nieve matos

Vitória - ES

Fragmento Teatral

CENA VII – Camisa

Os integrantes trabalham na costura de uma peça única de tecido.

Compositor – Pois eu acho que a gente devia parar, sim.

Mestre – Você tá louco, rapaz? A gente tá às vésperas do desfile. Como é que para agora?

Dora – O desfile é mais importante? Mais importante que tudo?

Presidente – Pelo amor de Deus, gente! Não dá nem pra pensar numa coisa dessas.

Dora – É. Não dá pra pensar. Porque se pensar, o carnaval não sai.

Carnavalesco – Como assim, Dora?

Dora – Assim. O Beto sumiu, a gente não fez nada. Nada, gente! A gente simplesmente deixou pra lá, colocou alguém no lugar dele e continuou montando o desfile. Agora, isso. E a escola vai sair e fazer a alegria geral.

Beth – Mas é isso que a gente faz, né, não? É esse o papel da gente.

Mestre – Exatamente.

Compositor – A qualquer custo? Apesar de qualquer coisa?

Presidente – Mas vocês não acham que fazer o desfile é a melhor maneira da gente passar por cima disso tudo? Sabe, é mostrar que a gente não se abate, que a gente resiste, continua.

Compositor – Como o tigre dos patrocinadores?

Mestre – Lá vem você com isso...

Dora – Continua fazendo o que esperam que a gente faça.

Carnavalesco – Eu acho que vocês estão certos, tem uma certa razão aí... Mas vamos pensar numa coisa: nesses anos todos, desde a fundação, não teve nem um ano que a escola não tenha ido pra avenida. Nem que seja pra protestar, a gente tá lá!

Compositor – É isso aí, pra protestar. Senão, vira pão e circo. Todo mundo fodido, mas somos o povo mais alegre do mundo. A ditadura comendo solta, o AI-5 pegando todo mundo, e a escola na avenida. A censura continuando mesmo depois do regime militar, e a escola na avenida. A miséria crescendo mesmo com o fim da inflação, e a escola na avenida. Uma presidente eleita deposta, e a escola na avenida. Pão e circo.

Mestre – Deixa disso, tem um desfile pra acontecer.

Carnavalesco(ao Compositor) É o que eu tô falando desde o começo.

Dora – Mas e agora?

Beth – Agora?

Presidente – Agora é fazer o desfile!

Dora – Agora a gente tá aqui, costurando fantasia de tigre pra não falar do Beto, que não vai voltar nunca mais. Pra não falar do que acabou de acontecer. Uma criança! Uma criança que não é a única, todo mundo sabe.

Beth – Eu tô achando tudo tão pesado... Às vezes eu não sei o que fazer, o que pensar.

Compositor – Pesado vai ser carregar aquela bandeira da escola, passando pano pra tudo isso.

Presidente – Gente, por favor! O desfile precisa acontecer. Pensa na escola. Vamos fazer esse carnaval. Por favor!

Um a um, os integrantes vão se sentando e retomando a costura. Cantam Alvorada, mas num tom que ressalta a ironia da letra em relação à sua situação, é um canto que tem alguma indignação, alguma raiva contida. O Carnavalesco e a Presidente, supervisionando o trabalho de cada um, tentam animá-los. Seguem no trabalho até que, com a entrada de Rita, calam-se olhando para ela. Depois de certo tempo, Rita senta-se para o trabalho também. Retomam a música, Rita em silêncio. Tenta trabalhar, não consegue. Levanta-se, tira de dentro de sua roupa a camisa manchada de sangue do filho recém-assassinado, atira-a ao chão, no meio de todos. Silêncio.

Rita – Eu quero sair com essa camisa na avenida!

Presidente – Rita, eu não sei se eu posso fazer isso...

Rita – É o meu filho! É a camisa do meu filho assassinado quando ia pra escola e eu quero sair com ela na avenida!

Mestre – Rita, isso é complicado...

Rita – Eu nunca pedi nada...

Carnavalesco – Rita...

