Desde suas primeiras incursões no teatro, Marcos Fábio de Faria vem construindo uma dramaturgia que exprime vívida intimidade com gêneros cênico-musicais. Nesse sentido, o autor investiga sistematicamente os repertórios musicais e performáticos das culturas negras no Brasil, incorporando tais elementos na tessitura de seus textos. Essa é certamente uma das características mais destacáveis no conjunto de sua diversa obra que, amiúde, é encenada por significativos grupos de teatro da capital e do interior de Minas Gerais. Natural de Matozinhos, região metropolitana de Belo Horizonte, Marcos Fábio atua também como crítico literário, pesquisador de literatura e teatro, além de ser professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri.
No âmbito profissional, as obras inaugurais do jovem dramaturgo foram encenadas pela Cia. Burlantis (BH), que desde a sua fundação, em 1996, se notabilizou nacionalmente por produções marcadas pela musicalidade sofisticada e pela intensa teatralidade popular. Com o tempo, a Cia. aprofundou suas pesquisas acerca das tradições culturais afro-mineiras, notadamente sob a influência do ator, instrumentista e compositor Maurício Tizumba. É neste contexto que, em março de 2013, Marcos Fábio de Faria viu seus dois primeiros textos, Munheca e Clara Negra ganharem vida no palco. Munheca adapta a icônica comédia O Avarento, de Moliére, adicionando ainda mais comicidade por meio de uma linguagem fortemente mineira nas expressões, nos jogos de cena, nos ritmos e nas canções originais. Clara Negra, por sua vez, é um espetáculo musical que homenageia a cantora Clara Nunes, apresentando canções que integraram diferentes fases de sua vida. Entrecortando a parte musical, a dramaturgia inclui dados biográficos, frases e pensamentos da inconfundível mulher, construindo um painel intrincado das diversas facetas de sua complexa personalidade. A experiência com a Cia. Burlantins foi inequivocamente fundamental para o dramaturgo em formação experimentar não apenas textualidades voltadas para espetáculos musicais com numerosos atores, mas também uma escrita embebida de sonoridades, plasticidades e ritmos afro-brasileiros.
Nesta vertente musical, Madame Satã, escrita em parceria com o ator, produtor e cantor Rodrigo Jerônimo (BH), é a obra mais aclamada na qual Marcos Fábio de Faria assina a dramaturgia, tendo realizado exitosas temporadas em Belo Horizonte, São Paulo e no Distrito Federal. O espetáculo, cuja estreia se deu em 2015, foi produzido pelo Grupo dos Dez, coletivo teatral de Minas Gerais, fundado em 2008, que se dedica a explorar cenicamente formas e linguagens dos teatros musicais profundamente brasileiros. A direção ficou a cargo de Rodrigo Jerônimo e do mestre João das Neves (1934-2018), uma das principais referências artísticas do grupo. João Francisco dos Santos (a alcunha de Madame Satã virá depois), negro, homossexual e artista cênico foi um dos mais emblemáticos (e marginalizados) símbolos das noites cariocas no início do século passado. A história de sua vida se transforma, dramaturgicamente, em um catalisador de discussões relativas à criminalização e ao encarceramento em massa do povo negro, à homofobia e às relações amorosas não heteronormativas, reapresentando uma personalidade que resistiu, em seu tempo, a diversas formas de violência. Em termos dramatúrgicos, a obra concebe uma personagem tripartite, isto é, interpretada por três atores diferentes, fato este que torna Madame Satã ainda mais multifacetada. Nesse sentido, o texto humaniza, sem aparar as contradições, esta nebulosa figura. O espectador é continuamente provocado a repensar seus posicionamentos ético-políticos, como salienta o pesquisador Marcos Alexandre. Madame Satã foi publicado pela editora Javali em 2018.
Pode-se destacar ainda, as dramaturgias dos seguintes espetáculos musicais: Elekô guerreiras, de 2016; e mais recentemente Dandara para todas as mulheres (escrita com a atriz e cantora Bia Nogueira), de 2020. Nestas criações, são enfocadas as vivências, as dores, as alegrias e a resistência histórica das mulheres negras contra o racismo e o sexismo, cravados na formação do país. Assim como nas dramaturgias musicais anteriores, a escrita de Marcos Fábio de Faria (solitariamente ou em dupla) absorve os humores do palco, as corporeidades negras, as canções autorais (o autor também colabora nesta seara) e as propostas cênicas dos elencos no decorrer dos processos criativos. Percebe-se, paulatinamente, a inseparável junção entre musicalidade e textualidade nas obras deste escritor.
Outra relevante vereda dramatúrgica de Marcos Fábio se encontra no interior do projeto estético-político intitulado Afro apocalíptico, idealizado por Rodrigo Jerônimo. Em linhas gerais, esta pesquisa artística examina os processos simbólicos e físicos de genocídio da população negra no sistema colonial da modernidade e na estrutura racista do Brasil, concebendo não uma perspectiva fatalista, mas estratégias poéticas para sobreviver e conferir novos sentidos para vidas situadas historicamente no fio da navalha. Investigações no campo das artes cênicas e da literatura fazem parte deste projeto. Nesta esfera, Marcos elaborou, entre outras, as dramaturgias de Rueiros, tanto a cena curta, estreada em 2019, pelo grupo Fio-Cena de Teófilo Otoni (MG), quanto o espetáculo de longa duração, que, devido à pandemia do novo coronavírus, não pode ser apresentado; Filofobia, cena estreada em 2018 e recriada em 2019, que é uma coprodução entre o Grupo dos 10 e o In-Cena, também de Teófilo Otoni; e IMuNe Experience, performance estreada virtualmente em 2020, pelo Coletivo Imune, de Belo Horizonte; Afroapocalíptico – Capítulo II, estreado em 2021 no festival Satyrianas. Incluem-se também o texto ainda não encenado: Por onde anda Baquaqua?, solo de Rodrigo Jerônimo. Embora multiforme, o mosaico delineado por tais criações dão a ver imagens distópicas, em que a violência, o absurdo e a desolação histórico-existencial são atravessados por fagulhas de vida, de resistência e de beleza, como persistentes flores dentre as ruínas. Os textos Guerra Seca e Para a hora da morte – manifesto pela verdade: nem antropofágico nem comunista, apenas o fim do mundo, ou de nós mesmos (escrita com André Luiz Dias) não estão apresentados como partes do pensamento afro-apocalíptico, embora, em ambos os casos, presenciamos universos em decomposição, crivados pelo espectro da morte e da desilusão.
Marcos Fábio de Faria é ainda editor e curador da Aquilombô, editora dedicada a gerar, publicar e difundir produções artístico-intelectuais de pessoas negras, desafiando as exclusões e os corporativismos no mercado editorial brasileiro. As dramaturgas Cidinha da Silva (MG/SP) e Cristiane Sobral (DF), além da pensadora Rosane Borges (SP), tiveram obras publicadas por esta significativa editora. De uma ponta a outra, a presença de Marcos Fábio no teatro brasileiro contemporâneo energiza as cenas negras mineiras e fortalece suas estratégias políticas.
Guilherme Diniz