raysner de paula

Betim - MG

Fragmento Teatral

TRUMARÉ – Escuta!
(...)
TRUMARÉ – Esse vento que sopra...
(...)
TRUMARÉ – Como no começo de tudo! O tempo estava adormecido. Por isso, nada já era sendo o que seria. Mergulhado num breu.

O vento sopra mais forte.

TRUMARÉ – Nisso, o vento tornou-se brisa assanhada e assoprou a nuca do tempo.

Ainda escuro.

TRUMARÉ – Foi um arrepio! No meio do breu. E a brisa viu que o arrepio era bom e soprou outra vez.
(...)
TRUMARÉ – O tempo começou a se contorcer, a se enroscar, a rir.
(...)
TRUMARÉ – A brisa e o nada davam risadas. O silêncio acabava de se espatifar em mil pedacinhos.
(...)
TRUMARÉ – Uma festa!
(...)
TRUMARÉ – Aquela imensidão sem cor era só remelexo! Uma tremedeira! Um arrepio! Um troço! Uma festa. E a brisa muito assanhada não parava de soprar, agora cada vez mais forte! Uma ventarola que fazia o nada esvoaçar, feito roupa no varal, como quando numa ventania. De repente, com aquela algazarra, o tempo acordou!
(...)
TRUMARÉ – E o nada de nada ventou-se pra longe, feito roupa avoada desprendida do varal.
(...)
TRUMARÉ – Escuta: foi assim que o princípio de tudo começou a existir!
(...)
TRUMARÉ – As cores, as formas, as vidas, os cheiros... Uma festa!

Trumaré aponta para o alto. Como se lá estivessem as folhas e os galhos de uma
árvore muito alta.

TRUMARÉ – Está vendo aquela árvore ali? Olha só o tamanho dela! Vive de fazer cócegas na barriga do céu! Foi em cima dela que escutei o vento assoprar essa história. Lá em cima, escuto também o guincho do gavião e gosto! Do tintilar da gota de chuva riscando o ar antes de espatifar aqui embaixo, gosto também! Escuto a noite chegando, escuto sabiá chamando chuva, escuto a folha desistindo do galho, e eu gosto. Eu gosto de ficar bem lá em cima – onde as galhas enchem de cócegas a barriga do céu.
(...)
TRUMARÉ – Pra subir tão lá no alto tive de aprender da natureza, da onça suçuarana. Do jeito que o bicho chega lá no topo sem a gente terminar de piscar! Fui ensinado por ela, numa noite de lua cheia.

Escuta: os sons da mata.

TRUMARÉ – Um dia, à noite, voltava pra casa: no caminho, dei de cara com ela, no meio da mata, sem nenhum prévio aviso.

(...)
TRUMARÉ – Bicho faceiro, onça suçuarana.
(...)
TRUMARÉ– Mais silenciosa do que o tempo deslizando na gente, esse bicho quando sai para caçar.
(...)
TRUMARÉ – Quando fui ver já estava de cara com ela. Vi o brilho da lua refletido no focinho do bicho. Engoli uma golada de fôlego.
(...)
TRUMARÉ – As minhas pernas dançavam no descompasso do medo, assim, desse jeito.
(...)
TRUMARÉ – O meu coração parecia querer rasgar o meu peito, até parecendo ter vontade de ser meu primeiro pedaço devorado pela onça.
(...)
TRUMARÉ – Foi quando eu pensei: findarei, ai de mim! Nas ideias, desesperei: AH COMO EU QUERIA SER LAMA NESSA HORA AGORA! AH COMO EU QUERIA SER PEDRA! AH COMO EU QUERIA SER GALHA! UMA FOLHA! UMA SOMBRA! SER A NOITE, SER NADA.
(...)
TRUMARÉ – AH COMO EU QUERIA NÃO SER TRUMARÉ, FEITO ASSIM: APETITOSO DE TUDO!
(...)
TRUMARÉ – Mas só que entoquei bem escondido esse pensamento nas minha cachola e não me debulhei lamento nenhum na frente da onça! Ela lá me encarando, esperando só eu piscar e eu não piscava. Me temperei com bravura e brio minhas todas carnezinhas. Estava pronto pra teimar minha vida até...
(...)
TRUMARÉ – Pus meu olho no olho da fera.
(...)
TRUMARÉ – Encontrei a coragem morando lá dentro!
(...)
TRUMARÉ – Foi quando escutei o fungado do bicho.
(...)
TRUMARÉ – Ela veio vindo até mim, farejou tudo que era eu. Fiquei uma pedra!
(...)
TRUMARÉ – Curvei em respeito.

