Dama do teatro sul-mato-grossense, assim o estado se refere à dramaturga, atriz e diretora Cristina Mato Grosso. Uma das criadoras do Instituto de Educação e Cultura Conceição Freitas (INECON), como desdobramento do Grupo Teatral Amador Campo-Grandense (GUTAC), o qual também esteve à frente com um consistente trabalho de teatro de militância. Nos anos 1970, época marcada por um certo idealismo social e por uma busca pelo retrato da sociedade e suas mazelas nas tentativas de não separar estética e política. E, ainda, de resistir ao regime de exceção, à censura.
O GUTAC começou seu percurso no mesmo período em que também iniciavam os trabalhos do Teatro Ventoforte, acompanhados pelo pensamento de um teatro engajado com fortes anseios pela transformação da sociedade. Teatro de bonecos. Teatro de Sombras. Teatro de manipulação. Mamulengos. Folclore. Artistas que traçaram diálogos estéticos, políticos e sociais pelos caminhos do país. E foi a partir dessa rede que Cristina Mato Grosso acabou expandindo suas criações (que davam conta das questões regionais – de um Mato Grosso ainda antes da divisão) para o Brasil. A primeira inserção no circuito nacional foi marcada pelo espetáculo Foi no belo Sul Mato Grosso, de 1979; mais tarde, em 2003, recebeu o prêmio Funarte de Dramaturgia – região Centro-Oeste com sua peça Balada de amor no sertão.
Além de Ilo Krugli, Cristina nunca deixa escapar a grande inspiração e influência no teatro de Gil Vicente. Este é, inclusive, o nome que está na placa nomeando a sala de teatro que tem no quintal da sua casa, e que foi palco dos projetos do seu grupo e de diversos parceiros até recentemente. Assim como no teatro vicentino, Cristina traz para a cena os problemas sociais da região de forma simples e objetiva, a cultura popular, a poesia folclórica, elementos alegóricos e místicos. Nesse sentido, essa proposta de dramaturgia com o popular pode ter uma dimensão polissêmica, alcançando muitos níveis de significação. E a linguagem pode operar como ferramenta para compreender os processos sociais, pois o popular fala a diferentes e muitos públicos. Seus textos carregam essa característica que aparece nas falas sempre em tom coloquial.
Em 2014, lançou uma coletânea de dois volumes com as dramaturgias O ensaio de Glauce Rocha, O mistério das Marias, As cores das pedras, David e Como pegar um pato, ensopando um pombo. Lançou também o volume intitulado Teatro brasileiro contemporâneo: linguagem e militância – Estudo da dramaturgia e encenação de três grupos engajados no processo de educação social, que é resultado de sua pesquisa de doutorado na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), na qual faz uma interlocução da atuação do seu grupo GUTAC com o Ventoforte e o Teatro União e Olho Vivo (TUOV).
Nos 44 anos de Mato Grosso do Sul, e mesmo antes, quando era tudo um Mato Grosso só, nunca houve uma prática consistente de publicação de obras dramatúrgicas. Muitas das obras de Cristina não foram publicadas, senão por iniciativas dela mesma em publicações independentes. Suas dramaturgias foram encenadas por seu grupo e compartilhadas nos projetos de arte e educação [outra significativa vertente do seu trabalho]. Então, essa publicação de 2014 reforça essa lacuna editorial no estado, que, de certo modo, também reflete nas dimensões de construção e reconhecimento de uma identidade regional [uma das questões pelas quais Cristina sempre militou].
Em uma de suas últimas dramaturgias, O ensaio de Glauce Rocha, Cristina promove um encontro das suas referências: Gil Vicente, Leila Diniz, Carmen Miranda, Liza Minelli, Antonio Abujamra e Glauce Rocha – sua conterrânea, de uma geração anterior. E, mais que isso: expandindo as noções de tempo e espaço, mescla partes da sua história – como se fizesse uma reflexão sobre como chegou até aqui – com a trajetória da atriz Glauce Rocha e as angústias do fazer teatral, as políticas públicas culturais no país e o sentimento de não reconhecimento do ofício das(os) artistas no estado. Uma espécie de barroco medieval, que junta regional, nacional e universal, como ela mesma define na sinopse da peça.
Atualmente, aos 70 anos, Cristina Mato Grosso tem se dedicado à escrita de um romance, ainda inacabado, mas sempre com ganas de, assim que possível, retomar e seguir sua atuação nos processos de escrita dramatúrgica e na montagem dos seus trabalhos. Persistindo na (re)existência da identidade e história do teatro sul-mato-grossense.
Carin Louro