bruno alves

São Miguel dos Milagres - AL

Fragmento Teatral

Caminhamos por becos. Descemos escadas. Ela ilumina o espaço com sua lanterna. Esgotos a céu aberto atravessam o caminho. O piso se mistura entre o concreto do cimento e a terra molhada. Pisamos em lama. Gatos se atacam nos telhados. Os cachorros em suas coleiras latem de seus quintais, ameaçados com a nossa presença. A mulher está sempre a nossa frente nos guiando. Sua lanterna abre os caminhos. Sua matraca desperta tudo ao redor e dentro de nós. Observamos as portas de diversas casas. Estamos num espaço profundo da cidade. Chegamos ao fundo da Grota. Chegamos ao fundo da cidade. Ela nos fala:

Carpideira: Não tenham medo. Aqui vocês estão seguros.

Janeida: Ô, Denise, quando você vier desse aniversário traga um pedaço de bolo pra mim, viu?

Carpideira: Dentro de mim moram muitas cigarras.

Carmem: Alô? Neno, meu filho, onde você está? Não esqueça de meu almoço meio-dia. Deus te ilumine e te guarde. Amém.

Carpideira: Por trás dessas portas estão aquelas que são as cigarras que carrego comigo.

Zita: Humm... Quando você chegar tem sopa em cima do fogão. É só você esquentar e depois guardar o resto na geladeira.

Carpideira: Esse lugar abriga aquelas que rasgaram as suas cascas com seus gritos.

Madá: Menino, depois entre pra dentro e deixe de ficar toda hora brincando na rua. Entre pra assistir televisão.

Carpideira: É por elas que eu estou aqui contando. Por elas e por seus filhos.

Dalva: Sim, senhor! Pode ir, mas não esqueça de trazer meu pão na volta. Faça de tudo só não esqueça meu pão. Não dê uma de doido não, menino.

A Carpideira nos canta.

Carpideira: Senhor Deus, Senhor Deus! 
Misericórdia, Misericórdia...

Ela toca sua matraca. As mães pelo espaço de suas casas sentem um aperto no peito. Nós, que aqui descemos, também sentimos que algo ruim está para acontecer. Percebemos como as mães estão com os olhares distantes, parecem acessar outra dimensão. A matraca anuncia uma tragédia em suas vidas. A matraca é o próprio coração desesperado das mães.

Carpideira: Esse é o tempo, irmãos das almas!

Tudo desaba pelo espaço. Espadas atravessam os corações dessas mães. Procuram e chamam pelo nome de seus filhos. Parece que em algum lugar da cidade algo de ruim com eles aconteceu.

Carpideira: É o tempo da terra regada com o pranto vermelho
Eu vejo procissões e cortejos de lamúria por ruas desertas
Escutem...

Ela põe seu ouvido em uma das portas. As mães choram.

Carpideira: É o canto das cigarras. Estejam atentos!

Ela nos canta uma incelença.

(Fragmento de Incelença)

Bruno Alves é dramaturgo, ator e arte-educador.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Bruno Alves, dramaturgo, ator e arte-educador, é um dos jovens dramaturgos que vem despontando no cenário teatral alagoano. Nascido em Viçosa, cidade do interior de Alagoas, convive desde muito cedo com a contação de histórias como parte muito importante da vida diária. Cresceu ouvindo histórias de suas “mais velhas”, chorando de medo das interpretações personalíssimas de passagens bíblicas apocalípticas, e muito atento às encenações dramáticas dos “entremeios”, parte importante nos folguedos cuja manifestação é bastante presente no Nordeste brasileiro. Na igreja católica, que desempenhava o papel de espaço cultural na cidade, e na escola, fazendo parte do Grupo Teatral Riacho do Meio, entrou em contato com outras formas de contar histórias. Dessa mistura nasceu seu interesse e assinatura poética como dramaturgo.

Durante sua graduação em Teatro e Licenciatura na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), participou de um intercâmbio em Portugal, facilitado na época pela comemoração do Ano do Brasil em Portugal, e, ao retornar, participou como ator, de um processo teatral centrado na figura do encenador. Experiência que ele descreve como traumática e da qual saiu decidido a fundar um grupo. A tentativa de fundar um grupo não foi bem sucedida a priori e, na contramão deste desejo, Bruno estreou sua primeira dramaturgia em um solo, no qual também atuou, intitulado Volante (2014).

A peça contava a história de um brincante que saía pelo mundo em busca da felicidade e era apresentada nas ruas e espaços públicos de Maceió. Por conta desse trabalho, foi convidado a participar do Palco do SESC, tornando-se visível no cenário teatral alagoano. O espetáculo também deu nome ao coletivo, fundado logo na sequência.

Em 2015, participou de uma oficina ministrada por Vinícius de Souza (BH), onde criou inúmeros textos curtos que foram, posteriormente, organizados num projeto audiovisual do coletivo Volante, chamado Texto ExMachina, disponível na íntegra no YouTube do grupo.

