2º objeto catalogado
Dois corpos petrificados juntos pela lava do Vesúvio
Número de tombo: 2019.(DIA).(MÊS).(HORA)
Gleide: Isso não é uma estátua, perceba. Existe gente dentro de dois corpos petrificados, enlaçados pelos braços um do outro, ainda que seja impossível chegar a qualquer conclusão além de serem humanos e terem morrido juntos. Quem olha pode desejar que eles dormissem quando a lava do vulcão chegou, que sua morte não tenha sido em nada diferente de qualquer sono, dormir é mesmo morrer um pouco a cada noite. Pode imaginar que esse é um abraço de combate e que o vulcão só tenha adiantado uma outra morte. Ou que eles nunca tenham se visto e que esse encontro seja um engano, um acidente gravado pra sempre. Que eles foram arrastados pela lava de pontos distintos da cidade, e que, já sem vida, se colado num abraço defunto. Nem tudo que não se move tá morto.
Micheli: Eu vejo Pompeia sendo engolida pela lava do vulcão. Antes eu vejo o encontro entre duas placas tectônicas e depois a lava transformando a paisagem num museu de cera congelado pelo fogo. Eu vejo muitos abraços congelados pelo fogo de Pompeia. E quando eu olho para essa imagem, eu vejo em Brasília, congelando a natureza pra um futuro que nunca chega. Eu penso que tudo acontece por acaso. Até as palavras, que nascem com um acidente.
nuvem de palavras projetadas preenche o cenário.
Discurso
Linguagem
Privilégio
Protesto
Movimento
Ocupação
Invasão
Censura
Fascismo
Ditadura
Representatividade
Afeto
Rede
Alteridade
Alicerce
Antídoto
Coletividade
Notícia
Imprensa
Proibição
Mito
Realidade
Verdade
Justiça
Maioridade
Púlpito
Teleprompter
Ponto
Circulação
Impeachment
Golpe
Judiciário
Separação de
poderes
Narrativa
Incentivo
Exército
Instância
Supremo
Isenção
Nulo
Abstenção
Bandeira
Liberdade
Igualdade
Cientista
Direitos Humanos
ONG
Consumo
Desinformação
Panfletagem
Estelionato
Governante
Representante
Proporcionalidade
Câmara
Anúncio
Início
Cadeira
Comissão
Comitiva
Relações
Internacionais
Segurança
Participação
Opinião
Controvérsia
Convencimento
Gleide: É como se agora o ar estivesse pesado do tanto de palavra que a gente já falou. Uma nuvem de palavra em cima das nossas cabeças. Sempre me surpreende que a gente não se engasgue com elas.
Micheli: São também acidentes que fazem algumas palavras aparecerem, como pornografia, por exemplo. A palavra pornografia surgiu quando descobriram Pompeia. No início, eles fizeram um museu com tudo o que acharam, porque era incrível descobrir uma cidade inteira debaixo de um terreno que parecia abandonado. Milhares de pessoas foram até lá, porque a gente tem obsessão pelas ruínas, eu sei, mas quanto mais preservada uma ruína, maior a nossa obsessão. Eles continuaram escavando, esse foi o problema, porque, depois de determinada profundidade, começaram a aparecer estátuas inesperadas, uma cabra penetrando outra cabra, sendo penetrada por um homem, sendo penetrado por uma mulher com pênis, muitos pênis gigantes, muitos homens com pênis gigantes em orgias. A primeira ideia que passou pelas cabeças deles foi “agora eu entendi porque o império romano declinou”, o império romano declinou porque virou um bacanal. Mas era tudo muito histórico pra ser simplesmente destruído, por isso criaram um museu secreto, chamava assim, o museu secreto, onde colocaram todas essas imagens que eles não tinham coragem de destruir, mas que também não podiam ser vistas por ninguém. E aí é que surge a palavra pornografia, pra indicar o que pode e o que não pode ser visto.
Gleide: Todo controle é, especialmente, um controle de palavras, arquivos e corpos. Até o nome das estátuas podem ser trocados, Dioniso pra Baco, imperador pra tirano, herói pra assassino e de novo pra herói e depois pra qualquer outra forma de esquecimento. Isso pode parecer pouco, mas não é, quando se renomeia uma estátua, tudo o mais também muda.
Diego: Até os teatros podem se tornar um espaço pra ensaio de guerra.
(Fragmento de Festa de inauguração)