanto criador e gestor cultural, foi convidado a participar de diversas curadorias de projetos nacionais como: Palco Giratório, Prêmio Myriam Muniz, Jovens Dramaturgos, entre outros. Foi também contemplado diversas vezes em editais nacionais, acumulando prêmios e reconhecimento do público e crítica. Atualmente, pesquisa as lendas amazônidas, às quais lança um olhar humanizado e as recria em sua dramaturgia.

Artista multifacetado, Fabiano Barros também já colaborou na criação de espetáculos de dança; teve textos lidos em projeto de leituras dramáticas organizado pelo Sesc de Porto Velho; e criou em 2020, em meio à pandemia, o programa Conexão Rondônia, que consistiu numa série de transmissões pela internet, com artistas rondonienses contando suas trajetórias artísticas na cultura local – abrindo espaço também, no programa, para arrecadação de alimentos a serem distribuídos para instituições sociais.

Sempre atento às problemáticas sociais, este autor, em uma de suas obras de maior êxito, aborda o tema da pedofilia. A peça Memória d’alma tem como cenário uma cela de cadeia, local onde mãe e filho têm um acerto de contas. No decorrer da trama histórias vão sendo relembradas e, a cada ato, os personagens bordam uma teia de omissão, crueldade e abuso sexual que o menino sofreu, durante anos, pelo próprio pai. 

“Rapaz – Eu só queria ser perdoado (Silêncio) − Aqui na terra não, lá com Deus. Parece que ele vivia dormindo nas horas que eu tava acordado. Eu chamava tanto, pedia tanto, igual a minha avó me ensinou, se lembra? Das rezas que ela mandava eu fazer quando eu tivesse medo? Mas adiantava não, sei lá, até parece que Deus não se importa com criança. Ficava pensando nisso, só gente grande tem a vez com Deus.”

Memória d’alma é um convite a percorrer a construção da lembrança, em meio a dor, o isolamento, as formas de amor que as personagens adotam, uma trama com carga dramática “incômoda”, ao tocar em assuntos polêmicos – como o abuso de menores. Junto a outros três textos, esta peça compõe uma série de dramaturgias, frutos da pesquisa de TCC do dramaturgo.

Assim, inquietante como suas criações para teatro, a trajetória de Fabiano Barros desenha uma rota singular, rascunhando um artista pesquisador da vida e dos palcos, com uma poética cortante, que atravessa, seja pela leveza ou densidade, àqueles que assistem às suas dramaturgias.

Bene Martins e Mailson Soares

Fabiano Barros é dramaturgo e diretor teatral. Dirige a Cia. de Artes Fiasco.

Escrever para teatro é um desafio. Falas de personagens operam em torno de mil possibilidades. Sentimentos, fatos, contradições, como administrar tudo isso em meio à criação de um texto dramatúrgico? Texto que nasce como um esqueleto a ser preenchido e “almado”, ou seja, só ganhará vida, sentido e visibilidade se for encenado. Ser ação é o maior motivo para criar dramaturgias.

Poderíamos, assim, sintetizar algumas das inquietações que movem o dramaturgo Fabiano Barros ao produzir seus textos para teatro. Gestor cultural, arte educador, diretor, roteirista, com formação em Letras e Literatura, este artista e homem da cultura rondoniense já escreveu e dirigiu diversas peças teatrais levadas à cena, já foram vistas em teatros no Rio de Janeiro, São Paulo, Acre, Manaus, Paraíba, Recife e Rondônia.

Atuante e inquieto, Fabiano Barros destaca-se no cenário artístico no norte do país; nascido em Pernambuco, mas vivendo há 20 anos em Rondônia, fundou em 2001, junto com o encenador e artista de dança Francis Madson, a Cia. de Teatro Fiasco, que se dedica à pesquisa teatral a partir das mais diversas experimentações.

Sempre abordando temas contemporâneos, encenados por sua companhia de teatro, Fabiano Barros, é pesquisador rigoroso do comportamento humano e das tramas cênicas. Tece histórias que, na leveza ou densidade de suas tessituras, exigem de seus intérpretes igual profundidade, pois, para o dramaturgo, o ator é “o próprio lugar onde acontece o fenômeno teatral”. Assim, do prazer do riso ao sombrio do que provoca dor, o público deve ser levado a um mergulho profundo, envolvido por aqueles que dão vida aos conflitos vistos em cena.

