Cria de Japeri, Juliana França é uma artista que não fala sozinha. Sua trajetória no teatro está entrelaçada à do Grupo Código, iniciativa que ocupa um lugar central na sua prática artística e que também foi a sua escola de formação cidadã. Ao apresentar seu trabalho, a artista faz questão de nomear aqueles e aquelas que vieram antes dela. De intelectuais renomados, como Beatriz Nascimento e Milton Santos, a Ivy Penha, atriz de longa trajetória da Baixada Fluminense, Juliana também reverencia uma das criadoras do Grupo Código, a atriz e professora Rita Diva, ex-secretária de cultura de Japeri, que faleceu por complicações da Covid em abril de 2021. Sua fala é feita de escuta.
Nomear suas referências é importante porque uma das chaves de sua dramaturgia é a lida com a memória – a memória como construção, como trabalho a fazer, não como uma fantasmagoria que pode estar ou não estar à disposição. Em seu trabalho como artista de teatro, Juliana França se pergunta sobre as imagens que já estão lançadas no mundo e se provoca a produzir outras imagens, um gesto fundamental para a construção de uma memória que não se deixa pautar pelo imaginário da historiografia branca. Para conhecer as suas criações dramatúrgicas, é preciso pensar em corpo e coletividade como instrumentos de criação e de textualidade.
Foi o trabalho com o Código que motivou a artista na sua vocação acadêmica. Licenciada e Mestra em Filosofia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, atuou como professora de filosofia no Ensino Médio durante seis anos. Interessada nos pormenores dos processos criativos, Juliana estudou os processos do filósofo francês Gilles Deleuze e, num segundo momento, no mestrado, pesquisou os processos de criação de Antonin Artaud, especializando-se em Filosofia da Arte.
Uma das peças de sua trajetória que pode ser apontada como criação dramatúrgica é a montagem de Inimigo do povo, realizada em 2009 com direção de Bruno Medsta e com a colaboração da atriz e diretora Miwa Yanagizawa. O grupo assina a dramaturgia coletivamente, sem que cada integrante esteja nomeado na função. No entanto, as dramaturgias coletivas precisam figurar também nas narrativas individuais, até mesmo para que se possa entender o trabalho de criação dramatúrgica como uma atividade mais complexa e dialógica do que aquela que se vislumbra na ideia de “autor” (assim mesmo, no masculino singular), ligada a uma escrita solitária, isolada e anterior à sala de ensaio.
No espetáculo, que recebeu mais de 30 prêmios em festivais do Rio e de outros estados do Brasil, um drama burguês é transformado em crônica de uma cidade periférica, com intenso trabalho de recriação do texto. Enquanto, no drama de Ibsen, o povo é apenas mencionado nos diálogos, na versão do Código, o povo é protagonista, propositor das ações, representado por personagens individualizados, com nome próprio, corpos femininos em posições de liderança (fazendo personagens masculinos no texto original) e em franca interação com a plateia. Assim, a noção de cidade que aparece na peça tem as características de Japeri.
Naquele instante, de 2014, é outro trabalho coletivo de dramaturgia, mas realizado com um grupo mais reduzido e, aparentemente, com mais espaço para as individualidades criativas. Depois da experiência com o drama moderno, sua pesquisa se aproxima do teatro documentário e da experimentação com o hiper-realismo nas atuações. Com dramaturgia e encenação coletivas, o grupo segue em interlocução com Miwa Yanagizawa, desta vez interagindo também com a professora e pesquisadora Denise Espírito Santo, que convidou o grupo para participar de um Projeto de Extensão da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, chamado Zonas de Contato, o que significou uma aproximação com o trabalho performativo. Esse projeto proporcionou uma virada na noção de teatro do grupo e da artista, quando ela se deu conta, na prática, que poderia fazer teatro politicamente engajado falando de si, colocando em cena as suas próprias narrativas. Na peça, as personagens rememoram a infância nos anos 1990 e a adolescência nos anos 2000, traçando seus percursos de formação na Baixada nesses momentos históricos.
