maria shu

São Paulo - SP

Fragmento Teatral

ABOU: A flor do baobá tem um cheiro bom de almíscar, mas carnes da Ilê fedem como uma zebra morta. Você não tem culpa do futum, a longa viagem deixou as roupas fedidas. Eu também preciso de um banho quente. Mas eu sou bom em imaginar a espuma do sabonete abraçando a minha pele de ébano. Quando você domina o imaginar, você pode ser livre, você acalma o seu coração. O tempo passa tranquilo e você respira sem se apavorar. (Pausa. Música.) Minha casa Ilê. Me escondi num buraco vago no tronco da cachorra. Há muitas mensagens esculpidas nas suas cascas rugosas: dedicatórias amorosas, nomes e datas de quem foi seu dono antes de mim. Rabisco ABOU à unha. Está escuro. Só a imaginação tem o poder de me proteger da escuridão de céu azul marinho, ponteado de miçangas. Uma nuvem fininha, que nem um algodão esgarçado, vagueia. A lua é um cachorro branco iluminado pelo sol. Mamo nas tetas da Via láctea, antes de começar a contar os carneirinhos de poeira que saltam diante dos meus olhos. (Espirra) Não tenha medo deles, Ilê. Carneiros são como cães bem peludos. Un, deux, trios, six, neuf, dix, cinquante-sept, un million, quatrocentos bilhões de estrelas piscam na sua pele empoeirada de sono profundo e todas riem docemente para mim. Girando no espaço, a cadela Laika, cheia de fios, late para nós.

***

A mulher para na entrada do controle da fronteira. Os urubus sumiram do céu. Ela olha à direita, depois à esquerda, indecisa na terra de ninguém. Respiro fundo. O cheiro ruim sobe. A gente não vê quando o fedor acaba. A mulher volta a puxar a mala; as patas da Ilê deixam um rastro de barro seco no asfalto. Estamos indo para a passagem da fronteira. É um momento mais tenso da minha vida. Acho que nunca tive um momento tão tenso como esse. Encosto meu ouvido nas paredes da cachorra e escuto o medonho barulho dos carros, as armas engatilhando. O guarda civil se aproxima. A mulher parece uma girafa com torcicolo. “Documentos! O que carrega nesta mala? Para onde está indo?”. “Para casa da minha patroa”. O guarda mau se acha o bambambã. Ele está envolvido de poder. Manda a mulher por a mala numa máquina de ver por dentro, que ele chama de scanner. Mas ela não quer. Ilê treme. Coragem nunca foi o forte dela. Sussurro baixinho: respira, garota! Somos um só pulmão. O scanner é uma máquina que tira foto, mas ninguém quer foto nenhuma, gambé! A gente só quer passar, ter uma vida nova, comer pudim malva até doer o dente. Nos deixe em paz! Sem foto, não passa a fronteira, ele ameaça. O guarda pega a Ilê no colo, ela se finge de morta, dura, dura, e num instante, estamos na esteira para ele fazer o retrato de dentro. A geringonça solta uns ruídos e o meu coração salta como o de uma caça acuada. Daí o guarda chama outro guarda, que chama outro guarda, e vem outro guarda e os quatro guardas ficam parados diante da minha fotografia com cara de bobos. Será que a foto não ficou boa? Precisam de outra imagem minha? Não sou fotogênico? Para os policiais, há um menino de seis anos dentro da mala. Mas eles estão errados. O que existe dentro da mala não é uma criança. Quem habita a cachorra é o medo. E uma mala só carrega o que ela precisa. Um deles abre a barriga do Ilê. Não sei se sou um baobá ou não, mas bàbá não está aqui para me avisar sobre o caule grosso. Tateio as paredes das pirâmides de Quéops, mil corredores. Não quero morrer perdido neste labirinto. Ponho a cabeça para fora da manta. Toda saída é uma cilada. Me apresento aos gambés, na minha língua: “je m’appelle Abou”.

