Aldri Anunciação, baiano radicado na Bahia, cria para dar corpo às suas dúvidas. Leitor voraz desde a infância, encontra na dramaturgia a estrutura para dar materialidade ao que chama de “drama-debate”, que defende tanto como uma assinatura poética quanto como uma ferramenta de análise de narrativas, de modo geral, bem como uma forma de lidar com a angústia nascida da relação indivíduo-sociedade. Questão que desenvolveu e defendeu em 2021, em seu doutorado intitulado A dramaturgia do debate: Autodescolonização do sujeito-dramaturgo e do leitor-espectador através da descolonização de personagens-debatedoras, na Universidade Federal da Bahia.
Para Aldri, em seu processo criativo opera uma tríade: a dúvida, que brota no sujeito ainda sem nome, sem forma; a pergunta, que seria uma primeira elaboração da angústia; e uma estrutura, onde essa pergunta será lançada para dar início ao debate diante do público. Dentre seus textos estão Namíbia, não! (2010), O campo de batalha (2014), Inventário Gusmão (2018) e Embarque imediato (2016).
Em Namíbia, não!, uma de suas obras mais emblemáticas que estreou em 2011, o público é apresentado a dois homens de “melanina acentuada”, debatendo entre si uma decisão governamental de enviar ao continente africano todas as pessoas de melanina acentuada do Brasil. Esse debate, coloca em evidência inúmeras perspectivas acerca de noções como origem, identidade, pertencimento, autonomia e autoritarismo. Nesse texto, os personagens estão em tensão entre si, mas juntos formam um corpo em tensão com uma “voz”. Uma voz quase onipresente, que de alguma forma representa a autoridade do sistema no qual estão inseridos. Esse jogo evidencia o conflito existente entre as estruturas que constituem o sujeito e aquilo que sempre escapa, sem dar muitas respostas.
No ano de 2013, Namíbia, não! é publicada e laureada com o prêmio Jabuti, alimentando o debate: dramaturgia é literatura? Ao que Aldri responde, dessa vez sem dúvidas, “É também”. Em abril de 2022 a obra receberá uma versão nos cinemas, o que nos faz refletir sobre a maleabilidade do que chamamos de “macroestrutura” e as interpretações possíveis sobre a obra na medida em que o contexto do qual se observa o trabalho muda. Quando lançada em 2011, esta obra poderia facilmente ser classificada como uma ficção distópica – vivíamos um governo de esquerda, estávamos às vésperas da oficialização da política de cotas (uma importante política de reparação conquistada pela movimentação negra brasileira), com a entrada de pessoas negras na universidade etc. –, o que fez a obra quase controversa. Inclusive, o autor foi questionado em inúmeras apresentações o porquê do uso do termo “melanina acentuada”, ao invés de “negro”, por exemplo. Hoje, por sua vez, com sua versão cinematográfica, que será intitulada Medida provisória, ela se aproxima um pouco mais da realidade, tamanho absurdo que configura o nosso tempo.
Experimentando a aplicação disso que chama de drama-debate em uma estrutura que não seja dialógica, o dramaturgo propôs uma trilogia de solos: A mulher no fundo do mar, Anti-memórias de uma travessia interrompida, e a terceira ainda em processo de escrita. Trata-se da mesma história, mas vivida por personagens que apresentariam perspectivas diferentes a partir de seus pontos de partida. Em A mulher do fundo do mar, a personagem é uma mulher síria que vive no oceano após cair de um bote que transportava refugiados. Em Anti-memórias de uma travessia interrompida, a personagem é uma mulher africana, jogada de um navio negreiro durante a travessia atlântica. Essa última receberá uma tradução e publicação pela Bloomsbury Publishing (Reino Unido) muito em breve, em um compilado de dramaturgias.
Ao apresentar o trabalho de Aldri Anunciação como dramaturgo e pesquisador, é importante destacar o seu trabalho com o Festival Dramaturgias da Melanina Acentuada (que já contou com cinco edições, três realizadas em Salvador, uma em São Paulo e uma no Rio de Janeiro) e com o portal Melanina Digital. O critério de participação no festival era o autor (a, e) da dramaturgia ser negro (a, e), independente da temática ou da proporção de pessoas negras em cena. Sua programação contou com apresentações de espetáculos, leituras dramáticas de textos em processo, consultorias, entrevistas públicas e mesas-redondas. Um acumulador nato, Aldri reuniu no site aproximadamente 350 horas de material gravado desses encontros, quando o Portal Melanina Digital foi lançado em 2018 (embora concebido em 2016) – um importante espaço de divulgação da memória do festival, mas também uma catalogação e divulgação de dramaturgues e roteiristes negres do Brasil que alimentam o debate: sobre o que fala e como fala um autor, autora ou autore negres no Brasil?
Laís Machado