Rita – A gente tá aqui falando de tigre! De tigre! Mas ninguém fala da gente sendo caçada. De gente exterminando a gente! Meu filho tava voltando da escola, eu sempre soube que ele tinha um alvo pintado no peito por ser pobre, preto. Eu acreditava que sua camisa de uniforme escondia o alvo. Eu disse pra ele: se você for um menino bom, se estudar, trabalhar, você vai tá protegido do bandido, da polícia. Eu menti pro meu filho.

Dora – A gente tem que falar de todo mundo aqui que já passou pela mesma coisa. Tem que ter a camisa de todo mundo.

Rita – Eu busco! Eu passo de casa em casa, eu bato de porta em porta, eu falo com cada mãe. Eu trago todas as camisas.

Porta-bandeira – Eu te ajudo, Rita. Eu vou atrás das camisas dos bairros vizinhos. Os uniformes de escola, os uniformes das firmas, os uniformes que não esconderam os alvos do peito de ninguém. Até da própria PM.

Mestre – Eu não sei se isso vai dar certo... E se a escola não sobe? Tem um monte de gente que depende disso aqui.

Carnavalesco – Se vocês toparem, eu topo. Mas eu preciso de todo mundo comigo. Eu banco essa com vocês.

Presidente – Isso vai dar merda...

Rita – Já tá tudo uma merda. Já tá dando errado há muito tempo.

EPÍLOGO

Rubrica 1 – A escola se posiciona para entrar na avenida. A comissão de frente é composta pelos 219 mortos, assassinados durante a greve da PM em 2017, destaque para os 42 adolescentes saídos de instituições socioeducacionais, todos pretos, pobres, moradores da periferia e criados sem a presença do pai. O carro abre-alas traz nas alegorias mulheres vítimas de feminicídio, cujos números batem recordes no Espírito Santo. Nas alas, no chão, vêm as 300 pessoas em situação de rua que habitam nossa cidade. Entre as baianas e a velha-guarda, no coração da escola, estão os 180 moradores das comunidades do entorno do Centro de Vitória que foram obrigados a abandonar suas casas por conta da violência. 

Mas é mentira. Isso não é um desfile e essas pessoas nunca couberam numa sala de espetáculos. Seja nos palcos ou na plateia. Não há aqui uma escola de samba. Há um grupo de artistas que decidiu representar uma escola de samba e espera que vocês tenham acreditado nela. E que através dessa figura, pergunta-se sobre o que falar e como falar o que precisa em tempos como estes, sem ferir quem queremos conosco, sem ocupar um lugar que não é nosso. 

Sabemos da pequenez de nosso problema diante do mundo. Mas sabemos também que se os poderosos desejam o fim de nosso ofício, é que alguma importância, ainda que pequena, ele tem.

Entramos em sala para falar de nossa casa, nossa história. Mas percebemos que não há como falar de nós sem falar de quem nos rodeia; não há como falar de nossa casa sem falar da cidade que a abriga. Não há como falar da cidade sem olhar para aqueles que fingimos não ver. Que se não for assim, nosso samba não serve pra nada.

Estamos aqui por rebeldia, por teimosia, por persistência. Ou porque não sabemos fazer outra coisa.

Nós não sabemos até quando estaremos aqui.

E nem vocês.

(Fragmento de Cinzas de um Carnaval,
escrita em parceria com Fernando Marques)

Nieve Matos é dramaturga, encenadora e idealizadora do coletivo Elas Tramam.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Nieve Mattos, artista de Vitória, capital do Espírito Santo, é professora, atriz e produtora de teatro, além de Mestre em Artes Cênicas e Bacharel em Direção Teatral pela Universidade Federal de Ouro Preto, mas, sobretudo, é uma liderança das artes cênicas da sua cidade. Em sua escrita, aparece a consciência social e política que está presente na sua conduta artística como um todo. Desde 2008, Nieve Matos trabalha como dramaturga e diretora da Repertório Artes Cênicas e Cia., mas também escreve peças para outros grupos. A Repertório está à frente de um espaço cultural decisivo para a vida artística de Vitória, ao lado do Grupo Z de Teatro, que tem Fernando Marques como dramaturgo. A Má Companhia, como o lugar é chamado, tem um papel chave na cena cultural de Vitória, pois além de promover espaço de experimentação e continuidade para grupos de teatro, abraça também outras linguagens. É o único espaço da cidade com características para abrigar peças experimentais com baixo custo para as produções, além de receber peças de outras cidades e festivais organizados por instituições como o Sesc. A gestão do espaço é feita com recursos dos próprios grupos. Essa contextualização é importante para o entendimento da reduzida presença do teatro feito no Espírito Santo nos panoramas nacionais: a falta de políticas públicas é muito prejudicial para o estabelecimento e para a projeção dos artistas locais, apesar do estado estar localizado na região Sudeste, considerada privilegiada para a produção artística do país.

