leandro faria lelo

São Paulo - SP

Fragmento Teatral

Luma: E que paz eu tenho sendo quem eu sou agora? (pausa longa.) Me dá um cigarro, vai. (Ísis acende um cigarro, fuma e eventualmente o coloca na boca de Luma.) Vamos também. A gente se converte. Aceita esse modo de vida deles. Não pode ser pior do que isso que a gente tem aqui.

Ísis: Você tá falando sério mesmo?

Luma: (convencendo a si mesmo.) É claro que eu tô. Nem todos eles são ruins. A maioria é boa. Só acreditaram nas pessoas erradas.

Ísis: Então é isso? Vai se entregar, se curar e arrumar uma mulher?

Luma: Eu não preciso me casar. O problema deles não é esse. Se me casar, melhor, mas a verdade é que ninguém se importa com quem a gente trepa. Ninguém suporta é a ideia de conviver com as diferenças. Eles matam os negros porque não têm como descolorir a cor da pele deles. Porque se pudessem, eles deixariam todos brancos. O que importa é não ser gay na rua, não sair do armário, não dar pinta, não querer convencer ninguém de que ser gay é normal. Nada diferente deles é normal. (pausa histérica, crise de choro.) Que merda é essa que eu tô falando?

Ísis: Você vai me entregar pra convencer seus amigos de que se curou?

Luma: Claro que não. Me solta, vai. Pode soltar. Confia em mim.

Ísis: (começando a desamarrar Luma.) Pronto, vai.

Eles se olham. Depois Luma o beija.
Ísis desamarra Luma.

Ísis: Pronto, pode ir. (Pausa.) Vai. 

Luma começa a tirar a roupa masculina.

Ísis: Eu não te entendo, Luma.

Luma: Fala de novo.

Ísis: Fala o quê?

Luma: Meu nome.

Ísis: Luma, Luma! (Luma abraça Ísis por algum tempo, depois se afasta.) Por que você fez isso?

Luma: Porque você salvou a minha vida. Eu não ia conseguir me entregar, me converter. Eu não posso fazer isso.

Ísis: Então não faz. A gente é o que é, Luma. Pode ser o governo que for, ninguém pode tirar isso da gente, contra a nossa vontade... (Luma chora.)

Auto falante: (com ruídos de manifestação, tiros, “vibe” anos 60.) A movimentação é grande em todos os currais do país. Nossos homens de bem estão extirpando, na bala, o mal trazido por esses hereges degenerados. São as balas do senhor! Um aleluia para os nossos irmãos. Aleluia. Vamos desinfetar, de vez, nossa nação. Vamos levar a dignidade e os bons costumes de volta a todos os cantos deste país. Porque agora, somos os Estados Ungidos do Brasil.

Mantém ruídos.

Ísis: É isso daí que o país virou. (Olham-se.) É isso daí que a gente virou.

Luma: E agora, o que a gente faz?

(Fragmento de Subcutâneo)

Leandro Faria Lelo é dramaturgo, ator e diretor teatral.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Mais conhecido pelos seus trabalhos como ator e diretor nos palcos sul-mato-grossenses, Leandro Faria Lelo traçou em paralelo um caminho pela escrita dramatúrgica. Uma carreira que soma mais de duas décadas, iniciada na sua cidade natal Paranaíba, interior de Mato Grosso do Sul. Motivado pelo anseio de buscar profissionalização na área teatral, partiu para São Paulo em 1996, onde cursou por três anos Direção Teatral na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), sem concluir; mais tarde, em 2003, se formou no curso de Interpretação na Escola de Arte Dramática (EAD-ECA/USP). Depois de uma longa temporada de atuação na capital paulista, retornou para onde tudo começou, seu chão de origem, em 2010.

Como ator, trabalhou em diversos projetos no teatro e no audiovisual em São Paulo e em Campo Grande. Sua mais recente atuação foi como protagonista no longa-metragem Vento seco (2020), um drama queer com direção de Daniel Nolasco.

