juliana capilé

Cuiabá - MT

Fragmento Teatral

CENA 11: Mudar a cidade.

DIDI – Eu queria mesmo era inventar alguma coisa que ninguém nunca inventou, sabia? Pensar alguma coisa que seja importante.

GOGO – Escreve um livro.

DIDI(Pausa.) Sobre o quê?

GOGO – Sobre isso tudo.

DIDI – Isso tudo, o quê?

GOGO – Isso! Isso tudo!

DIDI – Ah, mas ninguém precisa saber disso.

GOGO – Precisa sim.

DIDI – Você acha?

GOGO – Claro!

DIDI – Não concordo.

GOGO(Pausa longa.) Está bem. (Silêncio.) Não concorda?

DIDI – Não.

GOGO – Está bem. (Silêncio.) Eu acho que ele devia estar usando cinto de segurança e por isso não aconteceu nada com ele. O motorista do caminhão também estava de cinto.

DIDI – E o gado? Também?

GOGO – É. (Pausa.) Tem alguma coisa aí pra gente comer? (Didi procura no seu bolso e encontra algo. Come e não oferece ao Gogo.) Mas o gado tem quatro patas, ou seja, mais chance de ficar firme no chão da carreta, não é? E devia estar cheia a carreta, e um gado encostou-se ao outro e todos se imprensaram, de modo que não caiu nenhum e ficaram todos bem. A carne que deve ter ficado macia de tanto apertarem. Ou não. Podem ter ficado tão tensos que eu não vou querer topar com esse bife.

Didi não responde. Está comendo.

GOGO – A gente podia falar de outra coisa. Vamos refazer a lista de coisas a fazer com o dinheiro! Daqui a pouco sai o resultado. Cadê a lista? Precisamos pensar em mais coisas, porque é muito dinheiro pra gastar.

DIDI – Se a gente ganhar.

GOGO – O que é isso? (Puxa a corda de Didi.) Perdendo a fé? Não acho bom você ficar duvidando.

DIDI – Com esse dinheiro eu vou mudar a cidade.

GOGO – Você quer dizer ‘mudar de cidade’.

DIDI – Não. Mudar a cidade.

GOGO(Pausa longa.) Vamos jogar separado, em números diferentes.

DIDI – Jogar separado?

GOGO – Nós dois ganharemos o prêmio integral.

DIDI(Pausa rápida.) E se você ganhar e eu não? O que você vai fazer?

GOGO – Como?

DIDI(Gira a máquina para direita.) Você vai fazer o quê?

GOGO – Responda você. O que você vai fazer?

DIDI - Eu perguntei primeiro.

GOGO – Ora essa! Farei o que qualquer um faria no meu lugar!

DIDI - E o que qualquer um faria?

GOGO – Você sabe muito bem, porque você faria também!

DIDI – Eu?

GOGO(Gira a máquina para esquerda.) Sim, você, e não se faça de desentendido numa hora dessas!

DIDI – Eu não estou me fazendo de desentendido; eu realmente não entendi.

GOGO – Não entendeu o quê? Não tem nada para entender!

DIDI – Não entendi nada disso que você falou!

GOGO – Por que não entendeu? Não estamos falamos a mesma língua?

DIDI – Não sei! Que língua é essa que você fala?

GOGO – A minha língua, ora essa!

DIDI – Mas eu falo na minha!

GOGO – Então é isso. (Para.)

DIDI – Que dia é esse?

GOGO – Quinta-feira. Não. Terça-feira.

DIDI – Acho que é domingo.

GOGO – Mas quanto tempo falta para sair o resultado?

DIDI – Pouco. (Pausa longa.)

CENA 12: O rádio.

DIDI – Ele morreu?

GOGO – Não. Mas tem um urubu comendo sua carne.

DIDI – Não está mais sozinho. (Ri.) Liga o rádio aí.

GOGO – Pra quê?

DIDI – Pra gente ouvir!

GOGO – Não.

DIDI – Não o quê?

GOGO – Não vou ligar o rádio.

DIDI – Por que não?

GOGO – Porque eu não posso.

DIDI – Não pode ligar o rádio?

GOGO – Não.

DIDI(Espera uma explicação.)

GOGO – Não tem pilha!

DIDI – Então joga fora!

GOGO – Por quê? Só porque não tem pilha eu vou jogar fora?

DIDI – Claro! De que serve um rádio que não toca?

GOGO – O rádio é meu. Eu decido para que ele serve!

DIDI – Tudo bem. Consegue pilha, então.

GOGO – Por que você está tão interessado assim no meu rádio?