Como polo irradiador de iniciativas, seu grupo sempre buscou criar uma dramaturgia original para seus espetáculos, uma vez que, como fica evidente na sua trajetória, a relação com a cultura local é de grande interesse dos integrantes, que procuram abordar temas pertinentes à história e à vida do local. Os textos são criados de maneira colaborativa, em longos processos de pesquisa na sala de ensaio e em diálogo com profissionais da dança e da música. Muitos de seus espetáculos contam com trilha sonora composta especialmente para a dramaturgia em questão.

Diante da escassez de registros e documentação da escrita dramatúrgica de mulheres na história canônica do teatro brasileiro, a dramaturga começou a fomentar a escrita da cena entre mulheres. Foi assim que, em 2017, em parceria com Alessandra Pin Ferraz, deu início ao projeto Elas Tramam. Com o projeto aprovado em um edital público, lançaram uma convocatória com a seguinte frase: “Procura-se mulheres que queiram escrever drama”. Das quase 150 inscrições de todo o estado, foram selecionadas 5 mulheres, entre 18 e 60 anos, de 5 cidades diferentes, incluindo pessoas que ainda não estavam inseridas no meio artístico. Mais tarde, conseguiram realizar outro processo seletivo, para mais 15 mulheres. Hoje o projeto conta com 27 mulheres envolvidas na proposta de escrever dramaturgia.

Segundo a artista, seu papel neste coletivo é mais o de provocar a escrita do que de ensinar a escrever. É nesse sentido que ela se entende também como uma encenadora-provocadora, mais do que uma figura de autoridade, como muitas vezes se pensa (e se pratica) a função da encenação no teatro. Por isso é importante considerar a dimensão coletiva do trabalho de Nieve Matos na mesma medida em que não se pode deixar de reconhecer sua vocação para os lugares de autoria e liderança.

Como não poderia ser diferente, as injustiças sociais são tema importante em seus trabalhos, bem como a prática artística, na lida com as complicações da sua viabilidade econômica, como se pode reparar nos exemplos a seguir, observados em peças mais recentes.

Em uma das publicações do Elas Tramam, uma peça de Nieve Matos se detém sobre uma questão de imensa relevância no Brasil, país com assustadores estatísticas de feminicídio: o assassinato (literal ou simbólico) de mulheres por seus próprios maridos. Na peça Homem de barro, publicada em 2018 no segundo e-book do coletivo, a autora faz um paralelo entre a história de um casal que vive uma relação evidentemente abusiva e um perverso hábito do pássaro que no Brasil chamamos joão-de-barro. Esse pássaro é conhecido pela habilidade para construir o seu ninho. Mas, se percebe algum outro macho “cortejando” sua parceira, logo depois que esta tem a cria, o joão-de-barro fecha a saída do ninho, fazendo da casa um túmulo para a fêmea e seus passarinhos. A história é popularmente contada como se o animal cometesse o que antes se chamava, por lei, “crime passional”, como se o ato fosse a consequência inevitável de um amor em desmedida. Contra a romantização da violência, a autora apresenta uma narrativa que mostra como os sinais de uma relação abusiva podem ser identificados e como o amor, o casamento e a maternidade podem ser armadilhas para a mulher. Mas, sem a atitude niilista da fatalidade, a peça pode ser lida por um viés de conscientização, afinal, é bem possível ler os sinais: eles não são sutis.