Agora, em cena, tudo será Trumaré diante da onça suçuarana.

(Fragmento de Trumaré)

Raysner de Paula é dramaturgo, roteirista, ator e professor de teatro.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Há pelo menos dois principais eixos que se imiscuem na dramaturgia de Raysner de Paula. Em primeiro lugar, tem-se um cuidadoso burilamento da palavra. Para além da constante invenção ou ressignificação de vocábulos, o autor constrói textos que exibem, a um só tempo, o caráter artesanal e material da linguagem. Os neologismos, as polissemias e os jogos sintáticos se atentam também para as qualidades sonoras, musicais e rítmicas das palavras empregadas. Em segundo lugar, o teor assumidamente poético, imaginativo e, por vezes, lírico dos seus textos, caminha para a construção de narrativas. Em grande parte de suas obras, Raysner elabora estórias, conjugando elementos de contos infantis, de fábulas e de mitos. Não raro, as suas personagens estão a narrar as vicissitudes de suas existências, compartilhando conosco sinuosas recordações e aspirações. Ademais, certos textos, de um modo geral, criam situações que escancaram o caráter artificial do teatro, o faz de conta e a invenção em processo.

Raysner é licenciado em Teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde cofundou, em 2012, o grupo Mamãe tá na plateia (BH), com o qual alguns de seus textos foram encenados. Além de dramaturgo, ele é ator e professor de teatro para crianças e adolescentes na rede pública de ensino. Já colaborou, ora na atuação, ora na dramaturgia, com distintos grupos teatrais, como o Espanca! (BH), o Maria Cutia (BH) e o Boca de Cena (SE). A experiência docente investe a sua dramaturgia de vívido interesse para com as linguagens teatrais infantojuvenis, explorando recursos, técnicas e modos de criação nos quais as dimensões lúdica, estética e pedagógica se interpenetram. Nascido em Belo Horizonte, Raysner inscreve, em certos textos, marcas sutis da oralidade e dos contornos dialetais saborosamente mineiros.

Na conjuntura contemporânea, Raysner é integrante de uma nova geração de autores e autoras que, pela investigação das formas, possibilidades e composições dramatúrgicas, imprimem autoralidade nos seus trabalhos e renovam o panorama teatral de Belo Horizonte. O artista, assim como Anderson Feliciano, Grace Passô, Marina Viana e Daniel Toledo, para ficarmos apenas com alguns nomes, pôde experimentar e amadurecer muitas textualidades, especialmente no projeto Janela de Dramaturgia. Esta iniciativa, fundada no ano de 2012, por Vinícius de Souza e Sara Pinheiro, objetiva, em síntese, criar anualmente um espaço para leitura e debate de textos inéditos de novos autores/as de Belo Horizonte e de outros pontos do país, porém em diálogo com criadores e estéticas internacionais. O percurso de Raysner está fortemente conectado a estas novas práticas, coletivas e públicas, de se fazer e de se pensar a dramaturgia. Seus textos João e Maria, Trumaré, A menina de lá (mais tarde renomeado de Danação) e Criatura foram apresentados em distintas edições da Janela de Dramaturgia.
 