DIDI – Pra que eu ia querer um rádio que não funciona?

GOGO – Para ter um rádio!

DIDI – Quando eu ganhar esse jogo eu vou comprar muitos rádios.

GOGO – Mas, enquanto não ganha, fica querendo o meu!

DIDI – Eu não quero o seu rádio!

GOGO – Pareceu que queria. Tomando até decisões sobre o que fazer com ele!

DIDI – Eu dei minha opinião.

GOGO – Muito cuidado com suas opiniões.

DIDI – Só pensei em ouvir algo enquanto esperamos.

GOGO – Vai ter que ouvir outra coisa. Poderíamos conversar.

DIDI – Conversar o quê?

GOGO – Conversar para esperar. (Pausa.) “Quem espera sempre alcança.”

DIDI– Sim.

GOGO - “Antes tarde do que nunca”

DIDI – Certo.

GOGO - “A esperança é a última que morre”.

DIDI(Quase gritando.) Está certo.

GOGO – “Depressa e bem não há quem”. “A pressa é inimiga da perfeição”; “Devagar se vai ao longe”; “Não há nada como um dia depois do outro”; “Apressado come cru”; “Os últimos são sempre os primeiros”; “Quem ri por último, ri melhor”; “A espera é uma virtude dos fortes”; “Quanto mais depressa mais devagar”. Algum resultado do jogo?

DIDI – Ainda não.

GOGO – Então vamos esperar.

(Fragmento de Cidade dos Outros)

Juliana Capilé é atriz, diretora e dramaturga. É integrante da Cia. Pessoal de Teatro e realizadora do Núcleo de Pesquisas Teatrais – Encontros Possíveis. Cuiabá / MT - Holstebro / Dinamarca

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Juliana Capilé começou sua formação em Ouro Preto, Minas Gerais, onde cursou Direção Teatral na Universidade Federal de Ouro Preto e criou a Companhia Pessoal de Teatro em 2001, que mantém até hoje junto com a atriz e pesquisadora Tatiana Horevicht. É mestra e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso e formadora convidada no curso de Dramaturgia na MT Escola de Teatro da Universidade do Estado de Mato Grosso.

Sempre ligada à pesquisa e ao pensamento do fazer teatral e dramatúrgico, tem ministrado oficinas de dramaturgia, roteiro e técnicas de montagem de espetáculos há quase duas décadas. Recentemente, Juliana tem desdobrado suas habilidades na escrita de roteiros e direção de obras audiovisuais, como o curta-metragem premiado O menino e o ovo, de 2020.

Um dos trabalhos mais conhecidos de Juliana é Cidade dos outros, que estreou em 2010 e circulou por várias cidades, aldeias e quilombos através de projetos de circulação como Palco Giratório, Circula MT e Amazônia das Artes. O espetáculo, montado pela Companhia Pessoal de Teatro, figura como uma marca importante para a difusão do teatro mato-grossense no cenário nacional. Na montagem, além da dramaturgia, Juliana contracena com Tatiana Horevicht, dirigidas por Amauri Tangará, outro nome de relevante referência no teatro de Mato Grosso.

Inspirado no universo de Beckett, a trama se desenvolve a partir da relação de dois personagens que fazem planos do que poderiam comprar caso ganhassem na loteria. Em um ritmo lento e melancólico, a obra se propõe a refletir sobre a espera constante pelas coisas surpreendentes capazes de gerar transformações na vida. A espera é a ação, é o mote da peça. Enquanto esperam, famintos pela realização do sonho, os personagens conversam sobre banalidades e manipulam uma máquina. Nesse círculo de conformação da espera, várias camadas vão se revelando sobre uma sociedade que preza pelo consumo e a crescente desigualdade social. Uma realidade de muitas pessoas que se sentem impotentes, incapazes, sem forças para agir e reagir, e permanecem apenas olhando para uma “cidade dos outros”, sem condições e sem fôlego de pertencer.

Além de integrar o Movimento de Teatro MT, Juliana é realizadora do Núcleo de Pesquisas Teatrais – Encontros Possíveis, projeto encabeçado pela sua companhia e que nas suas oito edições passou por cidades como Cuiabá, Primavera do Leste e Chapada dos Guimarães, sendo a primeira edição em 2009 e a última em 2015. O Núcleo foi um seminário com ações de formação e intercâmbio com a participação de diversos artistas e grupos nacionais e internacionais, como Eugenio Barba e Odin Teatret, como uma forma de traçar conexões entre o teatro mato-grossense e os cenários nacional e internacional.

