Antes mesmo de se dedicar à dramaturgia, a trajetória literária de Cidinha da Silva se projetava pelo seu caráter a um só tempo, abundante e diversificado. Em sua carreira, a autora já havia passeado por distintos gêneros, como a crônica, o conto, o ensaio, a novela e o romance, incluindo obras dedicadas aos universos infantojuvenis. A história da mineira, nascida a 20 de maio de 1967, em Belo Horizonte, é também atravessada pela militância antirracista, vivida especialmente em São Paulo, tendo não apenas coordenado o Programa de Educação do Géledes – Instituto da Mulher Negra –, mas também presidido a instituição. Neste âmbito, como pesquisadora politicamente engajada, Cidinha organizou a publicação de obras fundamentais para se pensar as relações étnico-raciais, o racismo brasileiro e as políticas de ações afirmativas. Desde o primeiro livro, Cada tridente em seu lugar e outras crônicas, lançado em 2006, é possível avistar na literatura de Cidinha da Silva alguns elementos e problemáticas centrais, como a discriminação racial e a desigualdade socioeconômica sofridas pelo povo negro no Brasil; o protagonismo político das mulheres negras frente a uma realidade sexista e racista; a africanidade reinventada pelos diversos sistemas culturais afro-brasileiros; a orixalidade, em sua dimensão cosmogônica e filosófica; além das tensões e alegrias presentes nas relações afetivas, em sua ampla diversidade
A literatura dramática da autora parece sempre nascer, em larga medida, na sala de ensaios, em diálogo vivo com o elenco, seus corpos, demandas e contextos de enunciação. Na estrutura de todas as peças teatrais de Cidinha da Silva, é patente a participação ativa dos coletivos com os quais a autora colabora, de modo que sua dramaturgia incorpora depoimentos, textos e canções desenvolvidos nos processos criativos. Uma dramaturgia polifônica, contaminada pelo jogo cênico e suas diversas vozes. Especialmente nos dois primeiros textos, a palavra é ladeada por imagens, inscrições e projeções no palco, edificando uma intermidialidade por excelência multissensorial.
Em 2013, o seu primeiro texto encenado, Sangoma – Saúde às mulheres negras, foi escrito em parceria com a Capulanas Cia. de Arte Negra. A obra confronta os destrutivos efeitos psicossociais do racismo na vida de mulheres negras, feridas pela dominação de gênero e pela violência racial. A dramaturgia instaura uma atmosfera ritualística que visa reelaborar os traumas e as dores históricas, desestabilizando as barreiras do silenciamento. A configuração ritual reúne elementos textuais, sonoro-visuais e performáticos, que evocam saberes culturais africanos e afro-diaspóricos, conjugando dimensões mitológicas e cotidianas para abordar feridas ao mesmo tempo coletivas e singulares. O público é acionado, interpelado e instado a participar de uma ambiência matizada pelo sagrado, materializando um simbólico e coletivo processo de cura, de restauração da saúde destas mulheres e, por extensão, de toda a comunidade.
A dramaturgia de seu segundo texto encenado foi tecida com a Cia. Os Crespos, também de São Paulo. Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas, estreado em novembro de 2013, traz, uma vez mais, as subjetividades das mulheres negras para o centro do discurso dramatúrgico. A violenta realidade brasileira, estruturada pelo racismo e pelo machismo, as mazelas históricas e o abandono afetivo são encarados pela visão de seis mulheres que, entre relatos, recordações e desabafos, denunciam a brutalidade de um mundo colonial e reconstroem afetivamente suas identidades. O caráter narrativo, elíptico e fragmentário desta dramaturgia articula diversos depoimentos que integraram a pesquisa do espetáculo. A maternidade negra, a hiperssexualização de seus corpos, os relacionamentos interraciais são alguns dos grandes dilemas analisados em cena. Assim como em Sangoma, Cidinha da Silva, ao lado de tantas mulheres negras, nos convida a pensar no significado do amor em vidas simbólica e fisicamente dilaceradas. Uma noção de amor na direção proposta por bell hooks, como uma prática sustentada pela responsabilidade e pelo comprometimento, uma ação transformadora que não se desenvolve sem ética e justiça.
Os coloridos, peça teatral encenada pela primeira vez em 2015, repete a parceria com a Cia. Os Crespos. Dessa vez, a autora lança seu olhar poético para as infâncias, construindo um texto delicado e provocativo, que não apenas desestabiliza imaginários e comportamentos discriminatórios, mas também reflete sobre a beleza presente nas diferentes formas de ser e estar no mundo. O desenho dramatúrgico agrega princípios da fábula, da contação de estórias e das mitologias africanas para construir um agitado encontro entre três araras de distintos matizes (azul, amarela e vermelha), que, divertida e ironicamente, conversam sobre a importância de suas respectivas cores. Entre diálogos e canções, o texto nos possibilita reconhecer o encantamento que existe quando efetivamente respeitamos as multicores que existem no mundo.
A preocupação da escritora para com o público infantojuvenil dialoga com outras iniciativas que almejam, sem o vezo moralista, fortalecer a autoestima de crianças e adolescentes negros, propondo, pedagógica e ludicamente, uma ficcionalização humanizada de povos e culturas africanos e afro-brasileiros. Dramaturgias deste jaez podem ser apontadas nos últimos anos, como O pequeno príncipe preto, de Rodrigo França (RJ); Sarauzinho da Calu, de Cássia Valle (BA), encenado pelo Bando de Teatro Olodum (que já produzira em 2007 Áfricas, espetáculo também voltado para as infâncias); Quando eu morrer vou contar tudo a Deus, de Maria Shu (SP), encenado pelo coletivo O Bonde; O sonho com Oxum, de Caroline Falero (SP); Abena, de Djalma Ramalho (BH), encenado pela Cia. Bando; e Xabisa, de Michelle Sá (BH) e Alexandre de Sena (BH).
A dramaturgia de Cidinha da Silva foi encenada por dois destacados coletivos teatrais (Os Crespos e Capulanas Cia. de Arte Negra), que, na cidade de São Paulo, vêm desafiando as hegemonias no campo cultural, as exclusões e a marginalização das artes cênicas afro-brasileiras. Estes dois grupos, cada qual à sua maneira, há anos investigam linguagens e procedimentos cênicos que posicionam uma perspectiva negro-diaspórica como bases estéticas de seus trabalhos. Portanto, a dramaturgia de Cidinha está no âmago de tensões artístico-políticas, cujas reverberações visam denunciar o racismo e estabelecer bases para outras éticas e estéticas teatrais na contemporaneidade. As suas peças teatrais foram publicadas em 2020 pela Série Editorial Aquilombô de Belo Horizonte.
Guilherme Diniz