O coletivo cresceu e, em 2017, estreou seu primeiro espetáculo: Incelenças, dirigido por Gessyca Geyza, no qual o dramaturgo também participa como ator. Na peça, que acontece no porão do Teatro Deodoro, em Maceió, o público é conduzido por uma carpideira a uma espécie de submundo da cidade para conhecer as incelenças das mães, mortas em vida ao perderem seus filhos para a violência urbana. Incelenças é escrito de maneira colaborativa a partir da inquietação do grupo com o mapa da violência publicado na época.

No decorrer do texto, por mais que isso não esteja dado em primeiro plano, é possível notar o envelhecimento dessas mulheres, o que nos traz a um elemento muito recorrente na dramaturgia de Bruno Alves: a presença de mulheres velhas que contam histórias e guardam as memórias. Parte importante do imaginário do artista que atravessa irruptivamente suas produções.

Depois da estreia, Bruno Alves começou a ser chamado para escrever para outros grupos de teatro e experimentou a posição de escrever textos nos quais não participa como ator, refinando sua escuta. Nesse caminho, desenvolveu uma parceria com o Coletivo de Teatro Heteaçá, para o qual escreveu Entre mar e rio há Lagoanas (2017), construído de maneira colaborativa após uma imersão em um quilombo em Taquarana. Era desejo do grupo contar a história das mulheres ligadas às lagoas e a seus ecossistemas. Isso é feito na peça através de um jogo entre gerações que evidencia o avanço da exploração predatória, criando um universo mítico através do qual essas histórias são transmitidas entre as personagens divinizando a própria lagoa.

Na peça, Bruno atua organizando um roteiro de ações para o trabalho a partir de textos propostos pelo elenco, alinhavando a história e conduzindo exercícios através dos quais emergiram outros textos, e colocando o seu próprio universo, como dramaturgo, em diálogo com a vivência do grupo. Com o coletivo Heteaçá escreveu também As meninas de lá, esse ainda em processo.

O dramaturgo também escreve críticas para o Filé de Críticas, coletivo alagoano de estudos, pesquisa e escrita em crítica de artes cênicas e é gestor do Festival de Artes Cênicas (FESTAL), que intenciona abraçar os grupos de teatro de interior e sua diversidade, tentando criar espaços que democratizem o acesso aos aparelhos culturais, geralmente centrados nas grandes capitais no território brasileiro.

Bruno Alves tem como uma de suas grandes referências a dramaturga Mestra Cícera, mestra do Reisado em Viçosa, que construía suas dramaturgias brincando com a improvisação. E, de certa forma, se esforça para honrar sua memória construindo sua poética, escutando outras improvisações e costurando-as, tentando conciliar, ao fazê-lo, os quereres da comunidade na qual esteja trabalhando.

Laís Machado

Bruno Alves é dramaturgo, ator e arte-educador.

Bruno Alves, dramaturgo, ator e arte-educador, é um dos jovens dramaturgos que vem despontando no cenário teatral alagoano. Nascido em Viçosa, cidade do interior de Alagoas, convive desde muito cedo com a contação de histórias como parte muito importante da vida diária. Cresceu ouvindo histórias de suas “mais velhas”, chorando de medo das interpretações personalíssimas de passagens bíblicas apocalípticas, e muito atento às encenações dramáticas dos “entremeios”, parte importante nos folguedos cuja manifestação é bastante presente no Nordeste brasileiro. Na igreja católica, que desempenhava o papel de espaço cultural na cidade, e na escola, fazendo parte do Grupo Teatral Riacho do Meio, entrou em contato com outras formas de contar histórias. Dessa mistura nasceu seu interesse e assinatura poética como dramaturgo.

Durante sua graduação em Teatro e Licenciatura na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), participou de um intercâmbio em Portugal, facilitado na época pela comemoração do Ano do Brasil em Portugal, e, ao retornar, participou como ator, de um processo teatral centrado na figura do encenador. Experiência que ele descreve como traumática e da qual saiu decidido a fundar um grupo. A tentativa de fundar um grupo não foi bem sucedida a priori e, na contramão deste desejo, Bruno estreou sua primeira dramaturgia em um solo, no qual também atuou, intitulado Volante (2014).

A peça contava a história de um brincante que saía pelo mundo em busca da felicidade e era apresentada nas ruas e espaços públicos de Maceió. Por conta desse trabalho, foi convidado a participar do Palco do SESC, tornando-se visível no cenário teatral alagoano. O espetáculo também deu nome ao coletivo, fundado logo na sequência.

Em 2015, participou de uma oficina ministrada por Vinícius de Souza (BH), onde criou inúmeros textos curtos que foram, posteriormente, organizados num projeto audiovisual do coletivo Volante, chamado Texto ExMachina, disponível na íntegra no YouTube do grupo.

O coletivo cresceu e, em 2017, estreou seu primeiro espetáculo: Incelenças, dirigido por Gessyca Geyza, no qual o dramaturgo também participa como ator. Na peça, que acontece no porão do Teatro Deodoro, em Maceió, o público é conduzido por uma carpideira a uma espécie de submundo da cidade para conhecer as incelenças das mães, mortas em vida ao perderem seus filhos para a violência urbana. Incelenças é escrito de maneira colaborativa a partir da inquietação do grupo com o mapa da violência publicado na época.