O passado histórico da escravidão também é colocado em cena, como, por exemplo, na peça Caburé, de 2019, um drama que relembra a revolta do quilombo do Caburé. A perspectiva da revolta parece querer mostrar aos espectadores e leitores a história da resistência, da combatividade e da coragem dos escravizados, que apostavam tudo para reverter a situação a que foram submetidos.

O aquilombamento aparece em sua forma urbana, como diria a historiadora Beatriz Nascimento, na história de uma escola de samba. Cinzas de um Carnaval, do mesmo ano, escrita a quatro mãos com outro dramaturgo capixaba, Fernando Marques, é uma fábula sobre o desfile de uma escola de samba (uma forma de espetáculo cênico), na relação tensa com os patrocinadores. O dinheiro que viabiliza a realização é o mesmo que interfere na liberdade de expressão, uma forma cruel de censura. Os criadores do samba e do desfile de modo geral precisam criar a partir da imposição de um tema que só agrada aos patrocinadores e que descaracteriza a realização mesma do desfile. As personagens vão sendo forçadas a ceder e fazer concessões, até que se veem esvaziadas de suas coerências. À grandiosidade de uma escola de samba, à quantidade imensa de participantes que um desfile demanda, contrapõe-se os parcos recursos de uma peça de teatro independente. No final do texto, a dramaturgia chama atenção para essa disparidade e convoca o público a ligar os pontos, expondo como a prática do teatro tem estado cada vez mais ameaçada no país. O teor de denúncia não deixa de lado a capacidade das personagens de impor resistência, de fomentar seus espaços de insubordinação e sua capacidade de invenção.
  
No site do coletivo Elas Tramam, é possível baixar os três e-books organizados pelas idealizadoras do projeto, publicados em 2017, 2018 e 2019, com textos de diversas autoras que vivem e trabalham no Espírito Santo, como, além das editoras Nieve Mattos e Alessandra Pin Ferraz, Melina Galante, Priscilla Gomes, Rejane Arruda e Xis Makeda.

Daniele Avila Small

Nieve Matos é dramaturga, encenadora e idealizadora do coletivo Elas Tramam.

Nieve Mattos, artista de Vitória, capital do Espírito Santo, é professora, atriz e produtora de teatro, além de Mestre em Artes Cênicas e Bacharel em Direção Teatral pela Universidade Federal de Ouro Preto, mas, sobretudo, é uma liderança das artes cênicas da sua cidade. Em sua escrita, aparece a consciência social e política que está presente na sua conduta artística como um todo. Desde 2008, Nieve Matos trabalha como dramaturga e diretora da Repertório Artes Cênicas e Cia., mas também escreve peças para outros grupos. A Repertório está à frente de um espaço cultural decisivo para a vida artística de Vitória, ao lado do Grupo Z de Teatro, que tem Fernando Marques como dramaturgo. A Má Companhia, como o lugar é chamado, tem um papel chave na cena cultural de Vitória, pois além de promover espaço de experimentação e continuidade para grupos de teatro, abraça também outras linguagens. É o único espaço da cidade com características para abrigar peças experimentais com baixo custo para as produções, além de receber peças de outras cidades e festivais organizados por instituições como o Sesc. A gestão do espaço é feita com recursos dos próprios grupos. Essa contextualização é importante para o entendimento da reduzida presença do teatro feito no Espírito Santo nos panoramas nacionais: a falta de políticas públicas é muito prejudicial para o estabelecimento e para a projeção dos artistas locais, apesar do estado estar localizado na região Sudeste, considerada privilegiada para a produção artística do país.

Como polo irradiador de iniciativas, seu grupo sempre buscou criar uma dramaturgia original para seus espetáculos, uma vez que, como fica evidente na sua trajetória, a relação com a cultura local é de grande interesse dos integrantes, que procuram abordar temas pertinentes à história e à vida do local. Os textos são criados de maneira colaborativa, em longos processos de pesquisa na sala de ensaio e em diálogo com profissionais da dança e da música. Muitos de seus espetáculos contam com trilha sonora composta especialmente para a dramaturgia em questão.