Trata-se de uma experiência dramatúrgica bastante diferente da anterior. O espetáculo tem uma dramaturgia aberta, organizada em tópicos, com abertura para improvisação e participação do público, que compartilha com os artistas o espaço do palco. Assim se verticaliza a relação de interação com plateia, que já estava em pauta em Inimigo do povo. A materialidade dos arquivos pessoais é constitutiva da dramaturgia: fotografias impressas, envelhecidas, em álbuns já considerados antigos, CDs, cartas escritas à mão. Esse apelo tátil fala de uma noção de texto indissociável da cena, da performatividade dos documentos, das atuações e do aporte pessoal e autoral de cada um dos atuantes. No desfecho, artistas e espectadores partilham comidas e bebidas. Essa “cena” é parte fundamental da dramaturgia, mas sua dimensão convivial não aparece no papel.
Entre diversos trabalhos como atriz e intensa participação nas atividades do Código e da Rede Baixada em Cena, o ano de 2020 e o isolamento provocado pela pandemia colaboram para uma criação autoral decisiva, a performance de curta duração Mais de 3 no cômodo, com colaboração de Jéssica Meireles. O trabalho foi motivado por uma reportagem publicada nos primeiros meses da pandemia, que colocava em evidência a sua realidade familiar, inserida em um contexto mais amplo, ressaltada pela emergência sanitária e com ênfase no seu território. O artigo revelava que em mais de 300 mil casas no estado do Rio de Janeiro, dormem mais de três pessoas no mesmo cômodo. No caso de Japeri, essa é a condição de 14% dos lares.
Diante das recomendações de isolamento social, a artista começou a traçar um painel histórico com recorte racial (afinal, Japeri é uma cidade majoritariamente negra) e social (a maior parte das mortes por Covid tem se dado entre pessoas pobres) para entender as aglomerações históricas pelas quais seus ancestrais passaram. Ao observar as imagens de navios negreiros e a pintura dos séculos XVIII e XIX nos arquivos históricos, ela formula a pergunta nuclear de suas iniciativas dramatúrgicas atuais: que estratégias seus ancestrais criaram para viver?
Assim ela materializa o início da pesquisa sobre o conceito de corpo-diáspora, tomando o corpo como território de invenção, de agência e de fabulação. Mais uma vez, como em Naquele instante, a materialidade das fotografias impressas de infância aparece como arquivo que performa presença de memória e como registro de aglomeração como aquilombamento, fortalecimento e comemoração de pertencimento ao território. Não por acaso, a performance acontece na cozinha, lugar de invenção e afeto. O lugar é dramaturgia, tanto quanto as palavras e a partitura corporal carregada do imaginário de terreiro, cuja textualidade é uma episteme que escapa à primazia ocidental da língua escrita.
Em 2021, a artista escreve Até (a)onde vão suas raízes?, peça para crianças em que a personagem central faz uma viagem no tempo na companhia de Exu. A jornada é cheia de lacunas, mas preenchida de imaginação: uma aventura pelo tempo espiralar e pela história dos arquivos apagados, pautada pela brincadeira e pela festa dos encontros. Os trabalhos de Juliana França são exemplos de uma dramaturgia que entende memória e território como tecnologias ancestrais, ferramentas propulsoras de processos criativos, tecnologias que precisam ser fomentadas desde cedo, no quintal de casa. Ou no teatro, como têm feito outros atores/dramaturgos atuantes no Rio de Janeiro dedicados às poéticas negras, criando peças para a infância e a juventude, com dramaturgias originais ou adaptadas, como Tatiana Henrique (Nuang – Caminhos da liberdade), Lázaro Ramos (Boquinha… e assim surgiu o mundo), Rodrigo França (O pequeno príncipe preto), Junior Dantas e Cristina Moura (O pequeno herói preto), Verônica Bonfim (A menina Akili e seu tambor falante, o musical). No entrelaçamento entre a memória e o território, está a inteligência que reconstitui a história pelo preenchimento inventivo das lacunas.
Daniele Avila Small