O seu percurso com a escrita dramatúrgica surgiu muito atrelado aos processos formativos, quando começou a desenvolver a Oficina Teatral de Criação e Montagem, projeto realizado em parceria com Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, entre 2010 a 2018, em Campo Grande. Como proposta metodológica, as(os) participantes da oficina experimentavam todas as etapas da criação cênica, da construção do texto às apresentações ao público. Na condução dos experimentos, e a partir da escuta para as temáticas e possibilidades de materiais para a dramaturgia, Leandro foi se apropriando como artista-professor-dramaturgo. Em 2010, assina a autoria e direção de Ensaio da loucura, como resultado do trabalho com a primeira turma da oficina. Na sequência, embala na criação de outras dramaturgias: 20 e poucos heróis..., O Santo Milagreiro, Salve-se quem puder, Os amadores, Olimpíadas e No centro da própria engrenagem.

Nesses trabalhos, Leandro começa a mirar seu olhar para as questões sociais e políticas, como um artista conectado aos acontecimentos e discussões do seu tempo. Em O Santo Milagreiro (2013), reconstrói a história de muitos brasileiros que peregrinam para as cidades grandes em busca de “um sonho de vida” [ainda uma realidade nos tempos atuais]. A visão de que o que está “lá” tem sempre o “gramado mais verde e mais fértil”. Uma família sai de uma cidade do interior de Mato Grosso do Sul rumo à capital, para encontrar um “santo milagreiro”, desvelando as camadas da desigualdade social disfarçada dessa incansável busca do ser humano por uma “vida melhor”. A construção dramatúrgica se guia pela sequência dos acontecimentos e das adversidades durante toda a viagem da família até chegar na capital, quase como uma odisseia. Com uma linguagem completamente coloquial, as falas dos personagens se assemelham ao modo como muitas pessoas do interior sul-mato-grossense costumam falar.

Outra faceta de Leandro está na interface entre teatro e literatura, que se deve, em parte, pelo trabalho como professor de teatro e, em outra, pela posterior graduação em Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), em 2014. Os estudos da literatura originaram processos de adaptação de textos literários para a dramaturgia ou serviram como disparadores para a criação. Sua montagem de Inocência (2012), por exemplo, dramaturgia inspirada no romance de Visconde de Taunay, que tem como pano de fundo o sertão de Mato Grosso, teve grande repercussão, ficando em cartaz para o público escolar e público espontâneo em diversas programações no estado. 

Também nessa interseção com a literatura, escreve A mitológica vida do homem mais ou menos ou O concílio das más intenções (2018). Nesse texto, propõe um formato de dramaturgia que se orienta por um deslocamento espacial das cenas. Ou seja, as rubricas indicam que as cenas podem acontecer em lugares distintos ou em movimento, dos atores e do público, revelando a sua particularidade de pensar a dramaturgia em relação com o espaço. Cria uma narrativa que costura tempos e espaços, entre um passado mais distante e um presente não completamente demarcado, o nascimento de um anti-herói inspirado em Macunaíma. A ideia de um ser herói meio às avessas, sem caráter, uma figura política que é construída e desconstruída pela sociedade e pela mídia. A mídia, aqui, é um dos eixos determinantes na narrativa, na medida em que opera como moduladora dos acontecimentos, com a aparição de personagens jornalistas e influencers digitais.

A presença das mídias, dos meios de comunicação e de influência, está presente também em Subcutâneo (2016), que se passa em um Brasil de 2027, um país que deixa de ser laico e persegue as minorias, principalmente pessoas negras e homossexuais, com objetivo de “cura”, de “conversão”. Nesse futuro distópico, no que se transformou em Estados Ungidos do Brasil, duas personagens, que não são nem homens nem mulheres, (sobre)vivem em um pequeno esconderijo para escapar dos “anjos da morte”. Um alto falante funciona como um comunicador único, obrigatório e absoluto (fica ligado 24 horas, sem a opção de desligar; o acesso à internet já não existe), que intercala os boletins de notícias emitidos pelo governo, orações e alertas para as coisas censuradas, como bebidas e calças jeans apertadas, [que se converteram em símbolos da perversão moral]. Um contexto em que se decide pela extinção de todas as possibilidades de existência livre, de existência diversa.

Sem esconder a inspiração pelos trabalhos dos dramaturgos brasileiros Plínio Marcos e Nelson Rodrigues, no que se refere à crueza dos fatos e a construção de climas, Leandro Faria Lelo se lança nas investigações de como a sociedade tem reagido a diferentes conjunturas sociais, políticas e econômicas, e a tentativa constante de apagamento das diferenças.

