A diversidade de práticas e formatos na escrita de Rafael Barbosa faz de sua produção mais recente como dramaturgo um campo de experimentação e pesquisa. Escrevendo sozinho ou colaborando com diversos coletivos teatrais de Fortaleza, seus processos vão desde o que chamamos (pela força do jargão) de gabinete até o dramaturgismo em criações na sala de ensaio. Encenador e ator de alguns de seus textos, Rafael define-se como dramaturgo por escrever para o gênero dramático, o que podemos notar na presença de personagens subjetivos, nos diálogos bem construídos e no conflito em torno de laços familiares.
Formado em Teatro pelo IFCE, Rafael é carioca radicado no estado do Ceará desde 2004. Pertence a uma geração proeminente do teatro cearense, que inclui grupos como o Expressões Humanas, a Inquieta Cia., Manada e o Ninho. Na última década, venceu por duas vezes o Concurso Nacional de Jovens Dramaturgos com os textos Quando ele dançou Maria (2015) e O braço do pai (2017), publicados em coletânea pelo Espaço Cultural Escola SESC, no Rio de Janeiro, junto a outros textos vencedores. É professor de Artes e Literatura na rede municipal de ensino, contexto em que estuda e pratica o procedimento da adaptação de textos clássicos – o qual veremos funcionar por exemplo em Orlando, peça de 2013 adaptada do romance homônimo de Virginia Woolf e assinada em parceria com Herê Aquino, do Grupo Expressões Humanas.
Sua capacidade de se comunicar com o público jovem, do qual se mantém próximo devido à atuação como docente na educação básica, leva Rafael a colaborar durante certo período como roteirista para o canal do YouTube Bela Bagunça, que possui atualmente mais de 12 milhões de inscritos e vídeos com mais de 100 milhões de visualizações. No processo de criação para o canal, Rafael manda o roteiro narrado por áudio, de modo que a dramaturgia se produz pela palavra e não pelo papel. Bela Bagunça apresenta as peripécias do cotidiano de Isabela Castro, uma garota que gosta de se divertir. Em perspectiva expandida de uma dramaturgia para a cena, a participação de Rafael no canal faz dele um dos dramaturgos contemporâneos mais relevantes para a criação de conteúdo destinado ao público infantojuvenil no Brasil.
Dentre as criações com outros artistas da cidade, destacam-se Ô, Putaria (2012), premiado como Melhor Texto Original no FECTA e no FESFORT, e Metrópole (2013), em parceria com Silvero Pereira e Gyl Giffoni. Na criação deste último trabalho, o procedimento utilizado por Rafael foi o envio de questionários para a equipe do espetáculo, que poderia indicar escolhas a serem tomadas, desistências e reviravoltas. Em Metrópole, dois artistas de teatro, irmãos, se visitam repetidas vezes. A peça se desenrola num jogo de duplos, contrastes e oposições, por meio dos quais Rafael se propõe a pensar, em caráter filosófico e metalinguístico, sobre o ofício da cena e sua relevância. Durante a pandemia de Covid-19, o texto sofreu algumas alterações para ser apresentado on-line pelo Instagram, de modo que as constantes visitas que os irmãos se faziam foram substituídas por ligações de videochamada.
O interesse de Rafael pela metalinguagem fica ainda mais evidente em A raposa das tetas inchadas (2016), que lhe rendeu o prêmio de Melhor Autor como Destaques do Ano e no Ceará em Cena. Na peça, dividida em cinco capítulos, o cenário de uma casa em ruínas, cujo teto está sempre caindo terra, abriga uma família que vive em situação de isolamento sob o comando de Matriarca, que já não consegue manter a família sob seu controle a não ser por uma narrativa repetida dia a dia, incansavelmente, sobre a morte do pai – como nos grandes sistemas de poder. A espera e a chegada de um novo professor de arte para a família movimentam a trama, na qual Rafael destila uma crítica ao ensino da arte e sua vinculação a um cânone intocável.
Carregado de simbologias e imagens delirantes, Rafael cria uma realidade em que dois irmãos disputam a atenção da mãe como crítica de arte e, logo, o posto de melhor artista da família. A associação entre o núcleo familiar e as camadas do mercado da arte – e do teatro – carregam o texto de ironia, colocando em evidência sentimentos como inveja, frustração e morte. As referências evidentes a propostas estéticas do cinema contemporâneo – as personagens principais chamam-se Tarkovski, Miyazaki e Rosemary –, se confundem com personagens confinados presentes no imaginário de autores teatrais, como Jean Genet, Nelson Rodrigues e Hilda Hilst, em que o erotismo e a submissão conduzem subliminarmente os afetos.
As rubricas também cumprem função importante, especialmente na compreensão do texto elaborado com frases dúbias e de duplo sentido. É pelas rubricas, inclusive, que nos é revelado certo caráter animalesco de Matriarca, permitindo-nos associá-la ao título da obra. Mais um recurso de ironia de Rafael Barbosa, em cujas obras o sarcasmo e o deboche são recursos de imaginação para suportar o real.
Glauber Coradesqui