leonarda glück

Curitiba - PR

Fragmento Teatral

Ato 2 – Deus e pornografia

Quem terá criado a livre escolha? Maomé? Deus? O mercado? Por que o sangue derramado pelos oprimidos em revolta importará mais do que aquele um seu habitualmente derramado? Quando foi que a servidão se tornou um privilégio para nós? O desafio aqui é a emancipação do corpo, de um corpo, o meu corpo, corpo de deus, o corpo de uma multidão, esse corpo – menos infame do que massacrado – que dá voltas em suas funções analógicas, que aspira torná-las digitais. O dígito sagrado. Sagrado seja tudo o que vem do dedo, tudo que é trans e preto, tudo que não se pode contar. Sagrado seja todo aquele que foi torturado, expurgado, não aceito, espezinhado. Sagrada seja a impressão que um tem de si mesmo. Sagrados sejam a faca e o enxerto e toda construção de mundo que do corpo sai. Sagrado seja tudo aquilo que o dedo de deus não tocou. Deus me odiou desde o início. Me apontou o dedo torto e velho e disse: “Vai. Desgraça-te.” A liberdade é a urgência tardia do povo.

Infoproletários do mundo, uni-vos no trava-deus! Num mesmo corpo aos trancos e barrancos. Tapo os ouvidos, sigo destemida. Corto o mal pela raiz. A cicatrização da moral é demorada. Carrego esse peso nos ombros, a maré não está pra peixe. É preciso resistir, diz o outro. Numa relax. Numa tranquila. Numa boa. E não jogando areia nos olhos de deus. Sem entrar pelo cano. Entre os bárbaros, a civilização é um osso duro de roer. Atravessado na garganta. Entre os binários, a travesti é barra pesada. Pedreira. Diz poucas e boas. Diz soltar a franga fardada, no seio das forças armadas, por amor a uma pátria espúria. É dose. E às vezes empata a foda. Mas é no olho do furacão que carrego a minha cruz. Se a porca torce o rabo, dou-lhe o pão que o diabo amassou. Eu sou a pedra no meio do caminho. A chapa que esquentou. A farpa por baixo da unha. Mão de vaca. Mala sem alça. Eu sou o mato sem cachorro, o cachorro morto que alguém chutou. Pisando em brasa, vou bagunçando o coreto, até colocar um ponto final. Quero ter a última palavra. Levar a cabo. Dar um basta. Pôr os pingos nos is. Dizer chega. Cortar as vazas. Tapar os ouvidos. Dar xeque-mate. Pôr um freio. Passar a chave. Para uns, acidente de percurso, para mim, poder de morte. No espetáculo da necropolítica, eu ando trincada, dura na queda. Sei que a sangria está desatada, mas a carne agora é vitória suada.