No decorrer do texto, por mais que isso não esteja dado em primeiro plano, é possível notar o envelhecimento dessas mulheres, o que nos traz a um elemento muito recorrente na dramaturgia de Bruno Alves: a presença de mulheres velhas que contam histórias e guardam as memórias. Parte importante do imaginário do artista que atravessa irruptivamente suas produções.

Depois da estreia, Bruno Alves começou a ser chamado para escrever para outros grupos de teatro e experimentou a posição de escrever textos nos quais não participa como ator, refinando sua escuta. Nesse caminho, desenvolveu uma parceria com o Coletivo de Teatro Heteaçá, para o qual escreveu Entre mar e rio há Lagoanas (2017), construído de maneira colaborativa após uma imersão em um quilombo em Taquarana. Era desejo do grupo contar a história das mulheres ligadas às lagoas e a seus ecossistemas. Isso é feito na peça através de um jogo entre gerações que evidencia o avanço da exploração predatória, criando um universo mítico através do qual essas histórias são transmitidas entre as personagens divinizando a própria lagoa.

Na peça, Bruno atua organizando um roteiro de ações para o trabalho a partir de textos propostos pelo elenco, alinhavando a história e conduzindo exercícios através dos quais emergiram outros textos, e colocando o seu próprio universo, como dramaturgo, em diálogo com a vivência do grupo. Com o coletivo Heteaçá escreveu também As meninas de lá, esse ainda em processo.

O dramaturgo também escreve críticas para o Filé de Críticas, coletivo alagoano de estudos, pesquisa e escrita em crítica de artes cênicas e é gestor do Festival de Artes Cênicas (FESTAL), que intenciona abraçar os grupos de teatro de interior e sua diversidade, tentando criar espaços que democratizem o acesso aos aparelhos culturais, geralmente centrados nas grandes capitais no território brasileiro.

Bruno Alves tem como uma de suas grandes referências a dramaturga Mestra Cícera, mestra do Reisado em Viçosa, que construía suas dramaturgias brincando com a improvisação. E, de certa forma, se esforça para honrar sua memória construindo sua poética, escutando outras improvisações e costurando-as, tentando conciliar, ao fazê-lo, os quereres da comunidade na qual esteja trabalhando.

Laís Machado

Caminhamos por becos. Descemos escadas. Ela ilumina o espaço com sua lanterna. Esgotos a céu aberto atravessam o caminho. O piso se mistura entre o concreto do cimento e a terra molhada. Pisamos em lama. Gatos se atacam nos telhados. Os cachorros em suas coleiras latem de seus quintais, ameaçados com a nossa presença. A mulher está sempre a nossa frente nos guiando. Sua lanterna abre os caminhos. Sua matraca desperta tudo ao redor e dentro de nós. Observamos as portas de diversas casas. Estamos num espaço profundo da cidade. Chegamos ao fundo da Grota. Chegamos ao fundo da cidade. Ela nos fala:

Carpideira: Não tenham medo. Aqui vocês estão seguros.

Janeida: Ô, Denise, quando você vier desse aniversário traga um pedaço de bolo pra mim, viu?

Carpideira: Dentro de mim moram muitas cigarras.

Carmem: Alô? Neno, meu filho, onde você está? Não esqueça de meu almoço meio-dia. Deus te ilumine e te guarde. Amém.

Carpideira: Por trás dessas portas estão aquelas que são as cigarras que carrego comigo.

Zita: Humm... Quando você chegar tem sopa em cima do fogão. É só você esquentar e depois guardar o resto na geladeira.

Carpideira: Esse lugar abriga aquelas que rasgaram as suas cascas com seus gritos.

Madá: Menino, depois entre pra dentro e deixe de ficar toda hora brincando na rua. Entre pra assistir televisão.

Carpideira: É por elas que eu estou aqui contando. Por elas e por seus filhos.

Dalva: Sim, senhor! Pode ir, mas não esqueça de trazer meu pão na volta. Faça de tudo só não esqueça meu pão. Não dê uma de doido não, menino.

A Carpideira nos canta.

Carpideira: Senhor Deus, Senhor Deus! 
Misericórdia, Misericórdia...

Ela toca sua matraca. As mães pelo espaço de suas casas sentem um aperto no peito. Nós, que aqui descemos, também sentimos que algo ruim está para acontecer. Percebemos como as mães estão com os olhares distantes, parecem acessar outra dimensão. A matraca anuncia uma tragédia em suas vidas. A matraca é o próprio coração desesperado das mães.

Carpideira: Esse é o tempo, irmãos das almas!

Tudo desaba pelo espaço. Espadas atravessam os corações dessas mães. Procuram e chamam pelo nome de seus filhos. Parece que em algum lugar da cidade algo de ruim com eles aconteceu.

Carpideira: É o tempo da terra regada com o pranto vermelho
Eu vejo procissões e cortejos de lamúria por ruas desertas
Escutem...

Ela põe seu ouvido em uma das portas. As mães choram.

Carpideira: É o canto das cigarras. Estejam atentos!

Ela nos canta uma incelença.

(Fragmento de Incelença)