Há pelo menos dois principais eixos que se imiscuem na dramaturgia de Raysner de Paula. Em primeiro lugar, tem-se um cuidadoso burilamento da palavra. Para além da constante invenção ou ressignificação de vocábulos, o autor constrói textos que exibem, a um só tempo, o caráter artesanal e material da linguagem. Os neologismos, as polissemias e os jogos sintáticos se atentam também para as qualidades sonoras, musicais e rítmicas das palavras empregadas. Em segundo lugar, o teor assumidamente poético, imaginativo e, por vezes, lírico dos seus textos, caminha para a construção de narrativas. Em grande parte de suas obras, Raysner elabora estórias, conjugando elementos de contos infantis, de fábulas e de mitos. Não raro, as suas personagens estão a narrar as vicissitudes de suas existências, compartilhando conosco sinuosas recordações e aspirações. Ademais, certos textos, de um modo geral, criam situações que escancaram o caráter artificial do teatro, o faz de conta e a invenção em processo.
Raysner é licenciado em Teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde cofundou, em 2012, o grupo Mamãe tá na plateia (BH), com o qual alguns de seus textos foram encenados. Além de dramaturgo, ele é ator e professor de teatro para crianças e adolescentes na rede pública de ensino. Já colaborou, ora na atuação, ora na dramaturgia, com distintos grupos teatrais, como o Espanca! (BH), o Maria Cutia (BH) e o Boca de Cena (SE). A experiência docente investe a sua dramaturgia de vívido interesse para com as linguagens teatrais infantojuvenis, explorando recursos, técnicas e modos de criação nos quais as dimensões lúdica, estética e pedagógica se interpenetram. Nascido em Belo Horizonte, Raysner inscreve, em certos textos, marcas sutis da oralidade e dos contornos dialetais saborosamente mineiros.
Na conjuntura contemporânea, Raysner é integrante de uma nova geração de autores e autoras que, pela investigação das formas, possibilidades e composições dramatúrgicas, imprimem autoralidade nos seus trabalhos e renovam o panorama teatral de Belo Horizonte. O artista, assim como Anderson Feliciano, Grace Passô, Marina Viana e Daniel Toledo, para ficarmos apenas com alguns nomes, pôde experimentar e amadurecer muitas textualidades, especialmente no projeto Janela de Dramaturgia. Esta iniciativa, fundada no ano de 2012, por Vinícius de Souza e Sara Pinheiro, objetiva, em síntese, criar anualmente um espaço para leitura e debate de textos inéditos de novos autores/as de Belo Horizonte e de outros pontos do país, porém em diálogo com criadores e estéticas internacionais. O percurso de Raysner está fortemente conectado a estas novas práticas, coletivas e públicas, de se fazer e de se pensar a dramaturgia. Seus textos João e Maria, Trumaré, A menina de lá (mais tarde renomeado de Danação) e Criatura foram apresentados em distintas edições da Janela de Dramaturgia.
O menino que sonhava demais, uma de suas primeiras peças, já continha alguns princípios criativos que, até então, acompanham a trajetória do autor. O texto, encenado em 2012 pelo grupo Mamãe tá na plateia, apresenta a saga de Zé, o ousado garoto que desafiou um megalomaníaco ditador, cujos desmandos proibiam toda e qualquer pessoa de sonhar. Contra um mundo desprovido de imaginação, Zé e seus companheiros utilizam a fantasia como impulso para revitalizar nossa fundamental capacidade de fabular outros mundos possíveis. Naquele mesmo ano, Raysner escreveu João e Maria, obra que reelabora o clássico conto infantil. Contudo, o foco aqui não está nas já conhecidas desventuras dos dois irmãos. A dramaturgia privilegia os momentos anteriores, nos quais as crianças, por meio de diálogos ágeis, conjecturam quais paisagens existiriam do outro lado do rio, para além dos limites da visão. A afetuosa relação fraternal se acentua à medida em que a curiosidade cresce no coração de ambos, entre os medos e as reprimendas dos pais. O ardente desejo de percorrer o mundo, atitude central de João e Maria, faz com que as crianças saiam de casa após diversas brincadeiras e rememorações, andantes corajosos e inspirados pela beleza e pelos riscos que as viagens oferecem. Aliás, a errância como uma vontade, uma condição ou uma imposição é um traço recorrente de outras personagens de Raysner. Tal fato nos ajuda a compreender o papel determinante da imaginação para criaturas que intuem (ou inventam) o novo e o desconhecido. Esta é uma das características basilares do texto Remundados, em que quatro degredados artistas narram seus infortúnios.
Ainda no âmbito das dramaturgias para as infâncias e juventudes, pode-se destacar Trumaré – uma ideia teatral e Quem é você?, escritas respectivamente em 2017 e 2019. A história do menino Trumaré evoca a dor, o desespero e a melancolia de inúmeros povos forçados a abandonar seus territórios, em virtude das guerras e das inúmeras formas de invasão. O delicado garoto conta-nos como era a vida em sua comunidade. A visão do menino é recheada de doçura, por meio da qual tudo é revestido de encantamento, como as árvores, os animais, a chuva e o próprio tempo. Partilhar conosco a sua história é um ato amorosamente político, pois não permite que sua tragédia caia no esquecimento, afetando-nos. Quem é você?, por sua vez, é matizada pelo universo dos contos de fada. A peça problematiza os rígidos e conservadores padrões que visam regular identidades dissidentes dos paradigmas socialmente aceitos. Ainda que ataque mais diretamente os discursos cis e heteronormativos, o texto nos possibilita questionar os muitos mecanismos que tentam homogeneizar as diversas formas de ser e estar no mundo. A dramaturgia maneja alegorias e criaturas arquetípicas para narrar, com ironia e comicidade, as peripécias das Bibas, as duas personagens centrais que apenas almejam viver plenamente. O texto foi encenado pela companhia belo-horizontina Toda Deseo, cujas pesquisas cênicas voltam-se para as vivências LGBTQIA+.
A dramaturgia de Danação condensa, em boa medida, elementos e recursos plásticos, sem dúvidas, fundamentais para a escrita de Raysner. A surreal história da mãe, que esconde, em seu coração, a própria filha para protegê-la da morte, é estruturada a partir de uma textualidade fortemente poética, na qual as palavras (e os neologismos) são esculpidas como potências imaginativas e mágicas. Incontáveis figuras de linguagem e artifícios rítmicos estruturam uma ambiência onírica que se espalha, inclusive, para as rubricas, bastante líricas, e para a peculiar disposição das palavras na página, a exemplo de poemas concretos. A delicadeza da peça aborda questões como a finitude da vida, o amor e o tempo. João Guimarães Rosa, referência literária de Raysner, é suavemente entrevisto em Danação e explicitamente presente no texto de Rioadentro. Concebida em 2016, a peça se constrói a partir do antológico conto rosiano, “A terceira margem do rio”.
Inquieto, Raysner possui outros textos de estilos distintos, como Ópera de sabão, espetáculo de rua, com dramaturgia melodramática e folhetinesca inspirada nas radionovelas; Elefante Branco, uma agridoce metáfora que discute as burocracias humanas; e A Farsa do bom juiz, mordaz sátira política que critica a vida institucional e governamental do Brasil. Alguns de seus textos já foram publicados pela editora Perspectiva nos volumes dedicados ao projeto Janela de Dramaturgia (2016) e pela editora Javali, na coleção Teatro Contemporâneo, nas edições Teatro de Rua (2018) e Por quê? – Teatro para infâncias e juventudes (2019).
Guilherme Diniz