Eu não estou aqui hoje para dar a vocês informações sobre como funciona a medicalização desse assunto. A patologização compulsória da transexualidade. Não vou falar para vocês como se faz a terapia hormonal, que remédios essas pessoas tomam e por quais vias, não vou falar sobre a maneira como as equipes médicas tratam o paciente transexual no Brasil ou como a cirurgia de readequação genital é bem-sucedida na Tailândia, já que por lá ela é feita há mais de quarenta anos. Eu também não vou falar sobre os políticos brasileiros que estão propondo o fim dos tratamentos médicos para crianças trans em alguns lugares do país por considerarem que a “ideologia de gênero” foi longe demais e que, se os pais dessas crianças assim desejarem, eles podem muito bem aguardar até que elas completem 18 ou, ainda, 21 anos em alguns casos, que é para dificultar mais ainda, até que possam decidir sobre os rumos que seus corpos irão tomar. Eu não vou falar para vocês que atualmente uma criança não pode chegar no hospital e exigir ser transformada medicamente em homem ou em mulher, porque isso seria insultar a inteligência de vocês, e eu não quero fazer isso. Eu não vou sequer dizer a vocês que ideologia de gênero é coisa que não existe. Eu não vou falar sobre a ingerência do Estado na vida íntima de seus cidadãos supostamente livres. Eu também não vou falar que a liberdade é um blefe. Eu não vou recair no clichê das estatísticas oficiais, que nos dizem que o Brasil, por exemplo, é o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo, segundo a ONG Transgender Europe, com sede na Alemanha. Eu não vou falar dos tipos de mortes e agressões, tais como facadas, apedrejamentos, tiros, estrangulamentos, torturas, espancamentos, pauladas, ateamentos de fogo, atropelamentos, não vou lembrar do caso de Campinas neste ano, em que o assassino matou a travesti e com cacos de vidro arrancou seu coração. No buraco que ficou no corpo da vítima – sorrindo, o assassino a chamou de demônio –, enfiou a imagem de uma santa. O coração da vítima o assassino levou para casa. Eu não vou falar que o México fica em segundo lugar nesse ranking macabro com menos da metade das mortes, seguido dos Estados Unidos e da Colômbia, porque vocês já devem conhecer essas informações, não é mesmo? Seria chover no molhado. Eu não vou falar, ainda, que o Brasil é o país que mais consome pornografia transexual em todo o mundo. Eu não vou sugerir que o nosso é um país esquizofrênico, de assassinos pornógrafos e psicopatas, não, eu não vou. Isso nem me passou pela cabeça. Não vou dar a entender que de pacífico esse Brasil não tem nada e que essa história do homem cordial brasileiro, cujas virtudes principais são a hospitalidade e a generosidade, fica mais bonita nos livros do que na própria realidade. Eu não vou repetir aqui que o homem é o lobo do homem e que ele mata tudo que ama, não, eu não vou. Longe de mim. Eu não vou falar em autoritarismo, eu não vou falar em doença social, histeria coletiva e política genocida, eu não vou falar em fascismo, eu não vou falar nada disso. Longe de mim também dizer que atualmente o nosso governo não tem mais compromisso algum com a verdade, que dirá com essas ONGs e com esses rankings, ainda mais ONGs estrangeiras, que, de olho nos nossos tão bem cuidados bens nacionais, resolveram distorcer dados em suas pesquisas imorais cheias de viés ideológico, feitas para pôr abaixo a nossa tão linda e tão bem arquitetada soberania nacional. Eu não vou dizer pega fogo cabaré, por exemplo.

(Fragmento de Trava bruta)

Leonarda Glück é atriz, dramaturga e diretora. Cofundadora da Companhia Silenciosa e do Coletivo Selvática.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Leonarda Glück é atriz, dramaturga, performer e diretora. Graduada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná. Com mais de 25 anos de carreira, Leonarda foi responsável pela fundação da Companhia Silenciosa e do Coletivo Selvática.

Já escreveu mais de 20 dramaturgias, entre elas: Florrie, a importância extrema (2011), Iracema 236ml (2004), The Mango Tree (2004), Cabaret Macchina (2018), A mesa (2019), entre outros. Em 2016 lançou o livro A perfodrama de Leonarda Glück – literaturas dramáticas de uma mulher (trans) de teatro no qual encontramos seis textos para teatro: As três irmãs – um melodrama rocambolesco em quatro capítulos; Cutelo assassino – uma tragédia grega de atrocidades; Jesus vem de Hannover; O faqueiro de Górgona ou Górgona e as mil facas encantadas; Rebecca ou David começa a babar; e Stoccarda. Em 2019 foi contemplada pelo Edital Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP com o texto Trava bruta, que ganhou publicação em 2021 pelo mesmo edital.

Trabalha com a fusão entre linguagens artísticas, tais como teatro, dança, performance art, literatura, música, vídeo, artes visuais e cibernéticas, suas relações com o corpo, e as ressonâncias afetivas. As principais temáticas desenvolvidas pela artista são amor, neocolonialismo, globalização, linguística, fronteiras, tecnologia, transexualidade, conflitos mundiais, Brasil, sexo, violência, cultura LGBTQIA+, dominação e poder.

A partir desse universo diverso, encontramos na apresentação do seu livro, a leitura do artista Ricardo Nolasco: “A palavra de Leonarda Glück não pede perdão nem licença. Instaura-se sem medo. Corrói, perfura, gargalha e morde. Toda a tradição é veneno para si mesma, o passado é tão patético quanto o presente ou o futuro e as esperanças são tão risíveis como qualquer boa intenção. Muito mais do que a ironia, são o sarcasmo e o pastiche suas armas mais letais. Aos olhos, ouvidos e percepção arguta de Glück nada escapa. Sua obra é como dedo fino, sedutor e debochado, na ferida aberta que é o mundo ocidental. O dedo penetra criando a ilusão de um curativo ou um carinho e, quando a ferida menos espera, gira com força máxima. Didascálica: risos inaudíveis.”

