jhonny salaberg

São Paulo - SP

Fragmento Teatral

6. PAVILHÃO
Rose tricota a touca de lã.

Rose: Dona Glória foi embora, a festa de mêsversário terminou e eu estou com as chaves do portão. Eu preciso seguir o combinado. Atravesso o pavilhão gelado, o frio chegou junto com as horas. Sigo pra minha cela tentando manter o coração quieto dentro do peito. Lembro do meu filho engatinhando no desenho da bandeira do Brasil já desgastado do chão do pátio e sorrio pras colunas. Às vezes acho que sou doida, ou ao menos que estou ficando em parcelas, em anos. Chego na cela e Fátima alimenta a cria deitada na cama com o seio esquerdo de fora. Ao lado, uma bolsa de enxoval azul abarrotada de fraldas, cobertor e roupas dos dois. Nada digo. Subo a beliche, tiro as chaves de dentro da touca com cuidado e continuo a tricotar. Fátima canta uma música de ninar e eu coreografo minhas mãos a cada dobra de melodia, de ponto em ponto, tricotando as voltas da touca de lã. Finalizo o serviço e agarro a touca em meu peito. Adormeço como um canavieiro que dorme em cima da cana-de-açúcar. Sonho com meus umbigos livres, leves e soltos num campo verde, cheio de árvores grandes. Telefones coloridos pendurados nas árvores tocam sem parar, eu corro e tento atender todos que posso. São muitos: grandes, pequenos, gordos e magros. Sinto um amor enorme por todos eles, meus umbigos e os telefones. A última vez que vi meus umbigos, eles eram muito pequenos, quase que semente, feijão, fiapo de cabelo. Agora estão grandes, mas não vejo olhos, boca, nariz, orelha de nenhum. Há uma grande nuvem embasada em seus rostos. Mas eu os amo mesmo assim, sem o DNA-espelho da função mãe de que fui empregada. Os telefones continuam tocando e eu corro pra atender. Quando finalmente consigo atender um deles, acordo com a Fátima batendo no estrado da minha cama do lado de baixo da beliche. Olho pra baixo e ela me fita com tanta certeza no fundo dos olhos que sinto que entrou dentro de mim. Chegou a hora! Entrego a touca com o molho de chaves dentro e observo ela cruzar a cela lentamente com o bebê em um braço e a bolsa no outro. Fátima me olha e espreme os olhos, me lembrando do combinado. Já passa das nove horas e o pavilhão sopra um silêncio ensurdecedor. O jogo virou e as seleções estão em empate. Todos os guardas do pavilhão estão nos cantos, ouvindo o jogo no rádio com fones de ouvido. A tensão está no ar! Mas o combinado segue firme e forte. No fundo, escondido dos olhos e orelhas, em códigos escritos em fraldas e mamadeiras, todas as mães sabem que Fátima se vai hoje. Todas fazem o mínimo de silêncio pra que tudo saia como o combinado. Todas as mães colocam seus bebês pra dormir no mesmo horário e acordar na hora certa. Tudo está detalhadamente planejado. Deitada na cama, olho pro teto apreensiva, tomando cuidado pra não adormecer ou deixar que os meus pensamentos façam festa em minha cabeça. Preciso ouvir o estalar das chaves do portão de trás, esse é o sinal da noite! Enquanto isso, tento me lembrar de coisas que me fazem feliz, como os telefonemas de 15 minutos que faço pros meus filhos toda semana. Eu vi meus filhos crescerem pelo telefone. Vi não, ouvi. Das existências, agora conheço somente a voz. Eu cuido dos meus filhos por telefone. Ouço suas pernas sonoras esticarem e suas liberdades aflorarem. Ouvi a gargalhada do menino aos dois anos de idade, o abecedário da menina aos quatro e a gripe dos dois no último Natal. Mas foi no mês passado que ouvi a profusão com as sílabas ao dizerem “saudade”. Senti o tempo pesar sobre minhas orelhas. “Saudade só existe aqui, né mãe? Só a gente tem saudade e ninguém mais”, disse a Júlia sobre o dever de casa, me ensinando que a palavra saudade só existe no português. Mas a saudade também tem no meu coração, língua estrangeira do pavilhão. Meus filhos foram embora sem data, e eu aqui datada e presa. Toda semana eu aguardo ansiosamente os meus quinze minutos de telefone pra ir ao parque, à escola, à casa da avó materna e da avó paterna. Grudada no telefone, também cuido da nossa casa, faço comida, dou banho e ajudo com os deveres de casa. Tudo em quinze minutos! Parece pouco, mas aqui dentro é muito. Se um dia eu sair daqui, eu levo o telefone junto.