Em 2017, a Companhia Pessoal de Teatro foi selecionada como grupo residente do Nordisk Teaterlaboratorium, do grupo Odin, na Dinamarca. Juliana escreveu EntreNãoLugares, em 2019, com colaboração de Julia Varley. No texto, duas mulheres catadoras de papel contam histórias relacionadas a viagens e migrações. Uma narrativa não linear, nem dramática, atravessada pela jornada de Ulisses com seu sonho de chegar à ilha de Itaca e por traços de memórias das origens familiares de Juliana e da atriz Tatiana Horevicht. Como se fossem vários retalhos de histórias que em alguns momentos parece que vão se juntar numa mesma trama, ou não. A montagem, realizada em coprodução com o Nordisk Teaterlaboratorium, teve direção de Julia Varley e estreou na Dinamarca. Nesse trabalho, é evidente a relação do texto com as ações físicas, desvelando aspectos de uma pesquisa que vai se orientando por uma dramaturgia que transita entre o textual e o físico.

Essa investigação por uma dramaturgia física começou antes. Criame, de 2018, é inspirada no texto As criadas, de Jean Genet. Um estudo anterior sobre a obra de Genet resultou na escritura do texto Criadouro, de 2004. Com a ideia de uma nova versão, uma nova roupagem, Juliana cria uma dramaturgia física, sem diálogos verbais, com partituras de ação e música original. Nas palavras de Juliana: "O tempo todo o texto pautou o que fazíamos em cena, mas optamos por não o usar em cena". A dramaturgia, portanto, opera na conjunção das composições de dramaturgia do corpo e dos demais elementos cênicos.

Atravessada pela estética do teatro do absurdo, em suas inspirações e interlocuções com autores como Beckett e Jean Genet, a escrita de Juliana abarca uma espécie de emaranhado de decadências, de um non sense da humanidade. Na dimensão existencial, é construída por meio da ação desses personagens, trabalhadores industriais, catadoras de papel, funcionárias domésticas, que, afetados pelas ruínas e violências sociais, espraiam os espaços vazios, os silêncios, o que não é dito.

O trabalho de Juliana Capilé se configura como uma presença potencializadora do teatro mato-grossense. Por sua atuação não só como dramaturga, mas também como atriz, diretora e como uma pessoa que realiza, pesquisa e pensa o fazer teatral e a artesania da escrita dramatúrgica contemporâneos.   

Carin Louro

Juliana Capilé é atriz, diretora e dramaturga. É integrante da Cia. Pessoal de Teatro e realizadora do Núcleo de Pesquisas Teatrais – Encontros Possíveis. Cuiabá / MT - Holstebro / Dinamarca

Juliana Capilé começou sua formação em Ouro Preto, Minas Gerais, onde cursou Direção Teatral na Universidade Federal de Ouro Preto e criou a Companhia Pessoal de Teatro em 2001, que mantém até hoje junto com a atriz e pesquisadora Tatiana Horevicht. É mestra e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso e formadora convidada no curso de Dramaturgia na MT Escola de Teatro da Universidade do Estado de Mato Grosso.

Sempre ligada à pesquisa e ao pensamento do fazer teatral e dramatúrgico, tem ministrado oficinas de dramaturgia, roteiro e técnicas de montagem de espetáculos há quase duas décadas. Recentemente, Juliana tem desdobrado suas habilidades na escrita de roteiros e direção de obras audiovisuais, como o curta-metragem premiado O menino e o ovo, de 2020.

Um dos trabalhos mais conhecidos de Juliana é Cidade dos outros, que estreou em 2010 e circulou por várias cidades, aldeias e quilombos através de projetos de circulação como Palco Giratório, Circula MT e Amazônia das Artes. O espetáculo, montado pela Companhia Pessoal de Teatro, figura como uma marca importante para a difusão do teatro mato-grossense no cenário nacional. Na montagem, além da dramaturgia, Juliana contracena com Tatiana Horevicht, dirigidas por Amauri Tangará, outro nome de relevante referência no teatro de Mato Grosso.

Inspirado no universo de Beckett, a trama se desenvolve a partir da relação de dois personagens que fazem planos do que poderiam comprar caso ganhassem na loteria. Em um ritmo lento e melancólico, a obra se propõe a refletir sobre a espera constante pelas coisas surpreendentes capazes de gerar transformações na vida. A espera é a ação, é o mote da peça. Enquanto esperam, famintos pela realização do sonho, os personagens conversam sobre banalidades e manipulam uma máquina. Nesse círculo de conformação da espera, várias camadas vão se revelando sobre uma sociedade que preza pelo consumo e a crescente desigualdade social. Uma realidade de muitas pessoas que se sentem impotentes, incapazes, sem forças para agir e reagir, e permanecem apenas olhando para uma “cidade dos outros”, sem condições e sem fôlego de pertencer.