Diante da escassez de registros e documentação da escrita dramatúrgica de mulheres na história canônica do teatro brasileiro, a dramaturga começou a fomentar a escrita da cena entre mulheres. Foi assim que, em 2017, em parceria com Alessandra Pin Ferraz, deu início ao projeto Elas Tramam. Com o projeto aprovado em um edital público, lançaram uma convocatória com a seguinte frase: “Procura-se mulheres que queiram escrever drama”. Das quase 150 inscrições de todo o estado, foram selecionadas 5 mulheres, entre 18 e 60 anos, de 5 cidades diferentes, incluindo pessoas que ainda não estavam inseridas no meio artístico. Mais tarde, conseguiram realizar outro processo seletivo, para mais 15 mulheres. Hoje o projeto conta com 27 mulheres envolvidas na proposta de escrever dramaturgia.

Segundo a artista, seu papel neste coletivo é mais o de provocar a escrita do que de ensinar a escrever. É nesse sentido que ela se entende também como uma encenadora-provocadora, mais do que uma figura de autoridade, como muitas vezes se pensa (e se pratica) a função da encenação no teatro. Por isso é importante considerar a dimensão coletiva do trabalho de Nieve Matos na mesma medida em que não se pode deixar de reconhecer sua vocação para os lugares de autoria e liderança.

Como não poderia ser diferente, as injustiças sociais são tema importante em seus trabalhos, bem como a prática artística, na lida com as complicações da sua viabilidade econômica, como se pode reparar nos exemplos a seguir, observados em peças mais recentes.

Em uma das publicações do Elas Tramam, uma peça de Nieve Matos se detém sobre uma questão de imensa relevância no Brasil, país com assustadores estatísticas de feminicídio: o assassinato (literal ou simbólico) de mulheres por seus próprios maridos. Na peça Homem de barro, publicada em 2018 no segundo e-book do coletivo, a autora faz um paralelo entre a história de um casal que vive uma relação evidentemente abusiva e um perverso hábito do pássaro que no Brasil chamamos joão-de-barro. Esse pássaro é conhecido pela habilidade para construir o seu ninho. Mas, se percebe algum outro macho “cortejando” sua parceira, logo depois que esta tem a cria, o joão-de-barro fecha a saída do ninho, fazendo da casa um túmulo para a fêmea e seus passarinhos. A história é popularmente contada como se o animal cometesse o que antes se chamava, por lei, “crime passional”, como se o ato fosse a consequência inevitável de um amor em desmedida. Contra a romantização da violência, a autora apresenta uma narrativa que mostra como os sinais de uma relação abusiva podem ser identificados e como o amor, o casamento e a maternidade podem ser armadilhas para a mulher. Mas, sem a atitude niilista da fatalidade, a peça pode ser lida por um viés de conscientização, afinal, é bem possível ler os sinais: eles não são sutis.

O passado histórico da escravidão também é colocado em cena, como, por exemplo, na peça Caburé, de 2019, um drama que relembra a revolta do quilombo do Caburé. A perspectiva da revolta parece querer mostrar aos espectadores e leitores a história da resistência, da combatividade e da coragem dos escravizados, que apostavam tudo para reverter a situação a que foram submetidos.

O aquilombamento aparece em sua forma urbana, como diria a historiadora Beatriz Nascimento, na história de uma escola de samba. Cinzas de um Carnaval, do mesmo ano, escrita a quatro mãos com outro dramaturgo capixaba, Fernando Marques, é uma fábula sobre o desfile de uma escola de samba (uma forma de espetáculo cênico), na relação tensa com os patrocinadores. O dinheiro que viabiliza a realização é o mesmo que interfere na liberdade de expressão, uma forma cruel de censura. Os criadores do samba e do desfile de modo geral precisam criar a partir da imposição de um tema que só agrada aos patrocinadores e que descaracteriza a realização mesma do desfile. As personagens vão sendo forçadas a ceder e fazer concessões, até que se veem esvaziadas de suas coerências. À grandiosidade de uma escola de samba, à quantidade imensa de participantes que um desfile demanda, contrapõe-se os parcos recursos de uma peça de teatro independente. No final do texto, a dramaturgia chama atenção para essa disparidade e convoca o público a ligar os pontos, expondo como a prática do teatro tem estado cada vez mais ameaçada no país. O teor de denúncia não deixa de lado a capacidade das personagens de impor resistência, de fomentar seus espaços de insubordinação e sua capacidade de invenção.
  