O menino que sonhava demais, uma de suas primeiras peças, já continha alguns princípios criativos que, até então, acompanham a trajetória do autor. O texto, encenado em 2012 pelo grupo Mamãe tá na plateia, apresenta a saga de Zé, o ousado garoto que desafiou um megalomaníaco ditador, cujos desmandos proibiam toda e qualquer pessoa de sonhar. Contra um mundo desprovido de imaginação, Zé e seus companheiros utilizam a fantasia como impulso para revitalizar nossa fundamental capacidade de fabular outros mundos possíveis. Naquele mesmo ano, Raysner escreveu João e Maria, obra que reelabora o clássico conto infantil. Contudo, o foco aqui não está nas já conhecidas desventuras dos dois irmãos. A dramaturgia privilegia os momentos anteriores, nos quais as crianças, por meio de diálogos ágeis, conjecturam quais paisagens existiriam do outro lado do rio, para além dos limites da visão. A afetuosa relação fraternal se acentua à medida em que a curiosidade cresce no coração de ambos, entre os medos e as reprimendas dos pais. O ardente desejo de percorrer o mundo, atitude central de João e Maria, faz com que as crianças saiam de casa após diversas brincadeiras e rememorações, andantes corajosos e inspirados pela beleza e pelos riscos que as viagens oferecem. Aliás, a errância como uma vontade, uma condição ou uma imposição é um traço recorrente de outras personagens de Raysner. Tal fato nos ajuda a compreender o papel determinante da imaginação para criaturas que intuem (ou inventam) o novo e o desconhecido. Esta é uma das características basilares do texto Remundados, em que quatro degredados artistas narram seus infortúnios.

Ainda no âmbito das dramaturgias para as infâncias e juventudes, pode-se destacar Trumaré – uma ideia teatral e Quem é você?, escritas respectivamente em 2017 e 2019. A história do menino Trumaré evoca a dor, o desespero e a melancolia de inúmeros povos forçados a abandonar seus territórios, em virtude das guerras e das inúmeras formas de invasão. O delicado garoto conta-nos como era a vida em sua comunidade. A visão do menino é recheada de doçura, por meio da qual tudo é revestido de encantamento, como as árvores, os animais, a chuva e o próprio tempo. Partilhar conosco a sua história é um ato amorosamente político, pois não permite que sua tragédia caia no esquecimento, afetando-nos. Quem é você?, por sua vez, é matizada pelo universo dos contos de fada. A peça problematiza os rígidos e conservadores padrões que visam regular identidades dissidentes dos paradigmas socialmente aceitos. Ainda que ataque mais diretamente os discursos cis e heteronormativos, o texto nos possibilita questionar os muitos mecanismos que tentam homogeneizar as diversas formas de ser e estar no mundo. A dramaturgia maneja alegorias e criaturas arquetípicas para narrar, com ironia e comicidade, as peripécias das Bibas, as duas personagens centrais que apenas almejam viver plenamente. O texto foi encenado pela companhia belo-horizontina Toda Deseo, cujas pesquisas cênicas voltam-se para as vivências LGBTQIA+.

A dramaturgia de Danação condensa, em boa medida, elementos e recursos plásticos, sem dúvidas, fundamentais para a escrita de Raysner. A surreal história da mãe, que esconde, em seu coração, a própria filha para protegê-la da morte, é estruturada a partir de uma textualidade fortemente poética, na qual as palavras (e os neologismos) são esculpidas como potências imaginativas e mágicas. Incontáveis figuras de linguagem e artifícios rítmicos estruturam uma ambiência onírica que se espalha, inclusive, para as rubricas, bastante líricas, e para a peculiar disposição das palavras na página, a exemplo de poemas concretos. A delicadeza da peça aborda questões como a finitude da vida, o amor e o tempo. João Guimarães Rosa, referência literária de Raysner, é suavemente entrevisto em Danação e explicitamente presente no texto de Rioadentro. Concebida em 2016, a peça se constrói a partir do antológico conto rosiano, “A terceira margem do rio”.

Inquieto, Raysner possui outros textos de estilos distintos, como Ópera de sabão, espetáculo de rua, com dramaturgia melodramática e folhetinesca inspirada nas radionovelas; Elefante Branco, uma agridoce metáfora que discute as burocracias humanas; e A Farsa do bom juiz, mordaz sátira política que critica a vida institucional e governamental do Brasil. Alguns de seus textos já foram publicados pela editora Perspectiva nos volumes dedicados ao projeto Janela de Dramaturgia (2016) e pela editora Javali, na coleção Teatro Contemporâneo, nas edições Teatro de Rua (2018) e Por quê? – Teatro para infâncias e juventudes (2019).