Carin Louro

Leandro Faria Lelo é dramaturgo, ator e diretor teatral.

Mais conhecido pelos seus trabalhos como ator e diretor nos palcos sul-mato-grossenses, Leandro Faria Lelo traçou em paralelo um caminho pela escrita dramatúrgica. Uma carreira que soma mais de duas décadas, iniciada na sua cidade natal Paranaíba, interior de Mato Grosso do Sul. Motivado pelo anseio de buscar profissionalização na área teatral, partiu para São Paulo em 1996, onde cursou por três anos Direção Teatral na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), sem concluir; mais tarde, em 2003, se formou no curso de Interpretação na Escola de Arte Dramática (EAD-ECA/USP). Depois de uma longa temporada de atuação na capital paulista, retornou para onde tudo começou, seu chão de origem, em 2010.

Como ator, trabalhou em diversos projetos no teatro e no audiovisual em São Paulo e em Campo Grande. Sua mais recente atuação foi como protagonista no longa-metragem Vento seco (2020), um drama queer com direção de Daniel Nolasco.

O seu percurso com a escrita dramatúrgica surgiu muito atrelado aos processos formativos, quando começou a desenvolver a Oficina Teatral de Criação e Montagem, projeto realizado em parceria com Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, entre 2010 a 2018, em Campo Grande. Como proposta metodológica, as(os) participantes da oficina experimentavam todas as etapas da criação cênica, da construção do texto às apresentações ao público. Na condução dos experimentos, e a partir da escuta para as temáticas e possibilidades de materiais para a dramaturgia, Leandro foi se apropriando como artista-professor-dramaturgo. Em 2010, assina a autoria e direção de Ensaio da loucura, como resultado do trabalho com a primeira turma da oficina. Na sequência, embala na criação de outras dramaturgias: 20 e poucos heróis..., O Santo Milagreiro, Salve-se quem puder, Os amadores, Olimpíadas e No centro da própria engrenagem.

Nesses trabalhos, Leandro começa a mirar seu olhar para as questões sociais e políticas, como um artista conectado aos acontecimentos e discussões do seu tempo. Em O Santo Milagreiro (2013), reconstrói a história de muitos brasileiros que peregrinam para as cidades grandes em busca de “um sonho de vida” [ainda uma realidade nos tempos atuais]. A visão de que o que está “lá” tem sempre o “gramado mais verde e mais fértil”. Uma família sai de uma cidade do interior de Mato Grosso do Sul rumo à capital, para encontrar um “santo milagreiro”, desvelando as camadas da desigualdade social disfarçada dessa incansável busca do ser humano por uma “vida melhor”. A construção dramatúrgica se guia pela sequência dos acontecimentos e das adversidades durante toda a viagem da família até chegar na capital, quase como uma odisseia. Com uma linguagem completamente coloquial, as falas dos personagens se assemelham ao modo como muitas pessoas do interior sul-mato-grossense costumam falar.

Outra faceta de Leandro está na interface entre teatro e literatura, que se deve, em parte, pelo trabalho como professor de teatro e, em outra, pela posterior graduação em Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), em 2014. Os estudos da literatura originaram processos de adaptação de textos literários para a dramaturgia ou serviram como disparadores para a criação. Sua montagem de Inocência (2012), por exemplo, dramaturgia inspirada no romance de Visconde de Taunay, que tem como pano de fundo o sertão de Mato Grosso, teve grande repercussão, ficando em cartaz para o público escolar e público espontâneo em diversas programações no estado. 

Também nessa interseção com a literatura, escreve A mitológica vida do homem mais ou menos ou O concílio das más intenções (2018). Nesse texto, propõe um formato de dramaturgia que se orienta por um deslocamento espacial das cenas. Ou seja, as rubricas indicam que as cenas podem acontecer em lugares distintos ou em movimento, dos atores e do público, revelando a sua particularidade de pensar a dramaturgia em relação com o espaço. Cria uma narrativa que costura tempos e espaços, entre um passado mais distante e um presente não completamente demarcado, o nascimento de um anti-herói inspirado em Macunaíma. A ideia de um ser herói meio às avessas, sem caráter, uma figura política que é construída e desconstruída pela sociedade e pela mídia. A mídia, aqui, é um dos eixos determinantes na narrativa, na medida em que opera como moduladora dos acontecimentos, com a aparição de personagens jornalistas e influencers digitais.