No site do coletivo Elas Tramam, é possível baixar os três e-books organizados pelas idealizadoras do projeto, publicados em 2017, 2018 e 2019, com textos de diversas autoras que vivem e trabalham no Espírito Santo, como, além das editoras Nieve Mattos e Alessandra Pin Ferraz, Melina Galante, Priscilla Gomes, Rejane Arruda e Xis Makeda.

Daniele Avila Small

CENA VII – Camisa

Os integrantes trabalham na costura de uma peça única de tecido.

Compositor – Pois eu acho que a gente devia parar, sim.

Mestre – Você tá louco, rapaz? A gente tá às vésperas do desfile. Como é que para agora?

Dora – O desfile é mais importante? Mais importante que tudo?

Presidente – Pelo amor de Deus, gente! Não dá nem pra pensar numa coisa dessas.

Dora – É. Não dá pra pensar. Porque se pensar, o carnaval não sai.

Carnavalesco – Como assim, Dora?

Dora – Assim. O Beto sumiu, a gente não fez nada. Nada, gente! A gente simplesmente deixou pra lá, colocou alguém no lugar dele e continuou montando o desfile. Agora, isso. E a escola vai sair e fazer a alegria geral.

Beth – Mas é isso que a gente faz, né, não? É esse o papel da gente.

Mestre – Exatamente.

Compositor – A qualquer custo? Apesar de qualquer coisa?

Presidente – Mas vocês não acham que fazer o desfile é a melhor maneira da gente passar por cima disso tudo? Sabe, é mostrar que a gente não se abate, que a gente resiste, continua.

Compositor – Como o tigre dos patrocinadores?

Mestre – Lá vem você com isso...

Dora – Continua fazendo o que esperam que a gente faça.

Carnavalesco – Eu acho que vocês estão certos, tem uma certa razão aí... Mas vamos pensar numa coisa: nesses anos todos, desde a fundação, não teve nem um ano que a escola não tenha ido pra avenida. Nem que seja pra protestar, a gente tá lá!

Compositor – É isso aí, pra protestar. Senão, vira pão e circo. Todo mundo fodido, mas somos o povo mais alegre do mundo. A ditadura comendo solta, o AI-5 pegando todo mundo, e a escola na avenida. A censura continuando mesmo depois do regime militar, e a escola na avenida. A miséria crescendo mesmo com o fim da inflação, e a escola na avenida. Uma presidente eleita deposta, e a escola na avenida. Pão e circo.

Mestre – Deixa disso, tem um desfile pra acontecer.

Carnavalesco(ao Compositor) É o que eu tô falando desde o começo.

Dora – Mas e agora?

Beth – Agora?

Presidente – Agora é fazer o desfile!

Dora – Agora a gente tá aqui, costurando fantasia de tigre pra não falar do Beto, que não vai voltar nunca mais. Pra não falar do que acabou de acontecer. Uma criança! Uma criança que não é a única, todo mundo sabe.

Beth – Eu tô achando tudo tão pesado... Às vezes eu não sei o que fazer, o que pensar.

Compositor – Pesado vai ser carregar aquela bandeira da escola, passando pano pra tudo isso.

Presidente – Gente, por favor! O desfile precisa acontecer. Pensa na escola. Vamos fazer esse carnaval. Por favor!