***

Vozes, flashes e clarões vêm de toda a parte. Tocam em mim, como se afagassem o lombo de um cachorro manso. Fotos com câmeras e celulares. Quatro homens ao meu redor como urubus no firmamento. Espero que eles fiquem satisfeitos com todos esses retratos; estou exausto. Mas logo a Cruz Vermelha chega e me afoga numa chuva de perguntas: “Você está bem? Você conhece a mulher? De onde você vem, garoto? Onde estão seus pais?” Enfiam palitos de picolé – sem picolé – na minha garganta, olham meus dentes, arregalam meus olhos, apalpam minha barriga, vasculham meu cabelo. Meu coração sacode dentro do ouvido do enfermeiro que me vira em todas as posições e, por fim, ganho um caldo quente, como os adestradores de animais que dão comida quando o bicho acerta um movimento. Fizeram muitas perguntas, mas sequer ouviram a minha: quedê meu pudim malva?

***

RÁDIO: Um menino de seis anos de idade foi encontrado escondido dentro de uma mala de viagem por funcionários da fronteira. Os oficiais encontraram o menino depois que passaram a mala pelo equipamento de raio-x e viram a criança enrolada entre as roupas. Agora, ele está sob custódia da Promotoria de Menores e seu destino ainda é incerto. Um Guarda Civil fotografou Abou e as imagens ganharam o mundo, causando surpresa e indignação.

ABOU: Como é grande, infinitamente, o mundo! Mas me trancaram num pedaço dele, pintado de branco e azul, chamado “abrigo”. Há uma árvore no pátio: galhos finos, folhas secas, raízes sufocadas no chão de cimento. A diretora diz “Bem-vindo, menino Abou, bem-vindo. Você passou por tanta coisa que... Mas vai ficar tudo bem. Aqui tem criança, cama, comida...”. Uma porção de meninos brancos me olha, eu colo o queixo no peito, a Ilê de rabinho baixo, o rádio fora de sintonia. Naquela noite, eu fico choroso, mas a imaginação é muito útil quando se está perdido. Penso no pudim malva molhadinho na minha boca: é uma coisa que vale a pena pensar. Quem sabe, ele venha com uma porção de geleia de damasco ou uma bola generosa de sorvete de creme. Momentos felizes ao lado de bàbá, iyá e Ilê estão por vir. Um quintal cheio de passarinhos coloridos voando, nuvens douradas dançando no horizonte, o rádio tocando canção de festa, mas isso tudo desaparece, assim que um menino grandão me empurra da cama pela manhã e grita bem alto: MACACO! Caio de joelhos e todos gargalham. Gritaram-me MACACO. Falo para a diretora que os garotos não gostam de mim, que eu não compreendo muita coisa das esquisitices que eles gritam, daí ela fala: “Não cace confusão e aprenda a... ligue para a fornecedor agora mesmo”. Ela sai andando com seu sapato tec tec tec tec, falando ao celular e me deixando sozinho no pátio, na terra tão sem céu que até para olhar as nuvens é preciso fechar os olhos: “De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?” Mais tarde, o mesmo grandão para na porta do quarto e não me deixa entrar. Homens maus não deixam as pessoas passarem. Empurrão, café da manhã. Pontapés, aula de artesanato. Rasteira, almoço. Xingamento, jantar, chamboco, chamboco... O corpo em fogo das pancadas recebidas. Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus. 

RÁDIO: A UNICEF cria centros de abrigo para crianças refugiadas. O objetivo é apoiar famílias em condições vulneráveis que estão em movimento tentando chegar à Europa. Darão atenção particular às crianças que estão desacompanhadas ou que foram separadas de suas famílias durante a viagem.

ABOU: Será que você não sabe falar de outra coisa? Droga de rádio velho, toque uma canção alegre! 

