A escrita de João Turchi é a produção de um corpo que participa, argumenta, reivindica, contextualiza e gera os arquivos da própria experiência. João compõe simultaneamente com elementos da intenção e da aleatoriedade ao participar de uma cena em processo e a seu modo documentá-la, produzindo um arquivo de palavras, uma rubricagem. Nas criações mais recentes em colaboração com o grupo brasiliense Teatro do Concreto – como Festa de Inauguração (2019) e Se eu falo é porque você está aí (2020) – e com o grupo paulistano MEXA – como o filme-performance Cancioneiro Terminal e a peça Quanto mais ensaia pior fica (2021) –, João participa do processo criativo na sala de ensaio, em interação com as atrizes e as equipes de trabalho.
Nascido em Goiânia, chegou a São Paulo – cidade em que vive atualmente – para estudar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo, onde também se formaram dramaturgos como José Celso Martinez Corrêa e Hilda Hilst. O autor define sua escrita a partir do modo como a pratica – como um dramaturgo-etnógrafo. Esta noção, assim como a noção de rubricagem, foram desenvolvidas por João na pesquisa de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da USP, em 2016, sob orientação da pesquisadora Elisabeth Lopes.
A trajetória acadêmica de João acontece de modo concomitante à sua prática artística. Na frutífera colaboração com o diretor Francis Wilker, além dos textos criados para o Teatro do Concreto, escreveu Todas as ruas têm nome de homem (2016), do grupo capixaba Confraria de Teatro. No grupo MEXA, coletivo artístico fundado após episódios de violência em centros de acolhida em São Paulo, desenvolveu as dramaturgias 69 Salas H&V (2016), Terminal 10 mg (2018) e Conversa para boy dormir (2021), além das já citadas Cancioneiro Terminal e Quanto mais ensaia pior fica. Consciente da performatividade dos arquivos que produz, a dramaturgia de João cria imagens e fluxos de fala em diferentes modos de discurso, e teoriza abertamente, articulando os argumentos e os afetos mobilizados no processo de dizer o texto. São obras para falar e para ouvir.
A discussão em torno do arquivo no campo do teatro e a utilização do modo de discurso argumentativo inserem a dramaturgia de João no território da palestra-performance. A peça Se eu falo é porque você está aí foi transmitida ao vivo durante a programação da segunda edição do Complexo Sul, projeto sob coordenação da crítica teatral Daniele Ávila dedicado ao estudo deste território emergente. Se eu falo é porque você está aí é uma obra de teatro filmado que nos apresenta um jogo entre episódios que marcaram a história política do país desde a inauguração da nova capital; obras que não existem mais criadas por artistas pioneiros na investigação das relações entre o teatro e o espaço urbano em Brasília (como Mangueira Diniz e Hugo Rodas); e memórias das atrizes.
Já Festa de inauguração, escrito um ano antes, tematiza a criação de Brasília sob uma perspectiva decolonialista, revisando narrativas e documentos desamparados pelas estruturas de poder. A dramaturgia da peça parte de uma frase encontrada na laje do Salão Verde do Congresso Nacional durante a reforma em 2011. Escrita pelo operário José da Silva Guerra, a frase foi deixada lá durante a construção do prédio e continha os seguintes dizeres: “Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra”. Não há personagens: o texto organiza as falas pelos nomes das próprias atrizes e atores. A noção de personagem sequer interessa tanto, seja em seu aspecto literário, seja no aspecto de sua tradição psicológica. O modo de discurso do texto dispensa a criação de fábulas, ao contrário, reforça sua performatividade e atribui à palavra caráter necessariamente político – como na cena de Gleide Firmino com a certidão de nascimento, ou na cena em que Micheli Santini palestra sobre a pornografia.
Ao assumir a participação e a invenção de arquivos como duas chaves de criação para os textos, João aproxima seus procedimentos do campo da performance e das artes visuais. Apresenta, assim, um resultado estético de natureza híbrida que, ao mesmo tempo em que duvida da teatralidade, provoca-a a revisar certas convenções no modo de compor com a palavra em cena. Fazendo rubricagem, procedimento do dramaturgo-etnógrafo, João entende que a palavra é capaz de inventar arquivos que produzam camadas de acesso à experiência de participação. É a curiosidade pelo outro e o desejo de estar junto e criar linguagem que levam João a produzir dramaturgia para intervir na memória.
Glauber Coradesqui