A dupla Fernanda Jacob e Tuanny Araújo se conheceram durante o curso de Artes Cênicas na Universidade de Brasília, e o incômodo que partilhavam diante das diversas representações da mulher negra na dramaturgia as conduziu à criação do Grupo Embaraça. Tuanny é atriz, escritora, dramaturga e diretora. Fernanda é atriz, diretora, musicista, dramaturga e diretora musical, protagonizou a peça Dona Ivone Lara – um sorriso negro, pela qual recebeu indicação ao prêmio Bibi Ferreira na categoria “Melhor Atriz em Musicais”. Fernanda e Tuanny são artistas múltiplas e escrevem para tomar as escolhas nos processos de representação para si. Escrever tem uma relevância genuína na afirmação do lugar de fala, um modo de pautar as próprias questões e ao mesmo tempo afirmar a dramaturgia como campo de resistência, a exemplo de Pentes (2013), Afeto (2019) e Ramal 003 (2020).
A dramaturgia do Embaraça retoma e atualiza um debate que vemos se inscrever na linha do tempo do teatro brasileiro desde o Teatro Experimental do Negro – ou talvez desde antes, com a Companhia Negra de Revista: como, quando, onde e em que circunstâncias os corpos e as narrativas da população negra brasileira são representados em cena? E, no caso específico da pesquisa do Embaraça, como as mulheres negras são representadas? Nesta equação, a produção de uma dramaturgia negra autoral, processo que se consolidou lentamente ao longo de todo o século XX e início do XXI, aponta um novo marcador para a revisão dessa linha do tempo.
No Distrito Federal, a história da dramaturgia negra feminina encontra na obra de Cristiane Sobral – escritora, poetisa e primeira atriz negra graduada pela Universidade de Brasília, em 1998 – uma referência política e estética de grande relevância. Sua peça de formatura – o espetáculo Uma boneca no lixo – foi estopim para a criação da Cia. de Teatro Negro Cabeça Feita, cuja pesquisa visa à construção de uma dramaturgia que reposicione a personagem negra no papel de sujeito. Em Uma boneca no lixo, a cruel situação do abandono de uma bebê negra na lata de lixo e seu resgate por uma enfermeira japonesa desdobram-se em uma narrativa de caráter autobiográfico, que coloca em evidência o depoimento pessoal como procedimento de criação.
Pentes é uma obra baseada no depoimento pessoal das dramaturgas-atrizes do Grupo Embaraça. Abordando situações, conflitos e dores que viveram, elas discutem a identidade da mulher negra a partir de seus cabelos crespos. O texto é composto por esquetes, cenas sem diálogo, imagens-flashes, cenas em vídeo e um desejo de incitar, incomodar e levar o público a refletir sobre os mecanismos do racismo na mídia, nas instituições, no mercado de trabalho, na rua, nos concursos de beleza e nos ciclos íntimos – sejam eles familiares ou de amizade. Afeto, por sua vez, debate a solidão feminina negra, que começa a se manifestar na simples escolha de um par para a festa junina.
Os aspectos éticos implicados nas práticas e processos de representação são uma chave de leitura fundamental para a dramaturgia do Embaraça. É certo que tais aspectos se atualizam conforme as tensões político-sociais e as tecnologias disponíveis a cada época. E para não nos demorarmos muito no evidente caráter filosófico que a discussão em torno da ética poderia aportar ao texto, ressalto dois aspectos no modo de criar do Embaraça. O primeiro é a desconstrução da ideia de que toda arte engajada em questões sociais necessariamente deixa em segundo plano aspectos estéticos dos trabalhos que abriga sob essa denominação. Já o segundo diz respeito aos processos de produção em que os corpos estão engendrados: todas as funções da ficha técnica são ocupadas por mulheres.
Glauber Coradesqui