(Fragmento de Parto pavilhão)

Jhonny Salaberg é ator e dramaturgo. Cofundador do grupo de teatro negro O Bonde.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Na dramaturgia de Jhonny Salaberg, o real, o cotidiano e o fato histórico são perfurados por dimensões mito-poéticas e simbólicas, fazendo com que a realidade concreta seja decupada em tempos, imagens e espaços impregnados de metáforas. O próprio autor identifica, em sua obra, certos traços de um realismo fantástico ou, diríamos, de um real maravilhoso, no qual a esfera habitual, ordinária ou comum é atravessada por percepções e acontecimentos insólitos, imprevistos. Em seus textos, a sistemática atrocidade do racismo e do sexismo, a criminalização das populações negras e a formação escravocrata do Brasil não são encarados pela ótica determinista, como uma tragédia social inelutável. Pelo contrário, os seus escritos dão a ver personagens, discursos e visualidades em constante (e urgente) busca por fabular uma outra realidade fora dos marcos discriminatórios e excludentes. As criações dramatúrgicas de Salaberg não perdem, defronte a um mundo racista, sanguinolento e ainda colonial, a capacidade de nos fazer futurar, isto é, imaginarmos outras relações humanas, outros tempos.

Nascido na zona leste, periferia de São Paulo, Jhonny Salaberg é dramaturgo, ator e professor. Além de já ter participado da Carcaça de Poéticas Negras, é, atualmente, membro fundador d’O Bonde, companhia teatral formada em 2017, cujas bases artísticas residem nas teatralidades negras, no imaginário afro-diaspórico, na engajada postura antirracista e na experimentação cênica. O Bonde é composto por ex-alunos e ex-alunas negros da Escola Livre de Teatro. Como ator, também já colaborou com o Coletivo Estopô Balaio e a Companhia Clandestina, significativos grupos teatrais paulistanos. A vivência periférica e a fecunda experiência com teatros de grupo são outros dois traços que se instalam na dramaturgia de Salaberg. Nos últimos anos a sua obra vem sendo referenciada nacional e internacionalmente.

O jovem é autor da Trilogia da fuga, constituída pelas obras: Mato cheio; Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã e Parto pavilhão. Em linhas gerais, as três peças dramatizam a incessante luta do povo negro pela plena liberdade física, psíquica e cultural em um contexto de profunda desumanização. A fuga, aqui, é um gesto inventivo não apenas para sobreviver, mas para reconstruir o passado, ampliar as possibilidades de existência no presente e desenhar, coletivamente, um porvir alterno. Nesse processo, o escape é igualmente uma estratégia estética que visa esquivar-se de rígidas expectativas acerca do que pode/deve ser um teatro negro, solapando estereótipos, estigmas e imaginários sociais. Toda a sua trilogia está publicada pela coleção Dramaturgia da editora Cobogó.

O primeiro texto, Mato cheio, estreado em 2017 pela Carcaça de Poéticas Negras possui, como pano de fundo histórico, as fugas de homens e mulheres escravizados que, no início do século XIX, rumavam em direção aos quilombos de Santos, no litoral do estado de São Paulo. No caminho, cansados e aflitos, abrigavam-se na Casa do Sítio da Ressaca. Salaberg engendra um texto munido de força imagética. Uma mesma personagem, tripartida em diferentes óticas, vive a angústia existencial, lidando com a desesperança e o medo de ser capturada; uma batalha para afirmar sua humanidade desejante. A dramaturgia, conjugando temporalidades históricas e míticas, é entrecortada pela realidade contemporânea dos atores negros que evocam suas observações, recordações e bagagem vivencial. O mar é o tortuoso emblema da liberdade, local de travessias. Neste aspecto, Mato cheio guarda semelhanças para com o brevíssimo texto teatral Os negros, escrito em 1905 por Lima Barreto. Nesta obra, de teor simbolista, um grupo de escravizados, depois de escaparem da fazenda onde eram explorados, está diante do enigmático mar. Lembranças, temores e sonhos são movidos pelas sonoridades e paisagens marítimas. A densa simbologia (mar, fogo, Iansã-búfalo, Xangô, terra, casa, sal, etc.), também presente em Salaberg, encontra seu ápice na personagem Picita. A lendária mulher negra, griot, senhora de tempos imemoriais, não apenas incendeia os desejos dos fugitivos, como também atua como uma testemunha histórica das transformações sociais e divinais que hão de vir.

Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã é a segunda obra da trilogia. O texto, tecido desde meados de 2016, foi, no ano seguinte, premiado na IV Mostra de Dramaturgia em pequenos formatos cênicos, iniciativa organizada pelo Centro Cultural São Paulo. Na obra, um jovem negro e periférico é brutalmente alvejado pela polícia, consubstanciando uma cortante realidade brasileira, isto é, o genocídio da juventude negra. Porém, o assustado menino insiste em viver. Em sua fuga pela sobrevivência, ele percorre inúmeros tempos e espaços, atravessa magicamente paisagens e localidades distintas, ressignificando, nestes percursos, sua identidade, seus sonhos, seus afetos e sua própria humanidade em um mundo algoz. A dramaturgia desmonta o realismo cru da violência policial por meio de uma cascata de imagens, símbolos e impressões fortemente ambíguas, poéticas. Do início ao fim há, na linguagem dramática, uma tensão entre a brutalidade e a delicadeza, entre a concretude do real e as expansões imaginativas. Nesta odisseia, o corpo negro, ainda que recheado de sangrentos buraquinhos, não perde de vista a capacidade de projetar outros universos. A fuga é deveras travessia criadora. O espetáculo estreou em 2018. É o texto mais premiado do autor.

A última parte da trilogia se encerra com Parto pavilhão, ainda não encenado. Aqui, o dramaturgo se versa sobre as agruras do encarceramento feminino. Este é outro dado alarmante na conjuntura brasileira, em que mais de 60% das presidiárias são negras, reproduzindo, uma vez mais, padrões racistas de seletividade penal. Acompanhamos a trajetória de Rose, jovem mãe aprisionada, que narra em fragmentos o seu dia a dia, sua história e, especialmente, seus ardilosos planos para pôr em prática uma fuga em massa. Parto pavilhão é o texto mais destoante, se o compararmos com os outros dois. A sua linguagem é mais direta, contém menos arroubos metafóricos, embora não careça de sensibilidade. É a partir da perspectiva de Rose que conhecemos as violências racistas e sexistas nas prisões, as dores psicológicas de mães estigmatizadas e obrigadas a abandonar seus filhos, além das delicadas estratégias adotadas para praticar um afeto maternal, mesmo naquelas indignas condições. O esforço para viver a liberdade desejada (e possível) está na base do plano, coordenado por Rose. 

Jhonny Salaberg colaborou ainda com o Coletivo Okan, também de São Paulo, escrevendo a dramaturgia de Todas as centenas de dias que estamos aqui, encenado no formato peça-filme em 2022. A atmosfera insondável, tensa e algo misteriosa articula diversos signos nebulosos para abordar os históricos processos da diáspora negra e da colonização moderna, lançando as personagens em situações enigmáticas que resvalam no terror psicológico. Já em 2021, Salaberg participou da iniciativa Dramaturgias em Processo, proposta pelo Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP), em que foram selecionados 14 projetos dramatúrgicos para serem elaborados em isolamento social. Espuma foi a criação de Salaberg. Dois colhedores de algodão, Tula e Zé, em uma espécie de plantation, resolvem descobrir o que existe depois de um colossal muro que gradualmente cresce. A ambiência é de enclausuramento; tempo e espaço aprisionam as duas figuras, portanto conhecer o que há para além dos limites impostos é uma urgente forma de dar novo sentido à vida e às suas histórias. As repetições e variações (dinâmica presente em outros textos de sua autoria), e, novamente, a dimensão fantástica constroem uma dramaturgia que, em alguns momentos, se aproxima do absurdo beckettiano. 

Jhonny Salaberg vêm, pouco a pouco, construindo uma dramaturgia interessada em revirar poeticamente o real, mantendo, contudo, um contundente compromisso ético e político na reconfiguração das imagens do mundo.