A presença das mídias, dos meios de comunicação e de influência, está presente também em Subcutâneo (2016), que se passa em um Brasil de 2027, um país que deixa de ser laico e persegue as minorias, principalmente pessoas negras e homossexuais, com objetivo de “cura”, de “conversão”. Nesse futuro distópico, no que se transformou em Estados Ungidos do Brasil, duas personagens, que não são nem homens nem mulheres, (sobre)vivem em um pequeno esconderijo para escapar dos “anjos da morte”. Um alto falante funciona como um comunicador único, obrigatório e absoluto (fica ligado 24 horas, sem a opção de desligar; o acesso à internet já não existe), que intercala os boletins de notícias emitidos pelo governo, orações e alertas para as coisas censuradas, como bebidas e calças jeans apertadas, [que se converteram em símbolos da perversão moral]. Um contexto em que se decide pela extinção de todas as possibilidades de existência livre, de existência diversa.

Sem esconder a inspiração pelos trabalhos dos dramaturgos brasileiros Plínio Marcos e Nelson Rodrigues, no que se refere à crueza dos fatos e a construção de climas, Leandro Faria Lelo se lança nas investigações de como a sociedade tem reagido a diferentes conjunturas sociais, políticas e econômicas, e a tentativa constante de apagamento das diferenças.

Carin Louro

Luma: E que paz eu tenho sendo quem eu sou agora? (pausa longa.) Me dá um cigarro, vai. (Ísis acende um cigarro, fuma e eventualmente o coloca na boca de Luma.) Vamos também. A gente se converte. Aceita esse modo de vida deles. Não pode ser pior do que isso que a gente tem aqui.

Ísis: Você tá falando sério mesmo?

Luma: (convencendo a si mesmo.) É claro que eu tô. Nem todos eles são ruins. A maioria é boa. Só acreditaram nas pessoas erradas.

Ísis: Então é isso? Vai se entregar, se curar e arrumar uma mulher?

Luma: Eu não preciso me casar. O problema deles não é esse. Se me casar, melhor, mas a verdade é que ninguém se importa com quem a gente trepa. Ninguém suporta é a ideia de conviver com as diferenças. Eles matam os negros porque não têm como descolorir a cor da pele deles. Porque se pudessem, eles deixariam todos brancos. O que importa é não ser gay na rua, não sair do armário, não dar pinta, não querer convencer ninguém de que ser gay é normal. Nada diferente deles é normal. (pausa histérica, crise de choro.) Que merda é essa que eu tô falando?

Ísis: Você vai me entregar pra convencer seus amigos de que se curou?

Luma: Claro que não. Me solta, vai. Pode soltar. Confia em mim.

Ísis: (começando a desamarrar Luma.) Pronto, vai.

Eles se olham. Depois Luma o beija.
Ísis desamarra Luma.

Ísis: Pronto, pode ir. (Pausa.) Vai. 

Luma começa a tirar a roupa masculina.

Ísis: Eu não te entendo, Luma.

Luma: Fala de novo.

Ísis: Fala o quê?

Luma: Meu nome.

Ísis: Luma, Luma! (Luma abraça Ísis por algum tempo, depois se afasta.) Por que você fez isso?

Luma: Porque você salvou a minha vida. Eu não ia conseguir me entregar, me converter. Eu não posso fazer isso.

Ísis: Então não faz. A gente é o que é, Luma. Pode ser o governo que for, ninguém pode tirar isso da gente, contra a nossa vontade... (Luma chora.)

Auto falante: (com ruídos de manifestação, tiros, “vibe” anos 60.) A movimentação é grande em todos os currais do país. Nossos homens de bem estão extirpando, na bala, o mal trazido por esses hereges degenerados. São as balas do senhor! Um aleluia para os nossos irmãos. Aleluia. Vamos desinfetar, de vez, nossa nação. Vamos levar a dignidade e os bons costumes de volta a todos os cantos deste país. Porque agora, somos os Estados Ungidos do Brasil.

Mantém ruídos.

Ísis: É isso daí que o país virou. (Olham-se.) É isso daí que a gente virou.

Luma: E agora, o que a gente faz?

(Fragmento de Subcutâneo)