Nieve Mattos, artista de Vitória, capital do Espírito Santo, é professora, atriz e produtora de teatro, além de Mestre em Artes Cênicas e Bacharel em Direção Teatral pela Universidade Federal de Ouro Preto, mas, sobretudo, é uma liderança das artes cênicas da sua cidade. Em sua escrita, aparece a consciência social e política que está presente na sua conduta artística como um todo. Desde 2008, Nieve Matos trabalha como dramaturga e diretora da Repertório Artes Cênicas e Cia., mas também escreve peças para outros grupos. A Repertório está à frente de um espaço cultural decisivo para a vida artística de Vitória, ao lado do Grupo Z de Teatro, que tem Fernando Marques como dramaturgo. A Má Companhia, como o lugar é chamado, tem um papel chave na cena cultural de Vitória, pois além de promover espaço de experimentação e continuidade para grupos de teatro, abraça também outras linguagens. É o único espaço da cidade com características para abrigar peças experimentais com baixo custo para as produções, além de receber peças de outras cidades e festivais organizados por instituições como o Sesc. A gestão do espaço é feita com recursos dos próprios grupos. Essa contextualização é importante para o entendimento da reduzida presença do teatro feito no Espírito Santo nos panoramas nacionais: a falta de políticas públicas é muito prejudicial para o estabelecimento e para a projeção dos artistas locais, apesar do estado estar localizado na região Sudeste, considerada privilegiada para a produção artística do país.
Como polo irradiador de iniciativas, seu grupo sempre buscou criar uma dramaturgia original para seus espetáculos, uma vez que, como fica evidente na sua trajetória, a relação com a cultura local é de grande interesse dos integrantes, que procuram abordar temas pertinentes à história e à vida do local. Os textos são criados de maneira colaborativa, em longos processos de pesquisa na sala de ensaio e em diálogo com profissionais da dança e da música. Muitos de seus espetáculos contam com trilha sonora composta especialmente para a dramaturgia em questão.
Diante da escassez de registros e documentação da escrita dramatúrgica de mulheres na história canônica do teatro brasileiro, a dramaturga começou a fomentar a escrita da cena entre mulheres. Foi assim que, em 2017, em parceria com Alessandra Pin Ferraz, deu início ao projeto Elas Tramam. Com o projeto aprovado em um edital público, lançaram uma convocatória com a seguinte frase: “Procura-se mulheres que queiram escrever drama”. Das quase 150 inscrições de todo o estado, foram selecionadas 5 mulheres, entre 18 e 60 anos, de 5 cidades diferentes, incluindo pessoas que ainda não estavam inseridas no meio artístico. Mais tarde, conseguiram realizar outro processo seletivo, para mais 15 mulheres. Hoje o projeto conta com 27 mulheres envolvidas na proposta de escrever dramaturgia.
Segundo a artista, seu papel neste coletivo é mais o de provocar a escrita do que de ensinar a escrever. É nesse sentido que ela se entende também como uma encenadora-provocadora, mais do que uma figura de autoridade, como muitas vezes se pensa (e se pratica) a função da encenação no teatro. Por isso é importante considerar a dimensão coletiva do trabalho de Nieve Matos na mesma medida em que não se pode deixar de reconhecer sua vocação para os lugares de autoria e liderança.
Como não poderia ser diferente, as injustiças sociais são tema importante em seus trabalhos, bem como a prática artística, na lida com as complicações da sua viabilidade econômica, como se pode reparar nos exemplos a seguir, observados em peças mais recentes.
Em uma das publicações do Elas Tramam, uma peça de Nieve Matos se detém sobre uma questão de imensa relevância no Brasil, país com assustadores estatísticas de feminicídio: o assassinato (literal ou simbólico) de mulheres por seus próprios maridos. Na peça Homem de barro, publicada em 2018 no segundo e-book do coletivo, a autora faz um paralelo entre a história de um casal que vive uma relação evidentemente abusiva e um perverso hábito do pássaro que no Brasil chamamos joão-de-barro. Esse pássaro é conhecido pela habilidade para construir o seu ninho. Mas, se percebe algum outro macho “cortejando” sua parceira, logo depois que esta tem a cria, o joão-de-barro fecha a saída do ninho, fazendo da casa um túmulo para a fêmea e seus passarinhos. A história é popularmente contada como se o animal cometesse o que antes se chamava, por lei, “crime passional”, como se o ato fosse a consequência inevitável de um amor em desmedida. Contra a romantização da violência, a autora apresenta uma narrativa que mostra como os sinais de uma relação abusiva podem ser identificados e como o amor, o casamento e a maternidade podem ser armadilhas para a mulher. Mas, sem a atitude niilista da fatalidade, a peça pode ser lida por um viés de conscientização, afinal, é bem possível ler os sinais: eles não são sutis.
O passado histórico da escravidão também é colocado em cena, como, por exemplo, na peça Caburé, de 2019, um drama que relembra a revolta do quilombo do Caburé. A perspectiva da revolta parece querer mostrar aos espectadores e leitores a história da resistência, da combatividade e da coragem dos escravizados, que apostavam tudo para reverter a situação a que foram submetidos.
O aquilombamento aparece em sua forma urbana, como diria a historiadora Beatriz Nascimento, na história de uma escola de samba. Cinzas de um Carnaval, do mesmo ano, escrita a quatro mãos com outro dramaturgo capixaba, Fernando Marques, é uma fábula sobre o desfile de uma escola de samba (uma forma de espetáculo cênico), na relação tensa com os patrocinadores. O dinheiro que viabiliza a realização é o mesmo que interfere na liberdade de expressão, uma forma cruel de censura. Os criadores do samba e do desfile de modo geral precisam criar a partir da imposição de um tema que só agrada aos patrocinadores e que descaracteriza a realização mesma do desfile. As personagens vão sendo forçadas a ceder e fazer concessões, até que se veem esvaziadas de suas coerências. À grandiosidade de uma escola de samba, à quantidade imensa de participantes que um desfile demanda, contrapõe-se os parcos recursos de uma peça de teatro independente. No final do texto, a dramaturgia chama atenção para essa disparidade e convoca o público a ligar os pontos, expondo como a prática do teatro tem estado cada vez mais ameaçada no país. O teor de denúncia não deixa de lado a capacidade das personagens de impor resistência, de fomentar seus espaços de insubordinação e sua capacidade de invenção.
No site do coletivo Elas Tramam, é possível baixar os três e-books organizados pelas idealizadoras do projeto, publicados em 2017, 2018 e 2019, com textos de diversas autoras que vivem e trabalham no Espírito Santo, como, além das editoras Nieve Mattos e Alessandra Pin Ferraz, Melina Galante, Priscilla Gomes, Rejane Arruda e Xis Makeda.
Daniele Avila Small