Centrado nas histórias que ouve, a partir das realidades que o cercam, Fabiano Barros escreveu textos com temáticas adultas e infantis como: O dragão de Macaparana, O segredo da patroa, Já passam das oito, Memória da carne, Memória da alma, Biu, A ópera do beradeiro, As nove luas, Onde morrem os pássaros e Ave de arribação. Destacando-se por sua atuação, enquanto criador e gestor cultural, foi convidado a participar de diversas curadorias de projetos nacionais como: Palco Giratório, Prêmio Myriam Muniz, Jovens Dramaturgos, entre outros. Foi também contemplado diversas vezes em editais nacionais, acumulando prêmios e reconhecimento do público e crítica. Atualmente, pesquisa as lendas amazônidas, às quais lança um olhar humanizado e as recria em sua dramaturgia.

Artista multifacetado, Fabiano Barros também já colaborou na criação de espetáculos de dança; teve textos lidos em projeto de leituras dramáticas organizado pelo Sesc de Porto Velho; e criou em 2020, em meio à pandemia, o programa Conexão Rondônia, que consistiu numa série de transmissões pela internet, com artistas rondonienses contando suas trajetórias artísticas na cultura local – abrindo espaço também, no programa, para arrecadação de alimentos a serem distribuídos para instituições sociais.

Sempre atento às problemáticas sociais, este autor, em uma de suas obras de maior êxito, aborda o tema da pedofilia. A peça Memória d’alma tem como cenário uma cela de cadeia, local onde mãe e filho têm um acerto de contas. No decorrer da trama histórias vão sendo relembradas e, a cada ato, os personagens bordam uma teia de omissão, crueldade e abuso sexual que o menino sofreu, durante anos, pelo próprio pai. 

“Rapaz – Eu só queria ser perdoado (Silêncio) − Aqui na terra não, lá com Deus. Parece que ele vivia dormindo nas horas que eu tava acordado. Eu chamava tanto, pedia tanto, igual a minha avó me ensinou, se lembra? Das rezas que ela mandava eu fazer quando eu tivesse medo? Mas adiantava não, sei lá, até parece que Deus não se importa com criança. Ficava pensando nisso, só gente grande tem a vez com Deus.”

Memória d’alma é um convite a percorrer a construção da lembrança, em meio a dor, o isolamento, as formas de amor que as personagens adotam, uma trama com carga dramática “incômoda”, ao tocar em assuntos polêmicos – como o abuso de menores. Junto a outros três textos, esta peça compõe uma série de dramaturgias, frutos da pesquisa de TCC do dramaturgo.

Assim, inquietante como suas criações para teatro, a trajetória de Fabiano Barros desenha uma rota singular, rascunhando um artista pesquisador da vida e dos palcos, com uma poética cortante, que atravessa, seja pela leveza ou densidade, àqueles que assistem às suas dramaturgias.

Bene Martins e Mailson Soares

Mulher – Ainda bem que tu num acertou a faca na cara. Ele se enterrou com o terno dele. Estava guardado (...) do teu batizado. Bem que o povo fala que não é bom batizar menino depois de velho. Essa foi a derradeira vez que ele usou o terno. A primeira no nosso casamento, a segunda no teu batizado e a terceira no enterro dele. Pena que você nem pôde vê ele, ficou até apresentado, estava com um semblante sereno, parecia até que tava rindo, nem parecia que tava todo furado, enterraram logo. Já tava fedendo demais. (Silêncio.) O bolo está bom? (O rapaz não responde, a mulher tira uma faca debaixo do vestido.) Trouxe pra partir o bolo. Fiz esse vestido só pra entrar aqui, costurei um bolso por dentro pra esconder a faca, eu sabia que eles num iam vistoriar pelas minhas vestes, toma. (Dá a faca ao rapaz.)

Rapaz (Rapaz pega a faca e fica olhando para a mulher.) Está gostoso o bolo. A senhora acha que vão me matar aqui mesmo?

Mulher – Sei não. Mas se não matarem aqui dentro, vão te matar lá fora. Só tinha anjinho enterrado. E teu pai menino? Pai e mãe é sagrado.