Guilherme Diniz

Raysner de Paula é dramaturgo, roteirista, ator e professor de teatro.

Há pelo menos dois principais eixos que se imiscuem na dramaturgia de Raysner de Paula. Em primeiro lugar, tem-se um cuidadoso burilamento da palavra. Para além da constante invenção ou ressignificação de vocábulos, o autor constrói textos que exibem, a um só tempo, o caráter artesanal e material da linguagem. Os neologismos, as polissemias e os jogos sintáticos se atentam também para as qualidades sonoras, musicais e rítmicas das palavras empregadas. Em segundo lugar, o teor assumidamente poético, imaginativo e, por vezes, lírico dos seus textos, caminha para a construção de narrativas. Em grande parte de suas obras, Raysner elabora estórias, conjugando elementos de contos infantis, de fábulas e de mitos. Não raro, as suas personagens estão a narrar as vicissitudes de suas existências, compartilhando conosco sinuosas recordações e aspirações. Ademais, certos textos, de um modo geral, criam situações que escancaram o caráter artificial do teatro, o faz de conta e a invenção em processo.

Raysner é licenciado em Teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde cofundou, em 2012, o grupo Mamãe tá na plateia (BH), com o qual alguns de seus textos foram encenados. Além de dramaturgo, ele é ator e professor de teatro para crianças e adolescentes na rede pública de ensino. Já colaborou, ora na atuação, ora na dramaturgia, com distintos grupos teatrais, como o Espanca! (BH), o Maria Cutia (BH) e o Boca de Cena (SE). A experiência docente investe a sua dramaturgia de vívido interesse para com as linguagens teatrais infantojuvenis, explorando recursos, técnicas e modos de criação nos quais as dimensões lúdica, estética e pedagógica se interpenetram. Nascido em Belo Horizonte, Raysner inscreve, em certos textos, marcas sutis da oralidade e dos contornos dialetais saborosamente mineiros.

Na conjuntura contemporânea, Raysner é integrante de uma nova geração de autores e autoras que, pela investigação das formas, possibilidades e composições dramatúrgicas, imprimem autoralidade nos seus trabalhos e renovam o panorama teatral de Belo Horizonte. O artista, assim como Anderson Feliciano, Grace Passô, Marina Viana e Daniel Toledo, para ficarmos apenas com alguns nomes, pôde experimentar e amadurecer muitas textualidades, especialmente no projeto Janela de Dramaturgia. Esta iniciativa, fundada no ano de 2012, por Vinícius de Souza e Sara Pinheiro, objetiva, em síntese, criar anualmente um espaço para leitura e debate de textos inéditos de novos autores/as de Belo Horizonte e de outros pontos do país, porém em diálogo com criadores e estéticas internacionais. O percurso de Raysner está fortemente conectado a estas novas práticas, coletivas e públicas, de se fazer e de se pensar a dramaturgia. Seus textos João e Maria, Trumaré, A menina de lá (mais tarde renomeado de Danação) e Criatura foram apresentados em distintas edições da Janela de Dramaturgia.
 
O menino que sonhava demais, uma de suas primeiras peças, já continha alguns princípios criativos que, até então, acompanham a trajetória do autor. O texto, encenado em 2012 pelo grupo Mamãe tá na plateia, apresenta a saga de Zé, o ousado garoto que desafiou um megalomaníaco ditador, cujos desmandos proibiam toda e qualquer pessoa de sonhar. Contra um mundo desprovido de imaginação, Zé e seus companheiros utilizam a fantasia como impulso para revitalizar nossa fundamental capacidade de fabular outros mundos possíveis. Naquele mesmo ano, Raysner escreveu João e Maria, obra que reelabora o clássico conto infantil. Contudo, o foco aqui não está nas já conhecidas desventuras dos dois irmãos. A dramaturgia privilegia os momentos anteriores, nos quais as crianças, por meio de diálogos ágeis, conjecturam quais paisagens existiriam do outro lado do rio, para além dos limites da visão. A afetuosa relação fraternal se acentua à medida em que a curiosidade cresce no coração de ambos, entre os medos e as reprimendas dos pais. O ardente desejo de percorrer o mundo, atitude central de João e Maria, faz com que as crianças saiam de casa após diversas brincadeiras e rememorações, andantes corajosos e inspirados pela beleza e pelos riscos que as viagens oferecem. Aliás, a errância como uma vontade, uma condição ou uma imposição é um traço recorrente de outras personagens de Raysner. Tal fato nos ajuda a compreender o papel determinante da imaginação para criaturas que intuem (ou inventam) o novo e o desconhecido. Esta é uma das características basilares do texto Remundados, em que quatro degredados artistas narram seus infortúnios.