Guilherme Diniz

Jhonny Salaberg é ator e dramaturgo. Cofundador do grupo de teatro negro O Bonde.

Na dramaturgia de Jhonny Salaberg, o real, o cotidiano e o fato histórico são perfurados por dimensões mito-poéticas e simbólicas, fazendo com que a realidade concreta seja decupada em tempos, imagens e espaços impregnados de metáforas. O próprio autor identifica, em sua obra, certos traços de um realismo fantástico ou, diríamos, de um real maravilhoso, no qual a esfera habitual, ordinária ou comum é atravessada por percepções e acontecimentos insólitos, imprevistos. Em seus textos, a sistemática atrocidade do racismo e do sexismo, a criminalização das populações negras e a formação escravocrata do Brasil não são encarados pela ótica determinista, como uma tragédia social inelutável. Pelo contrário, os seus escritos dão a ver personagens, discursos e visualidades em constante (e urgente) busca por fabular uma outra realidade fora dos marcos discriminatórios e excludentes. As criações dramatúrgicas de Salaberg não perdem, defronte a um mundo racista, sanguinolento e ainda colonial, a capacidade de nos fazer futurar, isto é, imaginarmos outras relações humanas, outros tempos.

Nascido na zona leste, periferia de São Paulo, Jhonny Salaberg é dramaturgo, ator e professor. Além de já ter participado da Carcaça de Poéticas Negras, é, atualmente, membro fundador d’O Bonde, companhia teatral formada em 2017, cujas bases artísticas residem nas teatralidades negras, no imaginário afro-diaspórico, na engajada postura antirracista e na experimentação cênica. O Bonde é composto por ex-alunos e ex-alunas negros da Escola Livre de Teatro. Como ator, também já colaborou com o Coletivo Estopô Balaio e a Companhia Clandestina, significativos grupos teatrais paulistanos. A vivência periférica e a fecunda experiência com teatros de grupo são outros dois traços que se instalam na dramaturgia de Salaberg. Nos últimos anos a sua obra vem sendo referenciada nacional e internacionalmente.

O jovem é autor da Trilogia da fuga, constituída pelas obras: Mato cheio; Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã e Parto pavilhão. Em linhas gerais, as três peças dramatizam a incessante luta do povo negro pela plena liberdade física, psíquica e cultural em um contexto de profunda desumanização. A fuga, aqui, é um gesto inventivo não apenas para sobreviver, mas para reconstruir o passado, ampliar as possibilidades de existência no presente e desenhar, coletivamente, um porvir alterno. Nesse processo, o escape é igualmente uma estratégia estética que visa esquivar-se de rígidas expectativas acerca do que pode/deve ser um teatro negro, solapando estereótipos, estigmas e imaginários sociais. Toda a sua trilogia está publicada pela coleção Dramaturgia da editora Cobogó.

O primeiro texto, Mato cheio, estreado em 2017 pela Carcaça de Poéticas Negras possui, como pano de fundo histórico, as fugas de homens e mulheres escravizados que, no início do século XIX, rumavam em direção aos quilombos de Santos, no litoral do estado de São Paulo. No caminho, cansados e aflitos, abrigavam-se na Casa do Sítio da Ressaca. Salaberg engendra um texto munido de força imagética. Uma mesma personagem, tripartida em diferentes óticas, vive a angústia existencial, lidando com a desesperança e o medo de ser capturada; uma batalha para afirmar sua humanidade desejante. A dramaturgia, conjugando temporalidades históricas e míticas, é entrecortada pela realidade contemporânea dos atores negros que evocam suas observações, recordações e bagagem vivencial. O mar é o tortuoso emblema da liberdade, local de travessias. Neste aspecto, Mato cheio guarda semelhanças para com o brevíssimo texto teatral Os negros, escrito em 1905 por Lima Barreto. Nesta obra, de teor simbolista, um grupo de escravizados, depois de escaparem da fazenda onde eram explorados, está diante do enigmático mar. Lembranças, temores e sonhos são movidos pelas sonoridades e paisagens marítimas. A densa simbologia (mar, fogo, Iansã-búfalo, Xangô, terra, casa, sal, etc.), também presente em Salaberg, encontra seu ápice na personagem Picita. A lendária mulher negra, griot, senhora de tempos imemoriais, não apenas incendeia os desejos dos fugitivos, como também atua como uma testemunha histórica das transformações sociais e divinais que hão de vir.

Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã é a segunda obra da trilogia. O texto, tecido desde meados de 2016, foi, no ano seguinte, premiado na IV Mostra de Dramaturgia em pequenos formatos cênicos, iniciativa organizada pelo Centro Cultural São Paulo. Na obra, um jovem negro e periférico é brutalmente alvejado pela polícia, consubstanciando uma cortante realidade brasileira, isto é, o genocídio da juventude negra. Porém, o assustado menino insiste em viver. Em sua fuga pela sobrevivência, ele percorre inúmeros tempos e espaços, atravessa magicamente paisagens e localidades distintas, ressignificando, nestes percursos, sua identidade, seus sonhos, seus afetos e sua própria humanidade em um mundo algoz. A dramaturgia desmonta o realismo cru da violência policial por meio de uma cascata de imagens, símbolos e impressões fortemente ambíguas, poéticas. Do início ao fim há, na linguagem dramática, uma tensão entre a brutalidade e a delicadeza, entre a concretude do real e as expansões imaginativas. Nesta odisseia, o corpo negro, ainda que recheado de sangrentos buraquinhos, não perde de vista a capacidade de projetar outros universos. A fuga é deveras travessia criadora. O espetáculo estreou em 2018. É o texto mais premiado do autor.

A última parte da trilogia se encerra com Parto pavilhão, ainda não encenado. Aqui, o dramaturgo se versa sobre as agruras do encarceramento feminino. Este é outro dado alarmante na conjuntura brasileira, em que mais de 60% das presidiárias são negras, reproduzindo, uma vez mais, padrões racistas de seletividade penal. Acompanhamos a trajetória de Rose, jovem mãe aprisionada, que narra em fragmentos o seu dia a dia, sua história e, especialmente, seus ardilosos planos para pôr em prática uma fuga em massa. Parto pavilhão é o texto mais destoante, se o compararmos com os outros dois. A sua linguagem é mais direta, contém menos arroubos metafóricos, embora não careça de sensibilidade. É a partir da perspectiva de Rose que conhecemos as violências racistas e sexistas nas prisões, as dores psicológicas de mães estigmatizadas e obrigadas a abandonar seus filhos, além das delicadas estratégias adotadas para praticar um afeto maternal, mesmo naquelas indignas condições. O esforço para viver a liberdade desejada (e possível) está na base do plano, coordenado por Rose. 

Jhonny Salaberg colaborou ainda com o Coletivo Okan, também de São Paulo, escrevendo a dramaturgia de Todas as centenas de dias que estamos aqui, encenado no formato peça-filme em 2022. A atmosfera insondável, tensa e algo misteriosa articula diversos signos nebulosos para abordar os históricos processos da diáspora negra e da colonização moderna, lançando as personagens em situações enigmáticas que resvalam no terror psicológico. Já em 2021, Salaberg participou da iniciativa Dramaturgias em Processo, proposta pelo Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP), em que foram selecionados 14 projetos dramatúrgicos para serem elaborados em isolamento social. Espuma foi a criação de Salaberg. Dois colhedores de algodão, Tula e Zé, em uma espécie de plantation, resolvem descobrir o que existe depois de um colossal muro que gradualmente cresce. A ambiência é de enclausuramento; tempo e espaço aprisionam as duas figuras, portanto conhecer o que há para além dos limites impostos é uma urgente forma de dar novo sentido à vida e às suas histórias. As repetições e variações (dinâmica presente em outros textos de sua autoria), e, novamente, a dimensão fantástica constroem uma dramaturgia que, em alguns momentos, se aproxima do absurdo beckettiano. 

Jhonny Salaberg vêm, pouco a pouco, construindo uma dramaturgia interessada em revirar poeticamente o real, mantendo, contudo, um contundente compromisso ético e político na reconfiguração das imagens do mundo.

Guilherme Diniz

6. PAVILHÃO
Rose tricota a touca de lã.

Rose: Dona Glória foi embora, a festa de mêsversário terminou e eu estou com as chaves do portão. Eu preciso seguir o combinado. Atravesso o pavilhão gelado, o frio chegou junto com as horas. Sigo pra minha cela tentando manter o coração quieto dentro do peito. Lembro do meu filho engatinhando no desenho da bandeira do Brasil já desgastado do chão do pátio e sorrio pras colunas. Às vezes acho que sou doida, ou ao menos que estou ficando em parcelas, em anos. Chego na cela e Fátima alimenta a cria deitada na cama com o seio esquerdo de fora. Ao lado, uma bolsa de enxoval azul abarrotada de fraldas, cobertor e roupas dos dois. Nada digo. Subo a beliche, tiro as chaves de dentro da touca com cuidado e continuo a tricotar. Fátima canta uma música de ninar e eu coreografo minhas mãos a cada dobra de melodia, de ponto em ponto, tricotando as voltas da touca de lã. Finalizo o serviço e agarro a touca em meu peito. Adormeço como um canavieiro que dorme em cima da cana-de-açúcar. Sonho com meus umbigos livres, leves e soltos num campo verde, cheio de árvores grandes. Telefones coloridos pendurados nas árvores tocam sem parar, eu corro e tento atender todos que posso. São muitos: grandes, pequenos, gordos e magros. Sinto um amor enorme por todos eles, meus umbigos e os telefones. A última vez que vi meus umbigos, eles eram muito pequenos, quase que semente, feijão, fiapo de cabelo. Agora estão grandes, mas não vejo olhos, boca, nariz, orelha de nenhum. Há uma grande nuvem embasada em seus rostos. Mas eu os amo mesmo assim, sem o DNA-espelho da função mãe de que fui empregada. Os telefones continuam tocando e eu corro pra atender. Quando finalmente consigo atender um deles, acordo com a Fátima batendo no estrado da minha cama do lado de baixo da beliche. Olho pra baixo e ela me fita com tanta certeza no fundo dos olhos que sinto que entrou dentro de mim. Chegou a hora! Entrego a touca com o molho de chaves dentro e observo ela cruzar a cela lentamente com o bebê em um braço e a bolsa no outro. Fátima me olha e espreme os olhos, me lembrando do combinado. Já passa das nove horas e o pavilhão sopra um silêncio ensurdecedor. O jogo virou e as seleções estão em empate. Todos os guardas do pavilhão estão nos cantos, ouvindo o jogo no rádio com fones de ouvido. A tensão está no ar! Mas o combinado segue firme e forte. No fundo, escondido dos olhos e orelhas, em códigos escritos em fraldas e mamadeiras, todas as mães sabem que Fátima se vai hoje. Todas fazem o mínimo de silêncio pra que tudo saia como o combinado. Todas as mães colocam seus bebês pra dormir no mesmo horário e acordar na hora certa. Tudo está detalhadamente planejado. Deitada na cama, olho pro teto apreensiva, tomando cuidado pra não adormecer ou deixar que os meus pensamentos façam festa em minha cabeça. Preciso ouvir o estalar das chaves do portão de trás, esse é o sinal da noite! Enquanto isso, tento me lembrar de coisas que me fazem feliz, como os telefonemas de 15 minutos que faço pros meus filhos toda semana. Eu vi meus filhos crescerem pelo telefone. Vi não, ouvi. Das existências, agora conheço somente a voz. Eu cuido dos meus filhos por telefone. Ouço suas pernas sonoras esticarem e suas liberdades aflorarem. Ouvi a gargalhada do menino aos dois anos de idade, o abecedário da menina aos quatro e a gripe dos dois no último Natal. Mas foi no mês passado que ouvi a profusão com as sílabas ao dizerem “saudade”. Senti o tempo pesar sobre minhas orelhas. “Saudade só existe aqui, né mãe? Só a gente tem saudade e ninguém mais”, disse a Júlia sobre o dever de casa, me ensinando que a palavra saudade só existe no português. Mas a saudade também tem no meu coração, língua estrangeira do pavilhão. Meus filhos foram embora sem data, e eu aqui datada e presa. Toda semana eu aguardo ansiosamente os meus quinze minutos de telefone pra ir ao parque, à escola, à casa da avó materna e da avó paterna. Grudada no telefone, também cuido da nossa casa, faço comida, dou banho e ajudo com os deveres de casa. Tudo em quinze minutos! Parece pouco, mas aqui dentro é muito. Se um dia eu sair daqui, eu levo o telefone junto.

(Fragmento de Parto pavilhão)