Rapaz – Eu só queria ser perdoado (Silêncio.) Aqui na terra não, lá com Deus. Parece que ele vivia dormindo nas hora que eu tava acordado. Eu chamava tanto, pedia tanto, igual a minha avó me ensinou, se lembra? Das rezas que a ela mandava eu fazer quando eu tivesse medo? Mas adiantava não, sei lá, até parece que Deus não se importa com criança. Ficava pensando nisso, só gente grande tem a vez com Deus.

Mulher – É pecado muito grande. Fale isso não, Deus está pra todo mundo, e você já todo errado devendo explicação pra ele falando tolice.

Rapaz – Na primeira comunhão a professora falou que não tem pecado grande nem pecado pequeno, dizia que pecado é pecado, o mesmo de roubar uma galinha era o mesmo que roubar um ovo, disse que Deus não conta pecado pelo tamanho, conta pelas vezes que faz, a senhora acha que é assim?

Mulher – Sei não.

Rapaz – Ela disse também que só precisa pensar numa coisa ruim e já é pecado. Que pensar era o mesmo que fazer.

Mulher – Nisso eu concordo. Por isso passo o tempo todo pensando em Deus, rezando.

Rapaz – Então eu acho que ele não vai me perdoar. Antes de matar o pai, eu já tinha pensando fazer isso mil vezes.

Mulher – Deus que te perdoe, porque acho que eu não consigo.


Rapaz – Estou pedindo perdão da senhora não. Porque quando eu precisei de ajuda da senhora e de Deus nenhum dos dois me ouviu. Vai vê que os dois estavam ocupados um com o outro. Já que a senhora diz que vive pensando nele.

Mulher – Pede perdão a Deus menino. Tira essa coisa ruim de dentro de você, esse demônio.

Rapaz(Começa a rir baixo.) Pedi tanta ajuda, tanta ajuda a Deus e só recebi dor. Depois nem sabia mais o que era sentir alguma coisa.

Mulher – Fala isso não, ele castiga.

Rapaz – Castiga? Que castigo eu mereço? (Silêncio.) A senhora me ama?

Mulher(Baixa a cabeça.) Amo. Sei lá.

Rapaz – E meu pai, a senhora ama? (Mulher balança a cabeça abaixada que sim.) Ama mais ele? Ou eu?

Mulher(Silêncio.) Amor deve ser que nem pecado, não tem grande nem pequeno.

Rapaz – A gente ama ou não ama, não é? A senhora sempre amou ele. Só ele. Eu era um atrapalho, a senhora nunca amou nem a senhora mesmo.

Mulher(Com a voz de choro.) E ele só te amava.

Rapaz(Sorrir baixo.) A senhora acha que amor é o quê? Machucar? Amor é fazer medo? Amor é o que pra senhora?

Mulher – Sei lá, menino, acho melhor ir embora. (Levantando-se.)

Rapaz(Ele pega na mão dela.) A senhora me odeia demais.

Mulher – Quem? Eu o quê? Quem sou nesse mundo para odiar alguém? Só estou... (Desorientada.) Estou... (Silêncio.) Deixa eu ir embora. (Puxa sua mão, pega o prato do bolo, a garrafa de água e a faca, vira de costas para o rapaz.).

Rapaz – Benção. Me abençoe uma única vez.

Mulher(Contendo uma fúria.) Te odeio, menino. (Silêncio.) Desde que você saiu das minhas entranhas, te odeio desde que você desceu nesse mundo e roubou o amor que era meu. Roguei todas as noites no pé da santa pra te levar, “menino mulher do cão”. Agora, depois do que você fez, rogo para você ficar vivo. Rezo para que te arranquem pedaço por pedaço. Nunca tive um marido. Nunca tive paz depois que você nasceu. Parece que teu calor era melhor que o meu. Agora nada mais importa, ele já morreu, perdeu eu, perdeu você. Só me resta ver você apodrecendo. Morte é castigo pouco! Não se contentasse em me tirar teu pai em vida, agora me desse o luto de presente. Vou pra casa rogar pela tua carniça, que Deus te castigue. (Mulher vira as costas pra o rapaz.) Eu sou uma amaldiçoada, gerei uma carne podre, filho de satanás. Espero que o teu castigo seja pelo menos a metade do que eu te desejo.