Além de integrar o Movimento de Teatro MT, Juliana é realizadora do Núcleo de Pesquisas Teatrais – Encontros Possíveis, projeto encabeçado pela sua companhia e que nas suas oito edições passou por cidades como Cuiabá, Primavera do Leste e Chapada dos Guimarães, sendo a primeira edição em 2009 e a última em 2015. O Núcleo foi um seminário com ações de formação e intercâmbio com a participação de diversos artistas e grupos nacionais e internacionais, como Eugenio Barba e Odin Teatret, como uma forma de traçar conexões entre o teatro mato-grossense e os cenários nacional e internacional.

Em 2017, a Companhia Pessoal de Teatro foi selecionada como grupo residente do Nordisk Teaterlaboratorium, do grupo Odin, na Dinamarca. Juliana escreveu EntreNãoLugares, em 2019, com colaboração de Julia Varley. No texto, duas mulheres catadoras de papel contam histórias relacionadas a viagens e migrações. Uma narrativa não linear, nem dramática, atravessada pela jornada de Ulisses com seu sonho de chegar à ilha de Itaca e por traços de memórias das origens familiares de Juliana e da atriz Tatiana Horevicht. Como se fossem vários retalhos de histórias que em alguns momentos parece que vão se juntar numa mesma trama, ou não. A montagem, realizada em coprodução com o Nordisk Teaterlaboratorium, teve direção de Julia Varley e estreou na Dinamarca. Nesse trabalho, é evidente a relação do texto com as ações físicas, desvelando aspectos de uma pesquisa que vai se orientando por uma dramaturgia que transita entre o textual e o físico.

Essa investigação por uma dramaturgia física começou antes. Criame, de 2018, é inspirada no texto As criadas, de Jean Genet. Um estudo anterior sobre a obra de Genet resultou na escritura do texto Criadouro, de 2004. Com a ideia de uma nova versão, uma nova roupagem, Juliana cria uma dramaturgia física, sem diálogos verbais, com partituras de ação e música original. Nas palavras de Juliana: "O tempo todo o texto pautou o que fazíamos em cena, mas optamos por não o usar em cena". A dramaturgia, portanto, opera na conjunção das composições de dramaturgia do corpo e dos demais elementos cênicos.

Atravessada pela estética do teatro do absurdo, em suas inspirações e interlocuções com autores como Beckett e Jean Genet, a escrita de Juliana abarca uma espécie de emaranhado de decadências, de um non sense da humanidade. Na dimensão existencial, é construída por meio da ação desses personagens, trabalhadores industriais, catadoras de papel, funcionárias domésticas, que, afetados pelas ruínas e violências sociais, espraiam os espaços vazios, os silêncios, o que não é dito.

O trabalho de Juliana Capilé se configura como uma presença potencializadora do teatro mato-grossense. Por sua atuação não só como dramaturga, mas também como atriz, diretora e como uma pessoa que realiza, pesquisa e pensa o fazer teatral e a artesania da escrita dramatúrgica contemporâneos.   

Carin Louro

CENA 11: Mudar a cidade.

DIDI – Eu queria mesmo era inventar alguma coisa que ninguém nunca inventou, sabia? Pensar alguma coisa que seja importante.

GOGO – Escreve um livro.

DIDI(Pausa.) Sobre o quê?

GOGO – Sobre isso tudo.

DIDI – Isso tudo, o quê?

GOGO – Isso! Isso tudo!

DIDI – Ah, mas ninguém precisa saber disso.

GOGO – Precisa sim.

DIDI – Você acha?

GOGO – Claro!

DIDI – Não concordo.

GOGO(Pausa longa.) Está bem. (Silêncio.) Não concorda?

DIDI – Não.

GOGO – Está bem. (Silêncio.) Eu acho que ele devia estar usando cinto de segurança e por isso não aconteceu nada com ele. O motorista do caminhão também estava de cinto.

DIDI – E o gado? Também?

GOGO – É. (Pausa.) Tem alguma coisa aí pra gente comer? (Didi procura no seu bolso e encontra algo. Come e não oferece ao Gogo.) Mas o gado tem quatro patas, ou seja, mais chance de ficar firme no chão da carreta, não é? E devia estar cheia a carreta, e um gado encostou-se ao outro e todos se imprensaram, de modo que não caiu nenhum e ficaram todos bem. A carne que deve ter ficado macia de tanto apertarem. Ou não. Podem ter ficado tão tensos que eu não vou querer topar com esse bife.