Ricardo Nolasco parece certeiro ao indicar a potência da dramaturgia de Leonarda. Completamente fora dos preceitos tradicionais mas também avessa aos modismos do teatro contemporâneo, os textos de Leonarda figuram a complexidade que seus temas abordam. Porém, os discursos não são unívocos, não convergem na direção de uma síntese. Ainda, para Ricardo Nolasco, “sua escrita mescla todos os tipos de discursos, posições e referências sem qualquer juízo de valor: clássicos, a cultura de massa, o pop, bulas de remédios, alta filosofia, uma conversa no ônibus, postagens reacionárias na linha do tempo, fragmentos da antiga revista ‘Seleções’, os piores programas da televisão brasileira, gregos e troianos: todos estão submetidos à acidez intertextual de Leonarda Glück.”

Em relação à tematização do universo trans, Leonarda Glück nos indica: “Do meu ponto de vista, creio ser sempre o maior desafio tratar do assunto com a importância e a simplicidade que ele tem a um só tempo. Pode parecer curioso dizer isso, mas é verdade. [...] Veja bem, o que eu quero dizer é: as necessidades das pessoas trans (para usar o termo mais utilizado sobre o assunto) são bastante similares àquelas de qualquer outra pessoa não relacionada com essa questão especificamente. Respeito, afeto, saúde, medicamentos, tratamentos, consumo, produção, cultura, vivência, capacidade, atividade sexual, intelecto e tudo mais são coisas que dizem respeito a todos os seres viventes, não são? Se não são, deveriam ser. O que está errado é querer tirar o direito do outro em razão de seus modos pessoais de agir. [...] Então, decerto não pode ser a maneira como utilizamos nossa mente e nossas genitálias o que deverá demarcar uma diferença definitiva, pois mesmo essa diferença poderá perfeitamente igualar-se à diferença do outro em outro canto do mundo. [...] Outro grande desafio é dar ouvidos ao que dizem as pessoas transexuais, escutá-las com respeito e seriedade em primeiro lugar, para só depois entrar a crítica e o julgamento, porque esses sim são bastante democráticos e estão aí para tudo e para todos no mundo”.

É nesse sentido que a dramaturgia de Leonarda Glück se desenvolve. A maioria de seus textos colocam a transexualidade não como um pressuposto, mas como um lugar no mundo. Ricardo reforça: “em seu texto, por sinal, esta questão jamais é abandonada, Glück não se esquiva de nada, pelo contrário: expõe. Como um fauno ou um sátiro, sabe que carrega em seu corpo – marcadas – todas as suas trajetórias e isso não a leva em nenhum tipo de vitimização, pois seu olhar não naturaliza nem a si mesma”.

Mas é em Trava bruta que encontramos a tematização da transexualidade. Leonarda indica “Me veio uma possível angústia repentina: a de talvez não ter conseguido em outro momento antes escrever tão intimamente sobre o assunto da transexualidade, e seus efeitos na minha mente e na vida social da qual faço parte, como ser humano e como artista brasileira, cidadã do mundo, do meu corpo e da minha arte. Eu já havia escrito sobre isso antes, claro, mas é a primeira vez que dedico um espetáculo inteiro à minha – embora não só – experiência transexual.” E é nesse texto que encontramos sua construção poética a partir de sua identidade: “Nosso encontro de hoje é sobre uma desordem pouco comum. Uma desordem minha pouco comum. Minha. Isso diz de mim. É sobre a minha carne. / Mas é também sobre um tipo de carne no mundo. /É também sobre os deslizes que a natureza comete. / Comigo a anatomia ficou louca. / É sobre alguém anatomicamente normal que se sente como membro do sexo oposto. / Eu, no caso. Pouco comum. O sexo oposto é o que me constitui. Embora minha anatomia seja comum. / No globo aproximadamente 3,6 bilhões de pessoas dividem comigo a mesma anatomia comum. / Incomum é o sentimento. Raro. Peculiar. Gesto humano e solitário. / Eu combato esse corpo que eu amo. / Esse corpo-ficção que o tempo impiedosamente degrada. / Este espetáculo é para eu ficar livre de mim mesma.”