Rapaz(Levanta-se.) Só tenho um olho. (Tira a camisa.) Tenho queimadura e ferida no lugar de pele, nem unha tenho mais. (Tira roupa.) Tá vendo? (Mostrando a região do seu pênis que está mutilado.) Sabe por que ele arrancou? A senhora não sabe, num é? Que castigo a senhora pode me rogar mais? Se quer me rogar mais, me rogue então duas vez o amor dele e o seu amor junto, assim não vai mais precisar de castigo de Deus nenhum, foi esse amor que a senhora diz que eu roubei que fez isso comigo, e com a senhora?

Mulher – Quer que eu sinta pena de você? Que te coloque no colo? Te faça carinho? Você caçou seu caminho. Não pode abrir sua boca pra falar de amor. Um demônio que nem você não merece nem morrer. Não sei como Deus deixa gente assim nascer e viver no mundo. Quem tem coragem de matar anjo e matar pai tem coragem de fazer qualquer coisa. Queria nem ter visto quando desenterraram aqueles meninos todos, só osso. Para mais de vinte. Agora tenho que ir embora do distrito. É muita desgraça só pra mim. Queria que Deus tivesse me feito cega pra não ter visto tudo isso. Não era nem para ter me dado vida.

Rapaz – Cega, surda ou não sei o quê? Era assim que eu sempre vi a senhora. Eu gritava na sua frente. Pedia socorro o tempo todo. Tantas vezes, e nunca me ouvia. Tinha feito uma semana que ele tinha ido para cidade do outro lado do rio, e no dia dele voltar, era de manhã ainda, nem consegui dormir a noite toda de cabeça perturbada. Quando o sol apareceu, corri logo para baixo do cu da vaca, esperando minha armadura cair sobre meu rosto e se espalhar por todo meu corpo. A senhora não tem ideia como demorou. Esperei, esperei, até que senti a quentura sobre mim. Lá achava que ia tá escondido para sempre, fiquei ali, parado, pensando que tava invisível, bem paradinho, foi quando ele chegou. A senhora nem viu. Ele só me arrastou pelo braço, que nem um jacaré pega um bezerrinho, e me arrastou que nem saco de farinha pelo chão. Pegou um barrote de sabão que estava na janela e na beira do igarapé me banhou daqui pra baixo, (apontando da cintura pra baixo.) naquele dia a espuma do sabão até que diminuiu a minha dor. Mas nem sei direito, minha cabeça se afundou na lama. Depois ele terminou as coisas dele em mim e entrou em casa, fiquei lá, todo sujo por fora e por dentro.

Mulher – É fácil falar de quem está morto. Queria vê se ele tivesse aqui na tua frente, se você tinha coragem de dizer essas coisas.

Rapaz – Quando acordei, estava no colo da minha avó, todo ensaboado. Eu gostava de tomar banho no rio com ela, ela entrava de vestido e tudo. (rindo.) Aí, lá para o fundo tirava a calcinha, (rindo lembrando com felicidade) a calçola dela pra esfregar com sabão. Ela nem deixava eu vê, dizia que era coisa de mulher. Só que um dia minha mão tava fedendo tanto que ele deixou eu esfregar a calcinha dela para sair à catinga. Esfreguei, esfreguei um monte de vez na mão, depois passei no corpo. Fiquei todo branco parecendo um “malassombro” (rir.) e toda vez era assim, parecia até que ela adivinhava quando eu precisava me limpar. Às vezes nem era de merda de vaca, era de outra coisa. Um abraço dela era o melhor banho que existia. Um dia ela me pegou chorando na beira do igarapé, ela me deu um cheirinho na cabeça e disse quando quiser chorar mergulha bem lá fundo do rio que as águas levam tua lágrima embora, até parecia que ela sentia tudo que eu sentia. A senhora já que ir embora?

Mulher – Quero não. Quer bolo ainda?

Rapaz – Sim! (Rapaz pega a garrafa e bebe água. Mulher olha fixamente para rapaz em silêncio.)

Mulher – Às vezes eu fico pensando. Essa vida é muito engraçada, muito doida. Parece que é tudo ao contrário. Dôra. (Silêncio.) Quando Dôra nasceu, já veio de olho aberto. Quando peguei ela pela primeira vez no meu colo parecia até que ela queria falar alguma coisa, sei lá. Fiquei com tanta raiva daquela menina feia, aleijada. Até hoje só serve para me dá trabalho, um estorvo, parece que todas as maldições de Deus veio para cima de mim, depois veio Neco...

Rapaz – Foi melhor assim. (Silêncio.) Para Neco, para senhora também.

(Fragmento de Memória d’alma)