Didi não responde. Está comendo.

GOGO – A gente podia falar de outra coisa. Vamos refazer a lista de coisas a fazer com o dinheiro! Daqui a pouco sai o resultado. Cadê a lista? Precisamos pensar em mais coisas, porque é muito dinheiro pra gastar.

DIDI – Se a gente ganhar.

GOGO – O que é isso? (Puxa a corda de Didi.) Perdendo a fé? Não acho bom você ficar duvidando.

DIDI – Com esse dinheiro eu vou mudar a cidade.

GOGO – Você quer dizer ‘mudar de cidade’.

DIDI – Não. Mudar a cidade.

GOGO(Pausa longa.) Vamos jogar separado, em números diferentes.

DIDI – Jogar separado?

GOGO – Nós dois ganharemos o prêmio integral.

DIDI(Pausa rápida.) E se você ganhar e eu não? O que você vai fazer?

GOGO – Como?

DIDI(Gira a máquina para direita.) Você vai fazer o quê?

GOGO – Responda você. O que você vai fazer?

DIDI - Eu perguntei primeiro.

GOGO – Ora essa! Farei o que qualquer um faria no meu lugar!

DIDI - E o que qualquer um faria?

GOGO – Você sabe muito bem, porque você faria também!

DIDI – Eu?

GOGO(Gira a máquina para esquerda.) Sim, você, e não se faça de desentendido numa hora dessas!

DIDI – Eu não estou me fazendo de desentendido; eu realmente não entendi.

GOGO – Não entendeu o quê? Não tem nada para entender!

DIDI – Não entendi nada disso que você falou!

GOGO – Por que não entendeu? Não estamos falamos a mesma língua?

DIDI – Não sei! Que língua é essa que você fala?

GOGO – A minha língua, ora essa!

DIDI – Mas eu falo na minha!

GOGO – Então é isso. (Para.)

DIDI – Que dia é esse?

GOGO – Quinta-feira. Não. Terça-feira.

DIDI – Acho que é domingo.

GOGO – Mas quanto tempo falta para sair o resultado?

DIDI – Pouco. (Pausa longa.)

CENA 12: O rádio.

DIDI – Ele morreu?

GOGO – Não. Mas tem um urubu comendo sua carne.

DIDI – Não está mais sozinho. (Ri.) Liga o rádio aí.

GOGO – Pra quê?

DIDI – Pra gente ouvir!

GOGO – Não.

DIDI – Não o quê?

GOGO – Não vou ligar o rádio.

DIDI – Por que não?

GOGO – Porque eu não posso.

DIDI – Não pode ligar o rádio?

GOGO – Não.

DIDI(Espera uma explicação.)

GOGO – Não tem pilha!

DIDI – Então joga fora!

GOGO – Por quê? Só porque não tem pilha eu vou jogar fora?

DIDI – Claro! De que serve um rádio que não toca?

GOGO – O rádio é meu. Eu decido para que ele serve!

DIDI – Tudo bem. Consegue pilha, então.

GOGO – Por que você está tão interessado assim no meu rádio?

DIDI – Pra que eu ia querer um rádio que não funciona?

GOGO – Para ter um rádio!

DIDI – Quando eu ganhar esse jogo eu vou comprar muitos rádios.

GOGO – Mas, enquanto não ganha, fica querendo o meu!

DIDI – Eu não quero o seu rádio!

GOGO – Pareceu que queria. Tomando até decisões sobre o que fazer com ele!

DIDI – Eu dei minha opinião.

GOGO – Muito cuidado com suas opiniões.

DIDI – Só pensei em ouvir algo enquanto esperamos.

GOGO – Vai ter que ouvir outra coisa. Poderíamos conversar.

DIDI – Conversar o quê?

GOGO – Conversar para esperar. (Pausa.) “Quem espera sempre alcança.”

DIDI– Sim.

GOGO - “Antes tarde do que nunca”

DIDI – Certo.

GOGO - “A esperança é a última que morre”.

DIDI(Quase gritando.) Está certo.

GOGO – “Depressa e bem não há quem”. “A pressa é inimiga da perfeição”; “Devagar se vai ao longe”; “Não há nada como um dia depois do outro”; “Apressado come cru”; “Os últimos são sempre os primeiros”; “Quem ri por último, ri melhor”; “A espera é uma virtude dos fortes”; “Quanto mais depressa mais devagar”. Algum resultado do jogo?

DIDI – Ainda não.

GOGO – Então vamos esperar.

(Fragmento de Cidade dos Outros)