A quantas dramaturgias indígenas você teve acesso? Juão Nyn é um multiartista potiguara, nascido no Rio Grande do Norte, estado com menor autodeclaração indígena do Brasil de acordo com dados de 2010 do IBGE. Formado na primeira turma de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Nyn faz parte do coletivo Estopô Balaio e da Cia. de Arte Teatro Interrompido. É também compositor e vocalista da banda Androyde Sem Par, e ativista e comunicador da Articulação dos Povos Indígenas do Rio Grande do Norte.
Em 2020, Juão Nyn publicou Tybyra – uma tragédia indígena brasileira pelo selo doburro, numa edição com ilustrações de Denilson Baniwa. A dramaturgia é uma ficção a partir de um fato histórico: a execução por tiro de canhão de um indígena tupinambá por soldados franceses, acusado de sodomia em 1614, em São Luís do Maranhão. O texto foi escrito como uma resposta ao capítulo “Do índio condenado à morte que pediu o batismo antes de morrer”, do livro Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614, do frade francês capuchinho Yves d’Évreux (1577-1632).
Se nos registros oficiais o assassinato foi contado sob a perspectiva do colonizador europeu, na dramaturgia de Nyn a voz é da ancestralidade do corpo dissidente TLGBs+ (Travestis, transexuais, lésbicas, gays, bissexuais, cuir, não bináries, intersexuais). No texto bilíngue, traduzido para tupi-guarani moderno por Luã Apyka, a palavra indígena tem vez. Tybyra está sempre em diálogo com outro(s) alguém(s), mas não há respostas escritas. Essas réplicas são imaginadas a cada questionamento de Tybyra sobre, por exemplo, os motivos que levaram à sua condenação, a hipocrisia dos que detém o poder ou o aculturamento de indígenas.
Esse diálogo que não se completa pela ausência da palavra do outro pode se configurar em uma conversa com o silêncio, que Nyn diz ser uma das sete vogais do tupi-guarani na introdução do livro, ou talvez um diálogo direto com o leitor-espectador: quem sabe cúmplice simbólico do assassinato? Uma leitura dramática de Tybyra, com direção de Renato Carrera, está disponível on-line na plataforma digital TePI – Teatro e os Povos Indígenas desde dezembro de 2021, mas o texto ainda não foi encenado.
Uma das especificidades dessa dramaturgia é a coloquialidade no discurso de Tybyra, que privilegia o jeito de falar nordestino com expressões características da região, algumas delas de influência indígena. Há também palavras indígenas incorporadas ao texto. No livro, Nyn montou um glossário explicando o significado de expressões e palavras que possam ser menos conhecidas.
A publicação possui também uma introdução-manifesto. O dramaturgo explica a troca dos “i”s por y na grafia das palavras. De acordo com Nyn, “y” é uma vogal sagrada na língua tupi-guarani. E essa linguagem que ele intitula de “potyguês” questiona, entre outras coisas, a ausência de ensino nas escolas das línguas nativas – são mais de 247 línguas indígenas no Brasil. “Potyguês é um manyfesto lyteráryo e se aproprya do alfabeto grego latyno para fazer uma demarcação Yndýgena Potyguara no Português; ydyoma este que veyo nas caravelas de Portugal, assym como o Espanhol, da Espanha, e o Ynglês, da Ynglaterra, e que não são, obvyamente, oryundos daquy”. Em 2019, o artista já havia lançado o álbum Ruýnas, da banda Androyde Sem Par, em potyguês.
O manifesto aborda ainda a pauta da demarcação de terras indígenas e vai além: “É possývel demarcar terrytóryos sem demarcar ymagynáryos?”. A dramaturgia de Juão Nyn é uma tentativa de avançar nessa demarcação trazendo à cena discussões que ampliam os debates sobre as questões indígenas, agregando perspectivas como as questões de gênero e as migrações que, inclusive, atravessam a vivência do artista.
Há oito anos, Nyn se divide entre Natal e São Paulo, onde trabalha com o Estopô Balaio, grupo que estabeleceu sede no Jardim Romano, bairro do extremo da Zona Leste, e foi formado por artistas migrantes do Rio Grande do Norte. No Estopô, assinou a dramaturgia de A cidade dos rios invisíveis (2014), em parceria com Ana Carolina Marinho e João Batista Júnior. A peça, que começa numa linha de trem e promove uma ida dos espectadores do Brás, na região Central de São Paulo, ao Jardim Romano é uma das mais reconhecidas da companhia, vencedora do Prêmio Shell na categoria inovação.
O dramaturgo escreveu também Um pouco de inferno (2012), as performances Xawara-Deus das doenças ou troca injusta (2015) e Brotaremos da desertificação (2016), e o texto voltado para infância e juventude A lagarta e o camaleão (2021). Há cerca de quatro anos, o artista trabalha com indígenas na terra indígena Piaçaguera, no Litoral Sul de São Paulo, colaborando com a criação de Mar à vista, espetáculo ainda inédito. A proposta é que a montagem seja falada em tupi-guarani-ñandeva, encenada na praia, promovendo uma experiência ritualística e imersiva aos espectadores. A peça trata sobre a realidade dos povos nativos antes da chegada dos colonizadores, numa intenção que inclui, por exemplo, conscientizar os indígenas mais jovens sobre a importância do aprendizado das línguas nativas.
Pollyanna Diniz