Ligia Souza

Leonarda Glück é atriz, dramaturga e diretora. Cofundadora da Companhia Silenciosa e do Coletivo Selvática.

Leonarda Glück é atriz, dramaturga, performer e diretora. Graduada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná. Com mais de 25 anos de carreira, Leonarda foi responsável pela fundação da Companhia Silenciosa e do Coletivo Selvática.

Já escreveu mais de 20 dramaturgias, entre elas: Florrie, a importância extrema (2011), Iracema 236ml (2004), The Mango Tree (2004), Cabaret Macchina (2018), A mesa (2019), entre outros. Em 2016 lançou o livro A perfodrama de Leonarda Glück – literaturas dramáticas de uma mulher (trans) de teatro no qual encontramos seis textos para teatro: As três irmãs – um melodrama rocambolesco em quatro capítulos; Cutelo assassino – uma tragédia grega de atrocidades; Jesus vem de Hannover; O faqueiro de Górgona ou Górgona e as mil facas encantadas; Rebecca ou David começa a babar; e Stoccarda. Em 2019 foi contemplada pelo Edital Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP com o texto Trava bruta, que ganhou publicação em 2021 pelo mesmo edital.

Trabalha com a fusão entre linguagens artísticas, tais como teatro, dança, performance art, literatura, música, vídeo, artes visuais e cibernéticas, suas relações com o corpo, e as ressonâncias afetivas. As principais temáticas desenvolvidas pela artista são amor, neocolonialismo, globalização, linguística, fronteiras, tecnologia, transexualidade, conflitos mundiais, Brasil, sexo, violência, cultura LGBTQIA+, dominação e poder.

A partir desse universo diverso, encontramos na apresentação do seu livro, a leitura do artista Ricardo Nolasco: “A palavra de Leonarda Glück não pede perdão nem licença. Instaura-se sem medo. Corrói, perfura, gargalha e morde. Toda a tradição é veneno para si mesma, o passado é tão patético quanto o presente ou o futuro e as esperanças são tão risíveis como qualquer boa intenção. Muito mais do que a ironia, são o sarcasmo e o pastiche suas armas mais letais. Aos olhos, ouvidos e percepção arguta de Glück nada escapa. Sua obra é como dedo fino, sedutor e debochado, na ferida aberta que é o mundo ocidental. O dedo penetra criando a ilusão de um curativo ou um carinho e, quando a ferida menos espera, gira com força máxima. Didascálica: risos inaudíveis.”

Ricardo Nolasco parece certeiro ao indicar a potência da dramaturgia de Leonarda. Completamente fora dos preceitos tradicionais mas também avessa aos modismos do teatro contemporâneo, os textos de Leonarda figuram a complexidade que seus temas abordam. Porém, os discursos não são unívocos, não convergem na direção de uma síntese. Ainda, para Ricardo Nolasco, “sua escrita mescla todos os tipos de discursos, posições e referências sem qualquer juízo de valor: clássicos, a cultura de massa, o pop, bulas de remédios, alta filosofia, uma conversa no ônibus, postagens reacionárias na linha do tempo, fragmentos da antiga revista ‘Seleções’, os piores programas da televisão brasileira, gregos e troianos: todos estão submetidos à acidez intertextual de Leonarda Glück.”

Em relação à tematização do universo trans, Leonarda Glück nos indica: “Do meu ponto de vista, creio ser sempre o maior desafio tratar do assunto com a importância e a simplicidade que ele tem a um só tempo. Pode parecer curioso dizer isso, mas é verdade. [...] Veja bem, o que eu quero dizer é: as necessidades das pessoas trans (para usar o termo mais utilizado sobre o assunto) são bastante similares àquelas de qualquer outra pessoa não relacionada com essa questão especificamente. Respeito, afeto, saúde, medicamentos, tratamentos, consumo, produção, cultura, vivência, capacidade, atividade sexual, intelecto e tudo mais são coisas que dizem respeito a todos os seres viventes, não são? Se não são, deveriam ser. O que está errado é querer tirar o direito do outro em razão de seus modos pessoais de agir. [...] Então, decerto não pode ser a maneira como utilizamos nossa mente e nossas genitálias o que deverá demarcar uma diferença definitiva, pois mesmo essa diferença poderá perfeitamente igualar-se à diferença do outro em outro canto do mundo. [...] Outro grande desafio é dar ouvidos ao que dizem as pessoas transexuais, escutá-las com respeito e seriedade em primeiro lugar, para só depois entrar a crítica e o julgamento, porque esses sim são bastante democráticos e estão aí para tudo e para todos no mundo”.