(Fragmento de Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus)

Maria Shu é dramaturga e roteirista.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Maria Shu é dramaturga, roteirista e professora, com uma importante produção reconhecida no Brasil e no exterior, tendo seus textos lidos e montados em países como Portugal, Cabo Verde, Suécia e França. Estudou dramaturgia na SP Escola de Teatro e roteiro na Academia Internacional de Cinema, além de ser formada em Letras, com pós-graduação em Língua Portuguesa. 

É autora de peças como Ar rarefeito, vencedora do concurso Feminino Dramaturgia – Prêmio Heleny Guariba (2014) da Cooperativa Paulista de Teatro; Cabaret Stravaganza (2011-2013); Relógios de Areia; Epifania (2017); Giz (2013-2016) e Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus (2019), esta última voltada ao público de crianças. 

Um de seus primeiros trabalhos, Cabaret Stravaganza (2011-2013), explora o conceito de humanidade expandida, colocando em questão a relação do ser humano com a tecnologia. Em Gis (2013-2016), a autora trata da relação entre uma professora (Gis/Gislaine) de um curso supletivo noturno e seu aluno Adão, pedreiro, revelando como a relação entre eles culminou em um ato de violência. Para Gis, o magistério foi pintado por sua mãe como algo branco, marcado pelo pó do giz, mas que, na prática, revela-se gris, enquanto que, para Adão, a vida já era cinza, marcada pelo pó das obras. Maria Shu aborda questões sobre o desejo e a fome, em um paradoxo entre sobrevivência e desejo de viver.

Em Epifania (2017), a autora brinca com um diálogo entre Macabéa (personagem de A hora da estrela) e sua autora, Clarice Lispector, revelando diversas questões do universo feminino. Já Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus (2018) é uma obra voltada para crianças e baseada em fatos reais. A peça narra a história de Abou, um menino africano que imigrou para a Europa dentro de uma mala, sendo achado pela polícia no raio-x da imigração. A mala, Ilê, é a companheira de Abou, sua amiga, seu animal de estimação que ele nunca teve. É com Ilê que inventa histórias e encontra maneiras de vencer o medo e enfrentar as duras realidades que se apresentam. Com uma narrativa envolvente, Maria Shu conta esta história sobre imigração, injustiça social e esperança, trazendo questões que rondam a vida de milhares de crianças imigrantes espalhadas pelo mundo. A peça teve sua estreia em 2019, pelo coletivo O Bonde, formado por artistas oriundos da Escola Livre de Teatro de Santo André. 

"Era uma vez um garoto de pernas e braços feitos de galhos finos, que alguém entalhou, mas não imaginou que ele ficaria com fome. Era uma vez um garoto chamado Tumbu, que ficou dias dentro de um navio fedorento para ser escravizado em outro país. Era uma vez eu, Abou, um garoto refugiado a um passo de uma nova vida. Histórias são sempre sagradas e a parte mais emocionante da minha história está para acontecer a qualquer momento. A mala é fechada. Escuridão.” (Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus)

Em Relógios de areia (2019), a autora retoma a fábula bíblica de Jonas e a Baleia para falar de uma guerra urbana: a guerra do tráfico, da insegurança e da injustiça social. Ela aborda a força e a ameaça policial, trazendo em Jonas a figura da “mula” do narcotráfico. Escreve inspirada por uma reportagem que assistiu na televisão: “A matéria mostrava-os engolindo cápsulas, às vezes em quantidades absurdas. Assistir àquilo me dava muita ânsia e me deixava realmente muito incomodada, então, senti que precisava escrever sobre o tema. Minha primeira ideia era a de criar uma peça aos moldes tradicionais, mas percebi que essa linguagem não daria conta dos meus anseios”, afirma Maria Shu. A dramaturga utiliza-se de poesia, citações, metáforas bíblicas, denúncia social e estruturas concretistas, tendo um caráter quase que de crônica documental, misturada a diálogos e elementos rapsódicos. Mistura épico, lírico e dramático, caracterizando-se pela forma aberta que se aproxima da ótica de um texto pictórico, uma vez que se vale da arquitetura linguística e da diagramação como elementos de composição. 