Ainda no âmbito das dramaturgias para as infâncias e juventudes, pode-se destacar Trumaré – uma ideia teatral e Quem é você?, escritas respectivamente em 2017 e 2019. A história do menino Trumaré evoca a dor, o desespero e a melancolia de inúmeros povos forçados a abandonar seus territórios, em virtude das guerras e das inúmeras formas de invasão. O delicado garoto conta-nos como era a vida em sua comunidade. A visão do menino é recheada de doçura, por meio da qual tudo é revestido de encantamento, como as árvores, os animais, a chuva e o próprio tempo. Partilhar conosco a sua história é um ato amorosamente político, pois não permite que sua tragédia caia no esquecimento, afetando-nos. Quem é você?, por sua vez, é matizada pelo universo dos contos de fada. A peça problematiza os rígidos e conservadores padrões que visam regular identidades dissidentes dos paradigmas socialmente aceitos. Ainda que ataque mais diretamente os discursos cis e heteronormativos, o texto nos possibilita questionar os muitos mecanismos que tentam homogeneizar as diversas formas de ser e estar no mundo. A dramaturgia maneja alegorias e criaturas arquetípicas para narrar, com ironia e comicidade, as peripécias das Bibas, as duas personagens centrais que apenas almejam viver plenamente. O texto foi encenado pela companhia belo-horizontina Toda Deseo, cujas pesquisas cênicas voltam-se para as vivências LGBTQIA+.

A dramaturgia de Danação condensa, em boa medida, elementos e recursos plásticos, sem dúvidas, fundamentais para a escrita de Raysner. A surreal história da mãe, que esconde, em seu coração, a própria filha para protegê-la da morte, é estruturada a partir de uma textualidade fortemente poética, na qual as palavras (e os neologismos) são esculpidas como potências imaginativas e mágicas. Incontáveis figuras de linguagem e artifícios rítmicos estruturam uma ambiência onírica que se espalha, inclusive, para as rubricas, bastante líricas, e para a peculiar disposição das palavras na página, a exemplo de poemas concretos. A delicadeza da peça aborda questões como a finitude da vida, o amor e o tempo. João Guimarães Rosa, referência literária de Raysner, é suavemente entrevisto em Danação e explicitamente presente no texto de Rioadentro. Concebida em 2016, a peça se constrói a partir do antológico conto rosiano, “A terceira margem do rio”.

Inquieto, Raysner possui outros textos de estilos distintos, como Ópera de sabão, espetáculo de rua, com dramaturgia melodramática e folhetinesca inspirada nas radionovelas; Elefante Branco, uma agridoce metáfora que discute as burocracias humanas; e A Farsa do bom juiz, mordaz sátira política que critica a vida institucional e governamental do Brasil. Alguns de seus textos já foram publicados pela editora Perspectiva nos volumes dedicados ao projeto Janela de Dramaturgia (2016) e pela editora Javali, na coleção Teatro Contemporâneo, nas edições Teatro de Rua (2018) e Por quê? – Teatro para infâncias e juventudes (2019).

Guilherme Diniz

TRUMARÉ – Escuta!
(...)
TRUMARÉ – Esse vento que sopra...
(...)
TRUMARÉ – Como no começo de tudo! O tempo estava adormecido. Por isso, nada já era sendo o que seria. Mergulhado num breu.

O vento sopra mais forte.

TRUMARÉ – Nisso, o vento tornou-se brisa assanhada e assoprou a nuca do tempo.

Ainda escuro.

