CENA 19
(Atores movimentam-se como se estivessem num pátio de um hospício.)
DR. JULIANO MOREIRA: Enfim, estou conhecendo o famoso João Cândido...
(João não responde.)
DR. JULIANO MOREIRA: Muito prazer! Eu sou o Doutor Juliano Moreira...
(João não responde.)
DR. JULIANO MOREIRA: Eu já tinha ouvido dizer que o famoso João Cândido
estava recém-chegado a nosso hospital...
(João Cândido não responde.)
DR. JULIANO MOREIRA: Você é João Cândido, não é?
JOÃO CANDIDO: Felisberto.
DR. JULIANO MOREIRA: Felisberto?
JOÃO CANDIDO: João Cândido Felisberto.
DR. JULIANO MOREIRA: Em sua ficha consta apenas João Cândido.
JOÃO CANDIDO: É que quando eu cheguei na Marinha já existia um suboficial chamado Felisberto. Daí, eles tiraram o Felisberto de meu nome.
DR. JULIANO MOREIRA: És brasileiro?
JOÃO CANDIDO: Sim. E sofrendo muitas injustiças.
DR. JULIANO MOREIRA: Há alguns documentos que você precisa assinar lá dentro.
JOÃO CANDIDO (receoso): Minhas mãos tremem muito. Não posso assinar nada.
(Dr. Juliano olha João desconfiado e vai se retirando)
JOÃO CANDIDO: O senhor poderia me conseguir jornais? Os meus preferidos são o
Correio da manhã e o Diário de Notícias.
DR. JULIANO MOREIRA (cúmplice): Vou providenciar.
(Dr. Juliano trata de outros pacientes. João observa calado o seu entorno. Doutor
Juliano volta com jornais.)
DR. JULIANO MOREIRA (com os jornais em mãos): Não prometi que os traria?
JOÃO CANDIDO: Neste mundo nem todas as promessas se cumprem. Acreditei na palavra do Marechal Hermes da Fonseca e aqui estou nessa desgraça.
DR. JULIANO MOREIRA: E onde você está?
JOÃO CANDIDO: Preso num hospital para alienados.
DR. JULIANO MOREIRA: E por que você está aqui?
JOÃO CANDIDO: Durante vários dias eu vi e ouvi meus companheiros mortos.
DR. JULIANO MOREIRA: Viu e ouviu?
JOÃO CANDIDO: Os camaradas que estiveram comigo no cárcere e morreram a
centímetros de onde eu encontrava vieram muitas vezes me chamar.
DR. JULIANO MOREIRA: E você chegou a pensar em ir com eles?
JOÃO CANDIDO: Eles não vieram de barco, Doutor. Se viessem, numa jangada que
fosse, talvez eu tivesse me aventurado nesse mar (ri).
DR. JULIANO MOREIRA: Fico feliz que não tenhas seguido viagem. Ainda és moço
e tens muito a dar ao Brasil
JOÃO CANDIDO: Ao Brasil? Do Brasil eu só quero a minha liberdade.
(Dr. Juliano dirige-se à Marinha.)
DR. JULIANO MOREIRA: É um indivíduo de cor preta, calmo, humilde, de humor variável. Desconfiado. No dia em que aqui entrou era profundo o seu abatimento. Depois ficou mais comunicativo e passou a rir gostosamente durante nossas palestras.
(Dr. Juliano volta-se a João Cândido.)
DR. JULIANO MOREIRA: Não sou o Brasil para lhe restituir a liberdade que tanto almejas. Mas um pouquinho dela posso lhe dar. Tens minha permissão para dar uns passeios ao cair do dia.
JOÃO CANDIDO: Obrigado. Muito obrigado. (Apertam a mão.)
(Dr. Juliano dirige-se novamente à Marinha.)
DR. JULIANO MOREIRA: Nunca observamos alucinação, nem delírios. Trata-se de
um indivíduo em perfeita orientação autopsíquica, apresenta memória conservada, boa
atenção e percepção.
NARRADOR: É óbvio que o resultado dessas observações não agradou ao governo. João foi então removido e encaminhado novamente para a Ilha das Cobras. Lá ficou preso por quase dois anos. Mais da metade desse tempo isolado, sem qualquer contato com o mundo exterior. Depois, veio um longo processo onde foi absolvido, junto de outros nove marinheiros, entre eles Francisco Dias, o Mão Negra, daquela revolta que não houve. Com um par de botinas, a roupa do corpo e pulmões avariados pela tuberculose, João se vê, depois de 17 anos, desligado da Marinha e com novas ondas ao seu redor. Maré calma. Mar traiçoeiro. Vento gelado arrepiando o destino que lhe esperava como esperam os amores inconstantes de porto.
JOÃO CANDIDO: É como um colar de conchas o que vivo. Não tem valor algum se já
veio pronto. É preciso ouvir o som que há dentro de si. É preciso viver o som de dentro. O som de dentro de mim eu sinto. Só não consigo cantá-lo.
(Enquanto João fala, os demais atores cantam: "Vai, Marinheiro / é a hora de ancorar
/ se despede desse porto / segue para outro mar")
(Fragmento de Turmalina 18-50)