TIERRA DY SANTA CRÚS, 22o 55' S 43o 11' O
pele
cor
de
azeitona
escura
Oi, meu filho, tudo bem?
desculpa que não te respondi antes, mas sabe como é, né? É um cansaço...
eu começo a
trabalhar agora às 15h, às 17h hoje.
Então assim, a pergunta...
“ah, eu queria saber ãh, por que eu sempre
dizia que tu era negro”
Porque. Eu sou negra.
E eu, ãh, sei que também, que a descendência do teu pai, também ele,
tem também traços além de negro, ãh indígena, e eu sempre como eu
criei os teus irmãos, né.. o R., embora que o J. seja bastante branco, olha
mas eu dizia tu também tem a descendência
afro e tudo não é.
Mas a intenção mesmo de dizer que, para que, para que com os cuidados
não é? Talvez de querer muito que vocês, ãh, buscassem sempre mais,
principalmente na questão do conhecimento, para que vocês pudessem
ter uma amplitude maior, um entendimento maior sobre as coisas não é, e
que isso fosse algo que fizesse diferença na hora em que vocês pudessem
estar se submetendo a algumas coisas, principalmente nas questões mais
de concorrência com os outros e tudo, e também por essa coisa do
pertencimento
né.
Eu acho que eu demorei muito tempo para encontrar eu como pessoa,
encontrar uma sintonia com a minha ancestralidade, com a questão das
minhas origens porque fui criada numa família afetiva em que me diziam
“não, você não é negra, você é moreninha”
E isso é mentira.
Eu sou NEGRA, entendeu
Eu sou negra.
A minha ancestralidade toda está, vem da África, os teus bisavôs e
tataravôs, ãh, tataravôs no caso né, acredito vêm da África. (...) Então a
gente tem que aprender isso também e abrir essas lacunas.
Mas eu sempre disse pra ti e sempre te alertei, como a questão do R.
também, fosse em sala de aula, ou que fosse numa roda de colegas, ou
que fosse, em qualquer situação, né. Que tu nunca esquecesse.
Porque...
vivemos numa sociedade bastante injusta, uma sociedade onde o olhar é
apenas para as minorias que como, como, como
delinquentes, como criminosos, como os que
fazem tudo errado, como os preguiçosos, os
vagabundos, os isso, os aquilo.
então é importante que a gente saiba as nossas origens, saiba o nosso
pertencimento, porque aí nós tomamos as rédeas da nossa vida. Nós
passamos a descobrir o que nos interessa. (.)
E nos alinhar diante das fronteiras que chegam pra gente, se
alinhar num movimento não de luta constante e de saber que tem um que
ganha e um que perde, mas saber que seja um processo de conhecimento,
que seja um processo que nos leve cada vez mais perto do que realmente
a gente é, e que a gente possa olhar sim,
sou negro,
sim,
tenho minha descendência em África,
e sim estou aqui não porque quis (...)
Minha ancestralidade não foi pro Brasil, não foi pra nenhum outro país
desse mundo porque quis.
Os negros foram sempre arrastados, acorrentados, amarrados, ãh,
maltratados, surrados, ãh, sabe? Violentados, pra qualquer lugar
que fossem, não é? Caçados como bichos, atrelados a ferros, né?
Fazendo coisas monumentais para a grandeza de outros, em função do
poder, não é? Então é importante que o conhecimento nos traga essa
liberdade de saber que se
construímos um Brasil, construímos qualquer outro,
qualquer outro país onde houve a colonização, porque não fala em
colonização
“ah, porque veio aqui o povo tal...”,
os negros nunca são vistos como um povo que veio para ajudar a
construir. Apenas a servir,
como se servir não fosse construir.
Eu espero que tu tenha entendido o que eu quero dizer. E eu sempre
chamei a atenção de vocês, eu acho que eu fui bastante rígida com o R.
também em relação a isso.
Porque ser negro, não ter conhecimento, não ter uma profissão, não
saber quase nada da vida, é deixar-se levar, é entrar na carona dos outros,
é aceitar os que os outros dizem, é levantar a mão para qualquer coisa, é
baixar a cabeça pra qualquer coisa, tá bem? Mas sabendo quem tu
és, sabendo da onde tu vem, tu és forte. Tu adquires algo que é
muito muito muito poderoso, que é a comunicação e o poder com toda a
tua ancestralidade, antes de ti, antes de mim, antes da minha mãe, antes
de outros que vieram antes de mim, tem muita muita gente que veio e
sofreu, e que sofreu.
E hoje cada coisa que fazemos, cada passo que a gente dá, deve ser um
passo pra nos libertar. Mas libertar principalmente o nosso pensamento, as
nossas ideias, pra que a
gente possa enxergar um mundo diferente, onde a gente SIM
tem importância, tem um lugar, mesmo que seja de luta, mas que seja uma
luta em que o conhecimento seja a base de tudo.
Porque fazer voz, fazer eco à voz dos outros, não nos cabe.
Não nos pertence.
Um grande abraço meu filho. Beijinho. Saudades.
(Fragmento de Retilíneo)