Em 2014, a Cia. Pão Doce estreava A Casatória c'a Defunta, espetáculo que circulou por mais de 120 cidades, passando por 19 estados e o Distrito Federal. O grupo criado em 2002, em Mossoró, a 281 km de Natal, se tornou um dos mais representativos do Rio Grande do Norte. Possui uma produção ampla, inclusive com espetáculos voltados para a infância e a juventude, montagens encenadas no palco e na rua, e um trabalho que reflete a relação dos integrantes da companhia com a cidade, a segunda mais populosa do estado, o Nordeste e outros artistas de linguagens diversas, como a literatura de cordel.
O texto de A Casatória... foi a estreia de Romero Oliveira, que também é ator e diretor musical, como dramaturgo. Nesse contexto, o artista enveredou por uma pesquisa sobre a dramaturgia do som, que atravessa a criação dos trabalhos da companhia. O entendimento do dramaturgo é que a prosódia, o tamanho e o ritmo dos diálogos, as interferências sonoras, os silêncios e respiros, a sonoplastia e a própria trilha sonora são parte essencial da escrita dramatúrgica. Se, em alguns grupos, o diretor musical ou o responsável pela trilha sonora já chega à sala de ensaio quando a encenação tem seus rumos mais definidos, no processo de trabalho da Cia. Pão Doce, o som é pensado ao mesmo tempo em que o texto, como dramaturgias que se complementam.
No texto de A Casatória..., o autor bebeu em fontes que ajudaram a construir a percepção sobre o que é o Nordeste: Ariano Suassuna, Patativa do Assaré, Câmara Cascudo, os cantadores de viola. Além disso, o cotidiano de cidade do interior foi inspiração: aqueles causos contados nas conversas nas calçadas das casas ajudaram a elaborar a dramaturgia. Os diálogos curtos, cheios de leveza e humor aproximam o público de um imaginário coletivo sobre o Nordeste e a sua história.
O universo “Nordeste” e os seus artistas seguiram como inspiração no texto O torto andar do outro (2018). A dramaturgia é baseada no livreto Um conto bem contado, do cordelista mossorense Antônio Francisco, que tem uma obra reconhecida como uma das mais importantes do país na literatura de cordel. O espetáculo é o primeiro da Trilogia Antoniana, série da Cia. Pão Doce inspirada na obra do cordelista.
A musicalidade e os diálogos rápidos são marcas do texto, que conta a história de uma cidadezinha que se vê ameaçada por uma criança. Enquanto todos ali andavam sempre de lado, surge o boato de que essa criança andava de um jeito diferente: de trás para frente. A crítica social, a tirania dos governantes, a disputa desenfreada por poder, a corrupção, o preconceito e a xenofobia são questões trazidas pela dramaturgia, mas sem perder a leveza e a poesia que trazem o leitor – e o espectador – para dentro da montagem.
O segundo espetáculo da Trilogia Antoniana, Mundarino (2021), estava previsto para estrear na rua, mas foi adaptado para o formato virtual diante das restrições impostas pela pandemia de Covid-19. A dramaturgia é uma parceria entre Romero Oliveira e César Ferrario, dramaturgo, ator e diretor, que integrou por muitos anos o grupo Clowns de Shakespeare e atualmente faz parte da Casa de Zoé. No trabalho, dois artistas vão em busca do poeta Antônio Francisco e, nesse caminho, contam histórias, declamam poemas e apresentam números musicais variados. A imagem do homem-orquestra, que toca vários instrumentos acoplados ao próprio corpo, uma parafernália musical, é uma das propostas da dramaturgia, que possui trilha sonora autoral, assim como todos os trabalhos com dramaturgia e direção musical de Romero Oliveira para a companhia.
Outro trabalho de destaque na trajetória de Oliveira e do grupo é o espetáculo À luz do luar (2020), que narra episódios significativos na história do Brasil e de Mossoró, como o Motim das Mulheres, que aconteceu em 31 de agosto de 1875, e o registro da primeira eleitora do país. Um dos diferenciais da dramaturgia é o ponto de vista: os acontecimentos são contados pela perspectiva do povo e não das elites da época, que ajudaram a construir as narrativas oficiais.
O Motim das Mulheres foi insuflado pela obrigatoriedade do alistamento militar: havia o receio de que a medida fosse utilizada por políticos para recrutar os filhos dos adversários. Contra essa obrigatoriedade, 130 donas de casas se uniram em passeata. Já a primeira eleitora do país foi Celina Guimarães Viana, que, aos 29 anos, solicitou ao cartório a inclusão do seu nome na lista de eleitores para que pudesse votar nas eleições municipais em Mossoró, em 1928. Só quatro anos depois, em 1932, Getúlio Vargas baixou o decreto permitindo o voto das mulheres. A dramaturgia optou pelo formato de peça-palestra, mas incluindo a encenação das histórias contadas por três personagens: um coquista, um poeta e um cantador.
Apesar de assinados por Oliveira, os textos da Cia. Pão Doce são resultado de um trabalho coletivo. Geralmente, o dramaturgo escreve a primeira proposta e, a partir das discussões e experimentações nas leituras de mesa e na sala de ensaio, os enredos são ajustados e modificados. Em todos os processos, além da importância da dramaturgia do som, há uma tentativa de estabelecer uma comunicação ampla e assertiva com o público diverso da companhia, que é muitas vezes capturado pela música e pela poesia, linguagens caras à cultura popular.
Pollyanna Diniz