Nesta peça, há uma voz que se desdobra em várias: a voz da autora, que se desenha, portanto, como princípio de centramento, reunindo negrito, itálico, maiúsculas, confissões, exposições, personagens, figurações e transfigurações. Destaca-se também os elementos antropofágicos presentes no texto, no ato de engolir: “Só tenho medo de morrer na praia depois de ter engolido o mar”, afirma Jonas, o profeta, que na obra de Shu brincou com o destino ao engolir sal e não cocaína, trazendo imagens de navegação, de imigração, de chacina, de conservação, transfigurando a ideia de mula do narcotráfico, presa pela polícia. Trata também de questões sociais, como a barriga de aluguel, os acidentes de trabalho e a necessidade de sobrevivência.

“O que é que se faz com um braço esquerdo que se desprende no meio de um turno? Ora! Substitui-se por um direito porque a fome do navio prossegue. Aliás, para que serve um braço esquerdo mesmo?” (Jonas, em Relógios de areia)

Seguindo na linha de um teatro engajado em questões sociais, Shu constrói em seu monólogo Leoa na Baia (2019-2020) uma situação na qual uma mulher negra sofre violências em seu ambiente de trabalho que tenta embranquece-la. São abusos que incluem tratamento para clarear a pele, maquiagem para afinar nariz e boca, alisamento do cabelo e conversão religiosa. Ao final, um grito de liberdade dessa mulher, que clama por sua autonomia e libertação do ambiente racista em que se insere. Enquanto mulher negra, a dramaturga reflete sobre situações de racismo e machismo que as mulheres negras sofrem, buscando um empoderamento coletivo que surge a partir de transformações individuais. 

Como roteirista, assina dois episódios da série Onisciente, disponível pela plataforma Netflix, além de fazer parte da sala de roteiro da série Irmandade, de Pedro Morelli. É autora também do curta-metragem Sobre Alices, com direção de Tide Gugliano, selecionado para o Festival “Curta em casa”, do Instituto Criar de Cinema e Novas Mídias – SpCine (2020).

Camila Bauer

Maria Shu é dramaturga e roteirista.

Maria Shu é dramaturga, roteirista e professora, com uma importante produção reconhecida no Brasil e no exterior, tendo seus textos lidos e montados em países como Portugal, Cabo Verde, Suécia e França. Estudou dramaturgia na SP Escola de Teatro e roteiro na Academia Internacional de Cinema, além de ser formada em Letras, com pós-graduação em Língua Portuguesa. 

É autora de peças como Ar rarefeito, vencedora do concurso Feminino Dramaturgia – Prêmio Heleny Guariba (2014) da Cooperativa Paulista de Teatro; Cabaret Stravaganza (2011-2013); Relógios de Areia; Epifania (2017); Giz (2013-2016) e Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus (2019), esta última voltada ao público de crianças. 

Um de seus primeiros trabalhos, Cabaret Stravaganza (2011-2013), explora o conceito de humanidade expandida, colocando em questão a relação do ser humano com a tecnologia. Em Gis (2013-2016), a autora trata da relação entre uma professora (Gis/Gislaine) de um curso supletivo noturno e seu aluno Adão, pedreiro, revelando como a relação entre eles culminou em um ato de violência. Para Gis, o magistério foi pintado por sua mãe como algo branco, marcado pelo pó do giz, mas que, na prática, revela-se gris, enquanto que, para Adão, a vida já era cinza, marcada pelo pó das obras. Maria Shu aborda questões sobre o desejo e a fome, em um paradoxo entre sobrevivência e desejo de viver.