TRUMARÉ – Foi um arrepio! No meio do breu. E a brisa viu que o arrepio era bom e soprou outra vez.
(...)
TRUMARÉ – O tempo começou a se contorcer, a se enroscar, a rir.
(...)
TRUMARÉ – A brisa e o nada davam risadas. O silêncio acabava de se espatifar em mil pedacinhos.
(...)
TRUMARÉ – Uma festa!
(...)
TRUMARÉ – Aquela imensidão sem cor era só remelexo! Uma tremedeira! Um arrepio! Um troço! Uma festa. E a brisa muito assanhada não parava de soprar, agora cada vez mais forte! Uma ventarola que fazia o nada esvoaçar, feito roupa no varal, como quando numa ventania. De repente, com aquela algazarra, o tempo acordou!
(...)
TRUMARÉ – E o nada de nada ventou-se pra longe, feito roupa avoada desprendida do varal.
(...)
TRUMARÉ – Escuta: foi assim que o princípio de tudo começou a existir!
(...)
TRUMARÉ – As cores, as formas, as vidas, os cheiros... Uma festa!

Trumaré aponta para o alto. Como se lá estivessem as folhas e os galhos de uma
árvore muito alta.

TRUMARÉ – Está vendo aquela árvore ali? Olha só o tamanho dela! Vive de fazer cócegas na barriga do céu! Foi em cima dela que escutei o vento assoprar essa história. Lá em cima, escuto também o guincho do gavião e gosto! Do tintilar da gota de chuva riscando o ar antes de espatifar aqui embaixo, gosto também! Escuto a noite chegando, escuto sabiá chamando chuva, escuto a folha desistindo do galho, e eu gosto. Eu gosto de ficar bem lá em cima – onde as galhas enchem de cócegas a barriga do céu.
(...)
TRUMARÉ – Pra subir tão lá no alto tive de aprender da natureza, da onça suçuarana. Do jeito que o bicho chega lá no topo sem a gente terminar de piscar! Fui ensinado por ela, numa noite de lua cheia.

Escuta: os sons da mata.

TRUMARÉ – Um dia, à noite, voltava pra casa: no caminho, dei de cara com ela, no meio da mata, sem nenhum prévio aviso.

(...)
TRUMARÉ – Bicho faceiro, onça suçuarana.
(...)
TRUMARÉ– Mais silenciosa do que o tempo deslizando na gente, esse bicho quando sai para caçar.
(...)
TRUMARÉ – Quando fui ver já estava de cara com ela. Vi o brilho da lua refletido no focinho do bicho. Engoli uma golada de fôlego.
(...)
TRUMARÉ – As minhas pernas dançavam no descompasso do medo, assim, desse jeito.
(...)
TRUMARÉ – O meu coração parecia querer rasgar o meu peito, até parecendo ter vontade de ser meu primeiro pedaço devorado pela onça.
(...)
TRUMARÉ – Foi quando eu pensei: findarei, ai de mim! Nas ideias, desesperei: AH COMO EU QUERIA SER LAMA NESSA HORA AGORA! AH COMO EU QUERIA SER PEDRA! AH COMO EU QUERIA SER GALHA! UMA FOLHA! UMA SOMBRA! SER A NOITE, SER NADA.
(...)
TRUMARÉ – AH COMO EU QUERIA NÃO SER TRUMARÉ, FEITO ASSIM: APETITOSO DE TUDO!
(...)
TRUMARÉ – Mas só que entoquei bem escondido esse pensamento nas minha cachola e não me debulhei lamento nenhum na frente da onça! Ela lá me encarando, esperando só eu piscar e eu não piscava. Me temperei com bravura e brio minhas todas carnezinhas. Estava pronto pra teimar minha vida até...
(...)
TRUMARÉ – Pus meu olho no olho da fera.
(...)
TRUMARÉ – Encontrei a coragem morando lá dentro!
(...)
TRUMARÉ – Foi quando escutei o fungado do bicho.
(...)
TRUMARÉ – Ela veio vindo até mim, farejou tudo que era eu. Fiquei uma pedra!
(...)
TRUMARÉ – Curvei em respeito.

Agora, em cena, tudo será Trumaré diante da onça suçuarana.

(Fragmento de Trumaré)