Maria Léo Araruna inseriu-se no circuito teatral brasiliense em 2017 como atriz de musicais. Sua estreia na dramaturgia deu-se um ano depois, com a apresentação do Manifesto Trav(eco) Ciborgue (2018), no Teatro Goldoni. O texto, que assume o Manifesto Ciborgue de Donna Haraway como referência, foi criado no contexto do Teatro Elétrico – curso de atuação para iniciantes ministrado pelos integrantes do Grupo Liquificador – e publicado posteriormente no livro Bricolagem Travesti, lançado em 2020 pela Padê Editorial. Trechos do manifesto reaparecem ainda no quarto capítulo do solo Transmitologia (2019), demarcando de modo evidente os aspectos que passam a interessar Maria Léo em sua pesquisa artística acerca da própria condição travesti, bem como as reverberações políticas e estéticas de sua produção numa sociedade habituada a apagar corporalidades dissidentes.
O manifesto como gênero aparece em diferentes momentos da história da arte e do teatro brasileiro. Faz convergir um desejo de provocar rupturas e desvios em paradigmas estéticos, morais e políticos, e apresenta um depoimento pessoal – de um indivíduo ou de um coletivo, uma geração. Em Manifesto Trav(eco) Ciborgue, Maria Léo traz as perspectivas legais e científicas para o debate da travestilidade e da identidade de gênero, apresentando-nos a ideia da identidade como resultado de um processo de fabricação regido por mecanismos e discursos sustentados em estruturas de poder, como o Direito, a Medicina e a Psicologia. Por meio desta operação, ao demonstrar que a cisgeneridade é tão fabricada quanto a transgeneridade, Maria Léo nos ajuda a vislumbrar outros arranjos possíveis de sociedade. O texto é didático, sem ser informativo; é histórico, sem pretender-se estrutural; é filosófico, sem deixar de ser poético.
Já o solo Transmitologia (2019) é uma peça dividida em seis capítulos e costurada por muitas indicações de ação e transições de cena. Logo no início, a rubrica que descreve a personagem do texto – “Maria, travesti guerrilheira” – deixa claro o engajamento político da obra. Maria, que é o nome da autora, também é o nome de todas as que vieram antes. O pensamento de Maria Léo ultrapassa a esfera individual sem nunca deixar de tematizá-la; as questões de sua existência são espelhadas nos processos sociais e políticos que constituem os territórios – em especial o Brasil, país que segue há anos na liderança do ranking mundial de assassinato de pessoas trans.
Transmitologia foi dirigido por Kika Sena, artista travesti que faz parte de um movimento recente de assimilação da presença de artistas trans na cena candanga – dentro do qual podemos incluir a própria Maria Léo e também o Culto das Malditas, que se apresentam em sua conta no Instagram como uma “agrupação artística híbrida de produção e resistência travesti preta e periférica”. Cabe mencionar, no mesmo período, a atuação de Maria Léo como estudante de Direito na coletiva Corpolítica, um projeto de extensão da Universidade de Brasília desenvolvido junto a jovens das periferias do Distrito Federal, sob a coordenação do professor Evandro Piza-Duarte, com atividades sobre territorialidade, gênero, sexualidade, raça/etnia, direitos de minorias e identidades LGBTQIA+.
A escrita de Maria Léo faz parte de seu exercício como performer. Ela questiona a linguagem para questionar também o sistema que a produziu e todas as violências que se inscreveram para sustentá-lo como dominante. Não se trata exclusivamente do ativismo pelas pautas da transgeneridade, mas da revisão dos processos históricos, estéticos e tecnológicos que geraram o conceito binário de gênero e o mantiveram como paradigma e marcador da maioria das dinâmicas políticas e sociais, institucionalizadas ou não.
Glauber Coradesqui