Em Epifania (2017), a autora brinca com um diálogo entre Macabéa (personagem de A hora da estrela) e sua autora, Clarice Lispector, revelando diversas questões do universo feminino. Já Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus (2018) é uma obra voltada para crianças e baseada em fatos reais. A peça narra a história de Abou, um menino africano que imigrou para a Europa dentro de uma mala, sendo achado pela polícia no raio-x da imigração. A mala, Ilê, é a companheira de Abou, sua amiga, seu animal de estimação que ele nunca teve. É com Ilê que inventa histórias e encontra maneiras de vencer o medo e enfrentar as duras realidades que se apresentam. Com uma narrativa envolvente, Maria Shu conta esta história sobre imigração, injustiça social e esperança, trazendo questões que rondam a vida de milhares de crianças imigrantes espalhadas pelo mundo. A peça teve sua estreia em 2019, pelo coletivo O Bonde, formado por artistas oriundos da Escola Livre de Teatro de Santo André. 

"Era uma vez um garoto de pernas e braços feitos de galhos finos, que alguém entalhou, mas não imaginou que ele ficaria com fome. Era uma vez um garoto chamado Tumbu, que ficou dias dentro de um navio fedorento para ser escravizado em outro país. Era uma vez eu, Abou, um garoto refugiado a um passo de uma nova vida. Histórias são sempre sagradas e a parte mais emocionante da minha história está para acontecer a qualquer momento. A mala é fechada. Escuridão.” (Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus)

Em Relógios de areia (2019), a autora retoma a fábula bíblica de Jonas e a Baleia para falar de uma guerra urbana: a guerra do tráfico, da insegurança e da injustiça social. Ela aborda a força e a ameaça policial, trazendo em Jonas a figura da “mula” do narcotráfico. Escreve inspirada por uma reportagem que assistiu na televisão: “A matéria mostrava-os engolindo cápsulas, às vezes em quantidades absurdas. Assistir àquilo me dava muita ânsia e me deixava realmente muito incomodada, então, senti que precisava escrever sobre o tema. Minha primeira ideia era a de criar uma peça aos moldes tradicionais, mas percebi que essa linguagem não daria conta dos meus anseios”, afirma Maria Shu. A dramaturga utiliza-se de poesia, citações, metáforas bíblicas, denúncia social e estruturas concretistas, tendo um caráter quase que de crônica documental, misturada a diálogos e elementos rapsódicos. Mistura épico, lírico e dramático, caracterizando-se pela forma aberta que se aproxima da ótica de um texto pictórico, uma vez que se vale da arquitetura linguística e da diagramação como elementos de composição. 

Nesta peça, há uma voz que se desdobra em várias: a voz da autora, que se desenha, portanto, como princípio de centramento, reunindo negrito, itálico, maiúsculas, confissões, exposições, personagens, figurações e transfigurações. Destaca-se também os elementos antropofágicos presentes no texto, no ato de engolir: “Só tenho medo de morrer na praia depois de ter engolido o mar”, afirma Jonas, o profeta, que na obra de Shu brincou com o destino ao engolir sal e não cocaína, trazendo imagens de navegação, de imigração, de chacina, de conservação, transfigurando a ideia de mula do narcotráfico, presa pela polícia. Trata também de questões sociais, como a barriga de aluguel, os acidentes de trabalho e a necessidade de sobrevivência.

“O que é que se faz com um braço esquerdo que se desprende no meio de um turno? Ora! Substitui-se por um direito porque a fome do navio prossegue. Aliás, para que serve um braço esquerdo mesmo?” (Jonas, em Relógios de areia)

Seguindo na linha de um teatro engajado em questões sociais, Shu constrói em seu monólogo Leoa na Baia (2019-2020) uma situação na qual uma mulher negra sofre violências em seu ambiente de trabalho que tenta embranquece-la. São abusos que incluem tratamento para clarear a pele, maquiagem para afinar nariz e boca, alisamento do cabelo e conversão religiosa. Ao final, um grito de liberdade dessa mulher, que clama por sua autonomia e libertação do ambiente racista em que se insere. Enquanto mulher negra, a dramaturga reflete sobre situações de racismo e machismo que as mulheres negras sofrem, buscando um empoderamento coletivo que surge a partir de transformações individuais. 

