“Ore ro hecha uka, ore reko, onhembohory ramo jepe” é uma das falas mais ditas por Ava Karai Ka’aguy ygua, o Duadino Martines [nome na língua portuguesa], que significa “Temos orgulho de mostrar nossa cultura, mesmo com todo preconceito que sofremos”. É também trecho de um canto Guarani Kaiowá que aparece em suas peças.
Foi movido por esse desejo de valorizar e compartilhar a cultura Guarani Kaiowá, que Dudu Kaiowá, como é conhecido artisticamente, criou, em 2015, o grupo Pa’i Kuara Rendy com jovens indígenas da Aldeia Guapo’y, na região de Amambai, no sul do Mato Grosso do Sul. O significado do nome do grupo em português é “raio de sol”. E o sol, para a cultura Guarani Kaiowá, é a divindade que representa vida, força. A criação do grupo – que tem atuação nas vertentes da dança, da música e do teatro – veio de um processo de despertamento para a arte depois de assistir a um espetáculo que tratava sobre uma liderança indígena no Encontro Continental do Povo Guarani, dez anos antes, em 2005. E, a partir daí, Dudu iniciou seu percurso no teatro, participando de cursos e descobrindo o exercício da escrita dramatúrgica.
Com formação em Biologia e pós-graduação em Antropologia e História dos Povos Indígenas, desde jovem se envolve em projetos e ações das causas indígenas. Além de dirigir o Pa’i Kuara Rendy, trabalha como professor de ciências e coordenador pedagógico nas escolas indígenas da região onde nasceu, cresceu e vive até hoje.
As temáticas das suas obras versam sobre o modo de ser Guarani Kaiowá. E, mais que isso, são como um retrato cru da realidade indígena atual de Mato Grosso do Sul, que é o segundo estado brasileiro com maior população indígena. Guarani. Kaiowá. Terena. Kadwéu. Kinikinaw. Atikun. Ofaié. Guató. Dentre essas etnias, a predominância no estado é dos povos Guarani e Kaiowá. Desde longa data, como já sabemos, o território é dos povos originários. E o que vemos são os conflitos constantes por terras entre indígenas e fazendeiros, que, muitas vezes, terminam em assassinatos de indígenas. Soma-se a isso o preconceito e o descaso com os direitos e a cultura indígenas ainda existentes.
Diferentemente de espetáculos de grupos e artistas não indígenas, que desenvolvem pesquisas e criações sobre e em defesa das questões indígenas – como o grupo também sul-mato-grossense Teatro Imaginário Maracangalha e seu memorável Tekoha: Ritual de vida e morte do Deus Pequeno (2010), cortejo cênico que conta a luta e assassinato do líder guarani Marçal de Souza –, Dudu retrata, denuncia e reivindica o direito à voz na primeira pessoa, pela perspectiva de quem vive e sente esses acontecimentos.
Na sua primeira dramaturgia, Filhos dessa Terra (2015), traz para a cena a situação da reintegração de posse de terras, um acontecimento recorrente no cotidiano dos Guarani Kaiowá que vivem na região sul-mato-grossense, e em todo o país também. Dentre os personagens, estão indígenas, fazendeiros, oficial de justiça, o governo, a justiça, a ganância. O coro aparece como contorno dos diálogos entre esses personagens, com a indicação de ser um coro de jovens, que são elas e eles mesmas(os), jovens artistas indígenas, reforçando sua identidade, sua voz, seu pedido de respeito. Uma espécie de personagem coletivo que mira como flecha em direção ao público, apontando e reagindo à crueza dos fatos.
É assim, sem rodeios, direto, no ponto, com força, com simplicidade, que Dudu concebe suas dramaturgias. Para além de retratar um contexto fiel à realidade atual, e que ao mesmo tempo remete aos tempos passados, à memória ancestral, suas obras mostram (as)os indígenas desde o seu lugar de fala, permeados por seus sentimentos, anseios e histórias. Sobretudo as inquietações da juventude sobre sua própria identidade em meio ao choque da imposição constante da cultura branca no dia a dia, nos estudos, no trabalho, como aparece em Tape Mbyapeha/Caminhos da Sabedoria (2017) e em Gritaram-me bugra (2019), que tem como referência e ponto de partida o poema “Gritaram-me negra”, de Victoria Santa Cruz, só que numa versão atravessada pela voz da mulher indígena.
Entrelaçada aos percalços das travessias da(o) jovem indígena, ressoa a necessidade de reconhecer a própria cultura por meio da presença de rituais, mitos, canções e brincadeiras da infância, e frases em guarani, que são convocados pelo som e manipulação do mbaraka e da takuara e pela indicação na rubrica do espaço de representação em formato de círculo, assim como se compõe o espaço para os rituais e danças. Uma dessas histórias está em Mito dos gêmeos (2017), o mito dos irmãos Sol e Lua, que foi contada por sua ñamoi [bisavó] Joana Rossate, anciã indígena hoje com 110 anos.
Dudu, junto com o grupo, vem trabalhando com o intuito de, por meio do teatro, trazer luz, reconhecer, valorizar e compartilhar a cultura Guarani Kaiowá, abrindo caminhos e dando voz à juventude indígena, mas não só, a todo povo indígena. Mais ainda, está abrindo caminhos para a dramaturgia indígena na região Centro-Oeste. Do fundo do Mato Grosso do Sul, Dudu representa a força da presença indígena para alcançar os palcos brasileiros.
Carin Louro