Um a um, os integrantes vão se sentando e retomando a costura. Cantam Alvorada, mas num tom que ressalta a ironia da letra em relação à sua situação, é um canto que tem alguma indignação, alguma raiva contida. O Carnavalesco e a Presidente, supervisionando o trabalho de cada um, tentam animá-los. Seguem no trabalho até que, com a entrada de Rita, calam-se olhando para ela. Depois de certo tempo, Rita senta-se para o trabalho também. Retomam a música, Rita em silêncio. Tenta trabalhar, não consegue. Levanta-se, tira de dentro de sua roupa a camisa manchada de sangue do filho recém-assassinado, atira-a ao chão, no meio de todos. Silêncio.

Rita – Eu quero sair com essa camisa na avenida!

Presidente – Rita, eu não sei se eu posso fazer isso...

Rita – É o meu filho! É a camisa do meu filho assassinado quando ia pra escola e eu quero sair com ela na avenida!

Mestre – Rita, isso é complicado...

Rita – Eu nunca pedi nada...

Carnavalesco – Rita...

Rita – A gente tá aqui falando de tigre! De tigre! Mas ninguém fala da gente sendo caçada. De gente exterminando a gente! Meu filho tava voltando da escola, eu sempre soube que ele tinha um alvo pintado no peito por ser pobre, preto. Eu acreditava que sua camisa de uniforme escondia o alvo. Eu disse pra ele: se você for um menino bom, se estudar, trabalhar, você vai tá protegido do bandido, da polícia. Eu menti pro meu filho.

Dora – A gente tem que falar de todo mundo aqui que já passou pela mesma coisa. Tem que ter a camisa de todo mundo.

Rita – Eu busco! Eu passo de casa em casa, eu bato de porta em porta, eu falo com cada mãe. Eu trago todas as camisas.

Porta-bandeira – Eu te ajudo, Rita. Eu vou atrás das camisas dos bairros vizinhos. Os uniformes de escola, os uniformes das firmas, os uniformes que não esconderam os alvos do peito de ninguém. Até da própria PM.

Mestre – Eu não sei se isso vai dar certo... E se a escola não sobe? Tem um monte de gente que depende disso aqui.

Carnavalesco – Se vocês toparem, eu topo. Mas eu preciso de todo mundo comigo. Eu banco essa com vocês.

Presidente – Isso vai dar merda...

Rita – Já tá tudo uma merda. Já tá dando errado há muito tempo.

EPÍLOGO

Rubrica 1 – A escola se posiciona para entrar na avenida. A comissão de frente é composta pelos 219 mortos, assassinados durante a greve da PM em 2017, destaque para os 42 adolescentes saídos de instituições socioeducacionais, todos pretos, pobres, moradores da periferia e criados sem a presença do pai. O carro abre-alas traz nas alegorias mulheres vítimas de feminicídio, cujos números batem recordes no Espírito Santo. Nas alas, no chão, vêm as 300 pessoas em situação de rua que habitam nossa cidade. Entre as baianas e a velha-guarda, no coração da escola, estão os 180 moradores das comunidades do entorno do Centro de Vitória que foram obrigados a abandonar suas casas por conta da violência. 

Mas é mentira. Isso não é um desfile e essas pessoas nunca couberam numa sala de espetáculos. Seja nos palcos ou na plateia. Não há aqui uma escola de samba. Há um grupo de artistas que decidiu representar uma escola de samba e espera que vocês tenham acreditado nela. E que através dessa figura, pergunta-se sobre o que falar e como falar o que precisa em tempos como estes, sem ferir quem queremos conosco, sem ocupar um lugar que não é nosso. 

Sabemos da pequenez de nosso problema diante do mundo. Mas sabemos também que se os poderosos desejam o fim de nosso ofício, é que alguma importância, ainda que pequena, ele tem.

Entramos em sala para falar de nossa casa, nossa história. Mas percebemos que não há como falar de nós sem falar de quem nos rodeia; não há como falar de nossa casa sem falar da cidade que a abriga. Não há como falar da cidade sem olhar para aqueles que fingimos não ver. Que se não for assim, nosso samba não serve pra nada.

Estamos aqui por rebeldia, por teimosia, por persistência. Ou porque não sabemos fazer outra coisa.

Nós não sabemos até quando estaremos aqui.

E nem vocês.

(Fragmento de Cinzas de um Carnaval,
escrita em parceria com Fernando Marques)