Como roteirista, assina dois episódios da série Onisciente, disponível pela plataforma Netflix, além de fazer parte da sala de roteiro da série Irmandade, de Pedro Morelli. É autora também do curta-metragem Sobre Alices, com direção de Tide Gugliano, selecionado para o Festival “Curta em casa”, do Instituto Criar de Cinema e Novas Mídias – SpCine (2020).

Camila Bauer

ABOU: A flor do baobá tem um cheiro bom de almíscar, mas carnes da Ilê fedem como uma zebra morta. Você não tem culpa do futum, a longa viagem deixou as roupas fedidas. Eu também preciso de um banho quente. Mas eu sou bom em imaginar a espuma do sabonete abraçando a minha pele de ébano. Quando você domina o imaginar, você pode ser livre, você acalma o seu coração. O tempo passa tranquilo e você respira sem se apavorar. (Pausa. Música.) Minha casa Ilê. Me escondi num buraco vago no tronco da cachorra. Há muitas mensagens esculpidas nas suas cascas rugosas: dedicatórias amorosas, nomes e datas de quem foi seu dono antes de mim. Rabisco ABOU à unha. Está escuro. Só a imaginação tem o poder de me proteger da escuridão de céu azul marinho, ponteado de miçangas. Uma nuvem fininha, que nem um algodão esgarçado, vagueia. A lua é um cachorro branco iluminado pelo sol. Mamo nas tetas da Via láctea, antes de começar a contar os carneirinhos de poeira que saltam diante dos meus olhos. (Espirra) Não tenha medo deles, Ilê. Carneiros são como cães bem peludos. Un, deux, trios, six, neuf, dix, cinquante-sept, un million, quatrocentos bilhões de estrelas piscam na sua pele empoeirada de sono profundo e todas riem docemente para mim. Girando no espaço, a cadela Laika, cheia de fios, late para nós.

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A mulher para na entrada do controle da fronteira. Os urubus sumiram do céu. Ela olha à direita, depois à esquerda, indecisa na terra de ninguém. Respiro fundo. O cheiro ruim sobe. A gente não vê quando o fedor acaba. A mulher volta a puxar a mala; as patas da Ilê deixam um rastro de barro seco no asfalto. Estamos indo para a passagem da fronteira. É um momento mais tenso da minha vida. Acho que nunca tive um momento tão tenso como esse. Encosto meu ouvido nas paredes da cachorra e escuto o medonho barulho dos carros, as armas engatilhando. O guarda civil se aproxima. A mulher parece uma girafa com torcicolo. “Documentos! O que carrega nesta mala? Para onde está indo?”. “Para casa da minha patroa”. O guarda mau se acha o bambambã. Ele está envolvido de poder. Manda a mulher por a mala numa máquina de ver por dentro, que ele chama de scanner. Mas ela não quer. Ilê treme. Coragem nunca foi o forte dela. Sussurro baixinho: respira, garota! Somos um só pulmão. O scanner é uma máquina que tira foto, mas ninguém quer foto nenhuma, gambé! A gente só quer passar, ter uma vida nova, comer pudim malva até doer o dente. Nos deixe em paz! Sem foto, não passa a fronteira, ele ameaça. O guarda pega a Ilê no colo, ela se finge de morta, dura, dura, e num instante, estamos na esteira para ele fazer o retrato de dentro. A geringonça solta uns ruídos e o meu coração salta como o de uma caça acuada. Daí o guarda chama outro guarda, que chama outro guarda, e vem outro guarda e os quatro guardas ficam parados diante da minha fotografia com cara de bobos. Será que a foto não ficou boa? Precisam de outra imagem minha? Não sou fotogênico? Para os policiais, há um menino de seis anos dentro da mala. Mas eles estão errados. O que existe dentro da mala não é uma criança. Quem habita a cachorra é o medo. E uma mala só carrega o que ela precisa. Um deles abre a barriga do Ilê. Não sei se sou um baobá ou não, mas bàbá não está aqui para me avisar sobre o caule grosso. Tateio as paredes das pirâmides de Quéops, mil corredores. Não quero morrer perdido neste labirinto. Ponho a cabeça para fora da manta. Toda saída é uma cilada. Me apresento aos gambés, na minha língua: “je m’appelle Abou”.

