A dramaturgia de Fernando de Carvalho é uma vertente inquieta de sua atuação como artista independente. Seus primeiros textos teatrais, Ovelha Dolly e Zoológico a céu aberto – publicados pela editora Javali em 2020 –, foram escritos durante o período de estudo que passou em Buenos Aires, quando já atuava como ator, diretor, bufão e ativista do movimento de teatro de grupo do Distrito Federal. O modo como Fernando passa a compor com a palavra depois de Buenos Aires nos revela sua crença no potencial do teatro como espaço de debate público e posicionamento político diante dos sistemas de poder. Para o dramaturgo, a política não se restringe ao tema, mas diz também sobre o modo de produzir e desarticular linguagens.
Formado em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília, Fernando é um dos fundadores do Grupo Liquidificador, coletivo à frente da realização da festa de Confraternização do Teatro de Grupo de Brasília. O grupo integra uma geração que se estabeleceu na capital do país durante a primeira década do século XXI, atuando e se desenvolvendo num cenário de políticas culturais operadas por governos de base socialista – o que ressalta o evidente aspecto político de suas criações. Grupos como Teatro do Concreto, S.A.I., Andaime Cia. de Teatro, Sutil Ato, Companhia B., Teatro de Açúcar, Novos Candangos, Grupo Semente, Grupo Tripé investigaram novas práticas para criar dramaturgia, pesquisar atuação, ocupar o espaço urbano e se articular como classe.
No Liquidificador, Fernando colaborou na dramaturgia das obras A cartomante (2010), Janta 2 (2016), Tecnomagia (2017) e Jardim das delícias (2018), verticalizando interesses de pesquisa e produzindo uma cena de caráter indisciplinar que a todo momento se problematiza como linguagem e campo de tensão estético-política. A ideia de uma cena indisciplinar assume aqui duas acepções. A primeira refere-se à recusa de praticar a arte de modo disciplinar, assumindo contaminações entre diferentes práticas artísticas. A segunda refere-se ao flerte com uma certa arte desobediente, a exemplo de Flávio de Carvalho, Leo Bassi, Angelica Lidell, Bia Medeiros, Hugo Rodas e José Celso Martinez Corrêa, com quem trabalha atualmente na transcriação para português do texto Heliogabalo, de Antonin Artaud, a ser lançado pela Editora n-1.
Os textos teatrais de Fernando não têm rubricas nem indicações de encenação. São marcados pelo humor, pela ironia e pela proximidade a temas extremamente atuais que provocam na sociedade debates de cunho ético, ideológico e moral – como clonagem, cibernética, robótica, sistemas de poder, tecnologias de representação, bem como suas reverberações no comportamento e na gestão dos afetos. Em Ovelha Dolly, por exemplo, Fernando recupera o experimento que resultou na primeira clonagem de mamíferos anunciada pela comunidade científica: a ovelha criada por pesquisadores do Instituto Roslin, no Reino Unido, em 1997. O monólogo começa com a crise da própria identidade por ser “irmã gêmea da mãe, mas filha da vontade de cientistas curiosos”.
Escrito em frases curtas que se aproximam de versos dramáticos sem qualquer comprometimento com rima ou métrica, o texto de Fernando de Carvalho joga com o ritmo de fala e o pensamento da personagem, propondo à atriz em cena um instigante exercício sonoro e rítmico com as palavras. É o que também acontece em Zoológico a céu aberto, escrito em frases-versos assim como Ovelha Dolly, mas dividido em duas vozes – Ele e Ela. Suas personagens vivem no fluxo de narrativas articuladas fora de uma linearidade e a cada vez que falam se expõem e expõem o sistema que as oprime, como na irônica e metafórica narrativa que Ela faz sobre os cachorros.
Fernando precisa do teatro para pensar – pensar junto, atualizar a dimensão pública do ato teatral, antropofagizar. Neste sentido, é pertinente ressaltar a “ossatura filosófica” que o artista em teatro Leonardo Shamah reconhece na produção dramatúrgica de Fernando, ao escrever o prefácio da edição dos textos publicados pela Editora Javali. O texto de Fernando tem um desdobramento intelectual de pensamento que o coloca nesse lugar de um filósofo, de um antropófago deste tempo.
Glauber Coradesqui