A dramaturgia de Pedro Kosovski tem conexões profundas com a cidade do Rio de Janeiro. Além de ter nascido numa família de teatro que há gerações se dedica às artes da cena na capital fluminense, alguns de seus textos mais significativos se debruçam justamente sobre a história da cidade. Filho de Cacá Mourthé e Ricardo Kosovski, sobrinho-neto de Maria Clara Machado, o dramaturgo carioca teve a oportunidade de crescer com o teatro ao alcance das mãos. Quando criança, assistiu às peças da fundadora d’O Tablado na própria escola e lá deu início à sua formação artística. O teatro, entretanto, não é o foco da sua formação acadêmica. O autor fez graduação e mestrado em Psicologia. Em seu repertório é possível identificar o interesse por diferentes áreas de conhecimento, que alimentam e ampliam o debate crítico nas suas criações.
Sua carreira como dramaturgo está diretamente ligada à fundação da Aquela Cia. de Teatro, que tem seu parceiro criativo Marco André Nunes como diretor. Os primeiros trabalhos se dedicaram à criação a partir de cânones literários, como Hermann Hesse e Franz Kafka. Seu primeiro texto com uma carga autoral mais contundente é Outside – Um musical noir, de 2011. Inspirada no imaginário de David Bowie e em questões éticas da arte contemporânea, a peça inaugura uma etapa decisiva na poética do autor e do grupo: a relação entre teatro e música, e a parceria com o diretor musical Felipe Storino.
Cara de cavalo, de 2012, é a primeira peça do que mais tarde se constituiria como A Trilogia da cidade, seguida de Caranguejo overdrive (2015) e Guanabara canibal (2017). A proposta de abordar a cidade foi dentro da trajetória do grupo uma “chegada ao Brasil” que veio da dramaturgia. Assim como a estratégia da memória, de partir de alguma narrativa recalcada no imaginário carioca. Foi então que o diretor do grupo propôs o personagem “Cara de Cavalo”, que quando criança ouvia histórias do seu avô. As operações dramatúrgicas que misturam fatos históricos, personagens marcantes da cultura e procedimentos de criação ficcional – já presentes em Outside – ficam mais imbricadas e complexas neste espetáculo em que se pode visualizar os anos de chumbo, os ícones marginais das favelas cariocas, o teatro de Nelson Rodrigues e a arte de Hélio Oiticica.
A segunda peça da trilogia surge de uma aproximação entre o pensamento de Josué de Castro e o manguebeat de Chico Science, por sugestão do baterista do grupo, Mauricio Chiari. No texto introdutório que acompanha o livro da peça, Pedro Kosovski usa uma palavra que pode ser uma chave para a sua noção de dramaturgia: caldeirão. Seus textos são forjados em um espesso caldo em que os ingredientes estão em movimento contínuo, girando e se transmutando sob o efeito do calor. Caranguejo overdrive foi criado em quinze dias numa sala de ensaio, sem a pretensão de ser um espetáculo pronto, mas uma mostra de processo. O texto escrito e publicado é uma elaboração posterior, uma escrita que “vem depois”. Isso é algo que se pode dizer de muitas peças contemporâneas, mas nesse caso essa característica pode ser tomada como exemplar de uma dramaturgia em que não há nenhuma primazia do texto sobre a cena.
Nas suas peças, a música, por exemplo, é dramaturgia. Não é complemento, nem comentário, nem funciona como narrativa por conta das letras das canções, como em certa categoria de teatro musical. A sonoridade é texto. A presença sonora do manguebeat é tão significativa quanto a citação de Homens e caranguejos, o improviso da história do Brasil pela atriz Carolina Virguëz, os relatos da Guerra do Paraguai e das transformações do Rio de Janeiro com Pereira Passos, ou a partitura corporal dos atores em diálogo com os caranguejos que eventualmente estão em cena. A simultaneidade que o papel não capta também é constitutiva da noção de texto que a peça encena.