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Vozes, flashes e clarões vêm de toda a parte. Tocam em mim, como se afagassem o lombo de um cachorro manso. Fotos com câmeras e celulares. Quatro homens ao meu redor como urubus no firmamento. Espero que eles fiquem satisfeitos com todos esses retratos; estou exausto. Mas logo a Cruz Vermelha chega e me afoga numa chuva de perguntas: “Você está bem? Você conhece a mulher? De onde você vem, garoto? Onde estão seus pais?” Enfiam palitos de picolé – sem picolé – na minha garganta, olham meus dentes, arregalam meus olhos, apalpam minha barriga, vasculham meu cabelo. Meu coração sacode dentro do ouvido do enfermeiro que me vira em todas as posições e, por fim, ganho um caldo quente, como os adestradores de animais que dão comida quando o bicho acerta um movimento. Fizeram muitas perguntas, mas sequer ouviram a minha: quedê meu pudim malva?

***

RÁDIO: Um menino de seis anos de idade foi encontrado escondido dentro de uma mala de viagem por funcionários da fronteira. Os oficiais encontraram o menino depois que passaram a mala pelo equipamento de raio-x e viram a criança enrolada entre as roupas. Agora, ele está sob custódia da Promotoria de Menores e seu destino ainda é incerto. Um Guarda Civil fotografou Abou e as imagens ganharam o mundo, causando surpresa e indignação.

ABOU: Como é grande, infinitamente, o mundo! Mas me trancaram num pedaço dele, pintado de branco e azul, chamado “abrigo”. Há uma árvore no pátio: galhos finos, folhas secas, raízes sufocadas no chão de cimento. A diretora diz “Bem-vindo, menino Abou, bem-vindo. Você passou por tanta coisa que... Mas vai ficar tudo bem. Aqui tem criança, cama, comida...”. Uma porção de meninos brancos me olha, eu colo o queixo no peito, a Ilê de rabinho baixo, o rádio fora de sintonia. Naquela noite, eu fico choroso, mas a imaginação é muito útil quando se está perdido. Penso no pudim malva molhadinho na minha boca: é uma coisa que vale a pena pensar. Quem sabe, ele venha com uma porção de geleia de damasco ou uma bola generosa de sorvete de creme. Momentos felizes ao lado de bàbá, iyá e Ilê estão por vir. Um quintal cheio de passarinhos coloridos voando, nuvens douradas dançando no horizonte, o rádio tocando canção de festa, mas isso tudo desaparece, assim que um menino grandão me empurra da cama pela manhã e grita bem alto: MACACO! Caio de joelhos e todos gargalham. Gritaram-me MACACO. Falo para a diretora que os garotos não gostam de mim, que eu não compreendo muita coisa das esquisitices que eles gritam, daí ela fala: “Não cace confusão e aprenda a... ligue para a fornecedor agora mesmo”. Ela sai andando com seu sapato tec tec tec tec, falando ao celular e me deixando sozinho no pátio, na terra tão sem céu que até para olhar as nuvens é preciso fechar os olhos: “De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?” Mais tarde, o mesmo grandão para na porta do quarto e não me deixa entrar. Homens maus não deixam as pessoas passarem. Empurrão, café da manhã. Pontapés, aula de artesanato. Rasteira, almoço. Xingamento, jantar, chamboco, chamboco... O corpo em fogo das pancadas recebidas. Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus. 

RÁDIO: A UNICEF cria centros de abrigo para crianças refugiadas. O objetivo é apoiar famílias em condições vulneráveis que estão em movimento tentando chegar à Europa. Darão atenção particular às crianças que estão desacompanhadas ou que foram separadas de suas famílias durante a viagem.

ABOU: Será que você não sabe falar de outra coisa? Droga de rádio velho, toque uma canção alegre! 

(Fragmento de Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus)