A produção de textos para o teatro em Belém do Pará, felizmente, ignora os impasses enfrentados por pessoas de teatro, especialmente, os escritores das dramaturgias amazônidas. Dentre os jovens dramaturgos contemporâneos, em contínua produção, Kauan Amora – ator, diretor, dramaturgo, pesquisador na área de arte, cultura, religião e linguagens, com ênfase em teatro – vem se destacando com uma escrita visceral. Seus temas provocam, questionam sistemas e normas vigentes, sejam as religiosas ou sociais, a exemplo da peça Madre dos Anjos Caídos (2021), inspirada no livro Os demônios de Loudun (1952), de Aldous Huxley e nos filmes Madre Joana dos anjos (1961) e Os demônios (1971). A personagem madre superiora Joana assume a tentação, o desejo, as fantasias proporcionadas pela chegada do atraente padre Urban Grandier. Suas confissões incentivam as outras freiras a entrarem em seus rituais de dança sensual, tanto para demonstrar a liberdade de seus corpos em movimentos quanto para questionar o lugar da moral sagrada e cerceadora dos sentimentos e emoções femininas. Kauan, assim a define:
“Santa Joana dos Anjos utiliza a possessão demoníaca como uma alegoria para a emancipação feminina contra a ordem patriarcal. Inspirado no caso das freiras ursulinas supostamente possuídas pelo demônio, na cidade de Loudun, no século XVII, que marcou o imaginário da França moderna, esta também é uma história de amor pela experiência da abjeção, pela condição feminina e pelo pensamento crítico. O ato mais rebelde e desobediente destas freiras foi lutar por si mesmas, pelos seus pensamentos e por autonomia em um mundo infectado pelo homem.”
Guardadas as proporções, tema atualíssimo em nossos dias, ainda convivemos com as violências contra as mulheres, seja no sentido psicológico, físico, até a morte que as perseguem pelos instintos de companheiros desequilibrados. A importância da peça é, além da montagem artística, manter a reflexão sobre esse horror imposto às mulheres que ousam ser.
Em Nada. Depois, nada., com o intuito de homenagear o encenador Luís Otávio Barata e reanimar as questões que ele levava ao teatro (como erotismo, arte e religião), o autor retrata personagens marcantes da trilogia composta por Genet − o palhaço de Deus (1987), Posição pela carne (1989) e Em nome do amor (1990): Genet, Zaratustra, Heliogábalo e Maria Madalena. Estes retornam a fim de anunciarem o nascimento de um novo homem, uma nova ética e uma nova erótica. O título enigmático da peça – escrita em 2019 e ainda não encenada – é o mesmo de um texto que Luís Otávio Barata deixou inacabado por ocasião de sua morte. Nesta fala de uma das personagens, percebe-se o tom da crítica aos ressentidos que, ao perseguirem suas “vítimas”, negam seus demônios.
“Dandara – Eles passaram a vida me perseguindo, mas não era a mim que queriam perseguir. Orquestrados por uma força ressentida muito maior, esses lacaios do ressentimento me seguiram pelo olfato adoecido. Eles passaram a vida tentando me matar, mas não era a mim que queriam exterminar. Era algo dentro deles, algo sem nome, sem rosto. Algo muito mais profundo. Eles cessaram a minha vida, mas aquilo que represento sempre existiu e sempre vai existir. Mataram, pois, só o corpo. Não a ideia.”
Todos os personagens e suas falas retratam o inconformismo com as imposições, as injustiças, os julgamentos e, paralelamente, várias falas trazem alento, indicações de como se deveria viver e, ao mesmo tempo, na fala do personagem Genet, uma declaração enfática sobre o contraditório amor ao teatro.
“Aqui, criei espetáculos, fiz amizades e viajei o mundo. O teatro foi meu lamento e minha oração. Sempre uma arte destrutiva, sempre escrita no vento. Ele deve ser uma atividade artística voltada para a reorganização da sensibilidade do seu público. Vi nele uma extensão da minha vida. Sofri muito, mas amei demais. É assim que o teatro deve ser: zona de guerra. É assim que a vida deve ser.”
Na peça, O avestruz, o autor, ironicamente coloca em cena, ou melhor, na fila da agência bancária, um avestruz. As inúmeras “pessoas parecem se incomodar, mas não questionam a sua presença”:
HOMEM (na fila) – Isso é um... avestruz?
MULHER (na sua frente) – Sim! Ele está aqui há horas.
HOMEM – E ninguém fez nada ainda?
MULHER – É melhor nem fazer. Uma hora ele vai embora.
HOMEM (furioso) – Esse animal não deveria estar aqui.
MULHER – Meu filho, você tem noção de quanto esses animais correm? Ele pode destruir isso aqui e matar todo mundo.
HOMEM – Se ninguém se importa, eu que não vou me importar também. Só vim aqui lavar minha mão. Aquele caixa lava mão?
MULHER – Lava. Ainda agora estava sacando também, mas o avestruz acabou bicando algumas peças do teclado.
HOMEM (sai da fila e passa furioso olhando para o avestruz que permanece quieto na fila) – Tu não tinhas que estar aqui, não, rapaz. Vou chamar o zoológico!
Se, por um lado, o teatro deve reorganizar a sensibilidade do público, dever ser, ainda, zona de guerra. Pois bem, nessa zona de guerra é que Kauan Amora mergulha, ao escrever e publicar esses textos, ele reitera a necessidade de uma das funções das artes, a da irreverência crítica e, por que não, propositiva. Para demonstrar um pouco da escrita desse jovem dramaturgo, o fragmento da peça Uma flor sobre o abismo aponta para a visão crítica-niilista sobre o ser humano, ao colocar em cena personagens históricos e a figura de Jesus em volta da crueldade enfrentada pelo personagem negro. Este pede ajuda e, por todos, é ignorado.
Bene Martins