ENXAME
Bisi
Entraram em transe, a contra gosto
Asali
Talvez tenham até transado depois daquilo
Ayobami
O tipo de milagre pelo qual eu rezo
Femi
São tão sugestionáveis
Bisi
Não, eles também possuem raízes, como nós
Oni
Estavam em transe
Asali
Estavam possuídos
Femi
Despossuídos de si
Oni
Primeiro gritavam: Bruxas!
Depois caíam no chão, tortos
Asali
Quem anda errado, cai sempre errado, machuca e vive machucado
Femi
Despossuídos de qualquer certeza
Bisi
O que eles mais temem está dentro deles, bem escondido, como uma bomba armada
Ayobami
Agora que nos colocamos como bruxas, alguns nos seguem, no lugar de perseguir
Oni
O medo é uma religião com muitos fiéis
Bisi
Nós armamos esta bomba que eles carregam
Femi
Despossuídos do medo
Ayobami
Espero que esta bomba interior exploda de uma vez
Bisi
Não estamos aqui para destruir
Asali
Tenho a impressão que tiveram o primeiro encontro com o próprio corpo
Bisi
Estamos aqui pelo direito de continuar existindo
Oni
Como bruxas
Bisi
O que é uma bruxa?
Asali
Pareciam bebês descobrindo as próprias mãos
Ayobami
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si
Asali
Como um bebê sugando o próprio dedão
Oni
O que é uma bruxa para eles?
Ayobami
Para eles a terra é plana
Existe mesmo o fim do mundo
Bisi
O que é uma bruxa, na prática?
Ayobami
Não distinguem um macassá de um manjericão!
Femi
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si
Asali
Como um bebê reconhecendo a voz da mãe e do pai
Bisi
Toda e qualquer
Não é uma casta privilegiada
Ayobami
Mas ser bruxa é um privilégio
Todo privilégio envolve muita responsabilidade
Asali
Como um bebê puxando o próprio cabelo
Ayobami
Eles jamais serão bruxas
Femi
Despossuídos do temor ao Divino
Asali
Como um bebê, de pé, pela primeira vez
Femi
Estavam divinizados
Ayobami
Não serão bruxas como nós
Bisi
Não queremos que eles sejam como nós, queremos?
Asali
Dançando pela primeira vez
Movimentando o corpo com música
Bisi
Queremos que despertem
Oni
Toda religião nos coloca para dormir
Femi
Eu sonho com Deus
Ele não é mulher, nem homem
Mas eu o chamo de Deusa
Ayobami
Quero que nos respeitem, que não vejam o nosso conhecimento como uma solução
mágica para os seus problemas materiais, porque eles rezam para o Divino em suas
religiões de fachada e nos procuram para curar doenças, restituir riquezas, atrair o bem
amado... Até quando nos verão neste papel?
Bisi
Nós os acolheremos com toda a sua ignorância
Eles são muitos, mas nós somos muitas mais
Vamos curá-los, aos poucos, com mel, folha e água...
Femi
Curá-los pela escuta
Asali
Como bebês, com os olhos fechados, sorrindo para dentro, dançando, até que eles se
jogavam no chão, como se algo atropelasse aquele momento, como se qualquer
possibilidade de voltar a ser uma criança, de ouvir, ver e falar pela primeira vez fosse
atropelada por quatro pneus de caminhão
Bisi
Estão muito machucados
Ayobami
Nós também! Há séculos, machucadas!
Asali
Sem qualquer possibilidade de tocar a própria pureza
Bisi
Não SOMOS machucadas
Fomos machucadas
Ayobami
Não farei mais o papel de curandeira, não do modo como eles imaginam
Bisi
Não, não mais
Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes
Asali
Acordá-los, acordar
Acordar com todos os músculos, nervos, ossos, sistemas
Acordar com tudo o que somos, temos
Acordar o coração, o pulmão, o estômago
Acordar a testa, o queixo, os lábios
Acordar os cabelos, os pelos
Acordar o púbis, o cóccix, o fêmur
Acordar, como pela primeira vez, dentro de um útero
Ayobami
É preciso respeitar o bate-folha
É preciso respeitar o ofó-palavra
É preciso respeitar a água da moringa
É preciso respeitar o sumo e o sangue
É preciso respeitar a pena e a pemba
É preciso respeitar o ponto riscado, a vela acesa, a esteira no chão
É preciso respeitar a mão que limpa, a mão que cuida, a mão que abre o búzio
É preciso respeitar a si mesma
Bisi
Conhecimento acumulado, não dividido, vira informação
Deixa de ser conhecimento
Ninguém vai roubar o nosso ouro, nem o nosso mel, muito menos a nossa música
Lembre-se: Indicador Indicador, onde está o mel?
Ninguém, além de nós, canta COM o pássaro
Eles podem reproduzir o canto, mas o pássaro nunca virá
Porque eles cantam PARA o pássaro, não sabem cantar COM ele, COMO ele
Você pode enganar alguns, muitos, não a todos, sempre
E ao pássaro ancestral, NUNCA, ninguém o engana
Oni
Toda religião nos coloca para dormir
Eles devem ter tantos pesadelos
Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes
Antes de abraçarem o tempo
Ontem é agora
Hoje é agora
Amanhã é agora
Agora é aqui
Deixe que o tempo lhe abrace
Deixe que o tempo trabalhe em você
Deixe que o tempo aconteça no seu corpo, no seu espírito
Que ele não passe rápido, nem devagar demais por você
Tempo, me abraça
Me abraça, tempo
Oni
Eu tive tantos pesadelos
Também dormi sonhos assim
Antes de voltar para casa
Antes de estar com vocês novamente
O medo é uma religião com muitos fiéis
Eu afirmava verdades do mundo para esconder as minhas incertezas
Até aquele dia, caída na rua
Perdida e sozinha
Longe da colmeia-cidade-mãe
Longe de vocês
Ali, caída na rua
Perdida e sozinha
Voltei para mim, para nós
Troquei o medo pelo amor a tudo
Agora que eu voltei para mim, para nós, não quero que ninguém esteja onde eu estive
Ninguém mais
Nenhum, nenhuma a menos
Eu não quero ser como eles
Ayobami
Oni, sua mão não treme mais
(Fragmento de Ialodês)