Em Guanabara canibal, que estreia entre as comemorações dos 450 anos do Rio, a dramaturgia investiga as origens da violência na cidade, recuando até as batalhas do século XVI, partindo de um documento histórico descaradamente tendencioso: a história ficcionalizada em um disco de vinil da época da ditadura, no qual “O repórter da história” relata, na narração sensacionalista do Repórter Esso, a fundação da cidade, com o massacre dos Tupinambás, como uma grande vitória. Mas a tessitura da dramaturgia se dá principalmente no embate entre os corpos de diferentes cores de pele e na estranha sobreposição de temporalidades fragmentadas, que constroem uma atmosfera vertiginosa, em que a inteligibilidade dos conteúdos não é uma prioridade.
Enquanto a trilogia se formava, o grupo criou um díptico: Edypop (2014), que retoma a sensorialidade exuberante de Outside, e Laio e Crísipo (2015), que é praticamente um epílogo, um anexo complementar da primeira. Em Edypop, a leitura operística de Tomorrow Never Knows, que abre a peça, dá a tônica da mistura entre a voltagem trágica da mitologia grega e os apelos ao presente da cultura pop. A peça faz uma revisão do mito de Édipo a partir de suas leituras contemporâneas e a música de John Lennon. Os protestos de junho de 2013, ainda muito recentes, também estão presentes na dramaturgia.
Foi só em 2016, depois do nascimento do seu primeiro filho, que o autor se arriscou pelo teatro infantil, com a criação de Tãotão, seu primeiro texto dirigido por sua mãe, Cacá Mourthé, que há anos tem estado à frente d’O Tablado e do legado de Maria Clara Machado. Na peça, o protagonista e sua amiga se veem presos dentro do espelho junto com os diversos “eus” com os quais Tãotão se acostumou a brincar.
Em 2017, Tripas vem aprofundar não apenas a parceria artística com o pai, o ator e professor Ricardo Kosovski, que esteve em cena em Cara de cavalo, mas também a relação entre pai e filho. A dramaturgia materializa a vivência dos dois artistas diante de uma grave doença do pai: o longo período de hospitalização e cirurgias, o processo de recuperação, e a viagem a Israel feita pela dupla, quase como uma promessa em um momento crítico de Ricardo numa UTI. No entanto, o espetáculo não se parece tanto com uma peça sobre memória. A autoficção, neste trabalho, celebra um encontro entre dois artistas. Tripas também é resultado da pesquisa de pós-doutoramento de Ricardo na Universidade Estadual de Campinas, com orientação de Renato Ferracini, do Lume Teatro. A interlocução entre Pedro e o pesquisador do grupo de Campinas se desdobra em uma outra peça, dois anos depois.
Em 2019, a convite do Lume Teatro, Pedro escreve a dramaturgia de Kintsugi, 100 memórias, com encenação do diretor argentino Emilio García Wehbi. O tratamento da memória aqui em nada se parece com o caldo borbulhante da história da Trilogia da cidade. Decupadas e expostas em linhas geométricas e frases cristalinas, são as memórias – e a linguagem – dos integrantes do grupo de Campinas que dão a tônica do texto, com suas diversas versões, reais e especulativas. Essa peça deixa evidente a capacidade do autor de usar suas ferramentas de acordo com os processos de cada parceria e com as poéticas específicas dos seus materiais.
A pandemia suspendeu, de certo modo, a criação mais recente do grupo, em que o autor mais uma vez se dedicava à revisão historiográfica da história da sua cidade, desta vez investigando a música popular brasileira, mais especificamente, a Bossa Nova. Mais uma vez, música e história se encontram como linguagem e tema – e agora como problema – em um projeto do dramaturgo e seus parceiros de criação.
O registro em vídeo de várias peças da Aquela Cia. está disponível no canal do grupo no YouTube e algumas dramaturgias de Pedro Kosovski foram publicadas pela editora Cobogó, acompanhadas de textos do autor, do diretor e de pesquisadores convidados. Desde 2011, o autor e seu grupo têm acumulado premiações e indicações, suas peças têm circulado pelo Brasil e, eventualmente, fora do país também.
Daniele Avila Small