É nesse sentido que a dramaturgia de Leonarda Glück se desenvolve. A maioria de seus textos colocam a transexualidade não como um pressuposto, mas como um lugar no mundo. Ricardo reforça: “em seu texto, por sinal, esta questão jamais é abandonada, Glück não se esquiva de nada, pelo contrário: expõe. Como um fauno ou um sátiro, sabe que carrega em seu corpo – marcadas – todas as suas trajetórias e isso não a leva em nenhum tipo de vitimização, pois seu olhar não naturaliza nem a si mesma”.

Mas é em Trava bruta que encontramos a tematização da transexualidade. Leonarda indica “Me veio uma possível angústia repentina: a de talvez não ter conseguido em outro momento antes escrever tão intimamente sobre o assunto da transexualidade, e seus efeitos na minha mente e na vida social da qual faço parte, como ser humano e como artista brasileira, cidadã do mundo, do meu corpo e da minha arte. Eu já havia escrito sobre isso antes, claro, mas é a primeira vez que dedico um espetáculo inteiro à minha – embora não só – experiência transexual.” E é nesse texto que encontramos sua construção poética a partir de sua identidade: “Nosso encontro de hoje é sobre uma desordem pouco comum. Uma desordem minha pouco comum. Minha. Isso diz de mim. É sobre a minha carne. / Mas é também sobre um tipo de carne no mundo. /É também sobre os deslizes que a natureza comete. / Comigo a anatomia ficou louca. / É sobre alguém anatomicamente normal que se sente como membro do sexo oposto. / Eu, no caso. Pouco comum. O sexo oposto é o que me constitui. Embora minha anatomia seja comum. / No globo aproximadamente 3,6 bilhões de pessoas dividem comigo a mesma anatomia comum. / Incomum é o sentimento. Raro. Peculiar. Gesto humano e solitário. / Eu combato esse corpo que eu amo. / Esse corpo-ficção que o tempo impiedosamente degrada. / Este espetáculo é para eu ficar livre de mim mesma.”

Ligia Souza

Ato 2 – Deus e pornografia

Quem terá criado a livre escolha? Maomé? Deus? O mercado? Por que o sangue derramado pelos oprimidos em revolta importará mais do que aquele um seu habitualmente derramado? Quando foi que a servidão se tornou um privilégio para nós? O desafio aqui é a emancipação do corpo, de um corpo, o meu corpo, corpo de deus, o corpo de uma multidão, esse corpo – menos infame do que massacrado – que dá voltas em suas funções analógicas, que aspira torná-las digitais. O dígito sagrado. Sagrado seja tudo o que vem do dedo, tudo que é trans e preto, tudo que não se pode contar. Sagrado seja todo aquele que foi torturado, expurgado, não aceito, espezinhado. Sagrada seja a impressão que um tem de si mesmo. Sagrados sejam a faca e o enxerto e toda construção de mundo que do corpo sai. Sagrado seja tudo aquilo que o dedo de deus não tocou. Deus me odiou desde o início. Me apontou o dedo torto e velho e disse: “Vai. Desgraça-te.” A liberdade é a urgência tardia do povo.

Infoproletários do mundo, uni-vos no trava-deus! Num mesmo corpo aos trancos e barrancos. Tapo os ouvidos, sigo destemida. Corto o mal pela raiz. A cicatrização da moral é demorada. Carrego esse peso nos ombros, a maré não está pra peixe. É preciso resistir, diz o outro. Numa relax. Numa tranquila. Numa boa. E não jogando areia nos olhos de deus. Sem entrar pelo cano. Entre os bárbaros, a civilização é um osso duro de roer. Atravessado na garganta. Entre os binários, a travesti é barra pesada. Pedreira. Diz poucas e boas. Diz soltar a franga fardada, no seio das forças armadas, por amor a uma pátria espúria. É dose. E às vezes empata a foda. Mas é no olho do furacão que carrego a minha cruz. Se a porca torce o rabo, dou-lhe o pão que o diabo amassou. Eu sou a pedra no meio do caminho. A chapa que esquentou. A farpa por baixo da unha. Mão de vaca. Mala sem alça. Eu sou o mato sem cachorro, o cachorro morto que alguém chutou. Pisando em brasa, vou bagunçando o coreto, até colocar um ponto final. Quero ter a última palavra. Levar a cabo. Dar um basta. Pôr os pingos nos is. Dizer chega. Cortar as vazas. Tapar os ouvidos. Dar xeque-mate. Pôr um freio. Passar a chave. Para uns, acidente de percurso, para mim, poder de morte. No espetáculo da necropolítica, eu ando trincada, dura na queda. Sei que a sangria está desatada, mas a carne agora é vitória suada.

Eu não estou aqui hoje para dar a vocês informações sobre como funciona a medicalização desse assunto. A patologização compulsória da transexualidade. Não vou falar para vocês como se faz a terapia hormonal, que remédios essas pessoas tomam e por quais vias, não vou falar sobre a maneira como as equipes médicas tratam o paciente transexual no Brasil ou como a cirurgia de readequação genital é bem-sucedida na Tailândia, já que por lá ela é feita há mais de quarenta anos. Eu também não vou falar sobre os políticos brasileiros que estão propondo o fim dos tratamentos médicos para crianças trans em alguns lugares do país por considerarem que a “ideologia de gênero” foi longe demais e que, se os pais dessas crianças assim desejarem, eles podem muito bem aguardar até que elas completem 18 ou, ainda, 21 anos em alguns casos, que é para dificultar mais ainda, até que possam decidir sobre os rumos que seus corpos irão tomar. Eu não vou falar para vocês que atualmente uma criança não pode chegar no hospital e exigir ser transformada medicamente em homem ou em mulher, porque isso seria insultar a inteligência de vocês, e eu não quero fazer isso. Eu não vou sequer dizer a vocês que ideologia de gênero é coisa que não existe. Eu não vou falar sobre a ingerência do Estado na vida íntima de seus cidadãos supostamente livres. Eu também não vou falar que a liberdade é um blefe. Eu não vou recair no clichê das estatísticas oficiais, que nos dizem que o Brasil, por exemplo, é o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo, segundo a ONG Transgender Europe, com sede na Alemanha. Eu não vou falar dos tipos de mortes e agressões, tais como facadas, apedrejamentos, tiros, estrangulamentos, torturas, espancamentos, pauladas, ateamentos de fogo, atropelamentos, não vou lembrar do caso de Campinas neste ano, em que o assassino matou a travesti e com cacos de vidro arrancou seu coração. No buraco que ficou no corpo da vítima – sorrindo, o assassino a chamou de demônio –, enfiou a imagem de uma santa. O coração da vítima o assassino levou para casa. Eu não vou falar que o México fica em segundo lugar nesse ranking macabro com menos da metade das mortes, seguido dos Estados Unidos e da Colômbia, porque vocês já devem conhecer essas informações, não é mesmo? Seria chover no molhado. Eu não vou falar, ainda, que o Brasil é o país que mais consome pornografia transexual em todo o mundo. Eu não vou sugerir que o nosso é um país esquizofrênico, de assassinos pornógrafos e psicopatas, não, eu não vou. Isso nem me passou pela cabeça. Não vou dar a entender que de pacífico esse Brasil não tem nada e que essa história do homem cordial brasileiro, cujas virtudes principais são a hospitalidade e a generosidade, fica mais bonita nos livros do que na própria realidade. Eu não vou repetir aqui que o homem é o lobo do homem e que ele mata tudo que ama, não, eu não vou. Longe de mim. Eu não vou falar em autoritarismo, eu não vou falar em doença social, histeria coletiva e política genocida, eu não vou falar em fascismo, eu não vou falar nada disso. Longe de mim também dizer que atualmente o nosso governo não tem mais compromisso algum com a verdade, que dirá com essas ONGs e com esses rankings, ainda mais ONGs estrangeiras, que, de olho nos nossos tão bem cuidados bens nacionais, resolveram distorcer dados em suas pesquisas imorais cheias de viés ideológico, feitas para pôr abaixo a nossa tão linda e tão bem arquitetada soberania nacional. Eu não vou dizer pega fogo cabaré, por exemplo.

(Fragmento de Trava bruta)