Carlos Canarin é dramaturgo, ator e diretor de teatro. Faz parte dos grupos Batalhão Cia. de Teatro e do Coletivo Èmí Wá. É licenciado em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná (UNESPAR) e mestrando em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa intitulada Trilogia da Fuga: memória, utopia e necropolítica de Jhonny Salaberg. Fez parte do Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná em 2019, do Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia do Galpão Cine Horto em 2020 e do Curso EAD de Dramaturgia Negra – Palavra Viva do Instituto Itaú Cultural também em 2020.
Carlos é autor das dramaturgias Retilíneo, Valongo Express, Memórias duma Baobá, Maldito seja Canaã e A fome tropical. Retilíneo, sua primeira dramaturgia, foi publicada pela editora La Lettre, em 2020, na Coletânea Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná 2019.
Antes de indicar as ferramentas que encontramos na dramaturgia escrita por Carlos, é importante também ressaltar o trabalho que o dramaturgo vem desenvolvendo no que tange à orientação de outros dramaturgos, a partir de conceitos que articulam metodologias de organização do conhecimento e de experiências de corpos negros. Conceitos como escrevivência, encruzilhada, oralitura, aquilombamento e outros estão presentes na Gira Dramatúrgica – Núcleo de Pesquisa e Criação em Dramaturgia. Nesse projeto, o autor articula teorias desenvolvidas por autores como Leda Maria Martins, Djamila Ribeiro, Luiz Rufino, Silvio Almeida, entre outros, reforçando uma perspectiva decolonial. Esse projeto deu origem ao seu trabalho de conclusão de curso na graduação, orientado pela pesquisadora Stela Fisher, e ganhou o prêmio Itaú do Festival A Ponte – Cena do Teatro Universitário.
A escrita de Carlos Canarin vai ao encontro de um movimento de valorização e resistência da cultura negra através da dramaturgia. Nos últimos anos houve uma maior visibilidade das narrativas decoloniais que problematizam o imaginário brasileiro sobre a negritude. Carlos foi em busca de diálogo em diversas instâncias, acadêmicas, artísticas e pessoais, para assim compor sua escrita.
Vamos compor um pensamento a partir da própria pesquisa que o autor, também pesquisador acadêmico, vem traçando em seus artigos reflexivos. Alguns pontos que abordaremos são: memória, ancestralidade e oralidade, recorrendo a teóricos que colaboram para a nossa construção.
Para discutir a noção de oralidade na obra de Canarin, recorreremos ao artigo “Performances da Oralitura: corpo, lugar de memória” da professora Leda Maria Martins. Ao fazer uma análise sobre o congado como experiência de construção do saber através do corpo, ela nos indica que a noção oralitura traz não somente a construção de narrativas que resgatam conhecimentos ancestrais através da voz, como também a noção de litura nessas obras. Litura quer dizer rasura, trecho ilegível, absorvendo neste conceito a proposição de um risco, uma reconstrução da narrativa letrada operante no Brasil, imposta através da cultura ocidental branca europeia. Escrever como litura é também propor uma fratura na narrativa hegemônica do conhecimento.
A ideia de ancestralidade é composta por Canarin com a força de retomada das narrativas dos povos africanos. Para além do estigma que diminui o corpo negro, a partir das violências que lhe foram impostas (escravidão, genocídios, preconceitos, sexualização e outros), a retomada de imaginários ancestrais aponta para a vitalidade e força de seu histórico. Porém, para além disso, a retomada traz consigo uma força de presentificação que referencia sankofa, o pássaro que volta o seu bico em direção ao rabo e dessa maneira demonstra a circularidade do tempo.
A proposição de memória parece ser a mais presente na escritura de Carlos Canarin, seja articulando sua própria vivência ou de atrizes e atores que com ele trabalham. Para Leda Maria Martins, a memória é uma forma de construção do saber e, por seu caráter performativo, se renova a cada manifestação. É na repetição que a memória se dá enquanto construção coletiva de saber da experiência. Nesse sentido, resgatamos a noção de escrevivência de Conceição Evaristo.
Em Retilíneo, sua dramaturgia publicada, Canarin deixa evidente a construção a partir de sua vivência. Além de apresentar situações extremamente verossímeis e muito ligadas à realidade, ele apresenta uma fala da sua mãe que, na verdade, é uma transcrição de um áudio de WhatsApp: “Ah, eu queria saber ãh, por que eu sempre dizia que tu era negro. Porque. Eu sou negra”. Além de rastros muito evidentes de uma oralidade pulsante, Retilíneo traz o percurso do próprio autor na investigação sobre sua raça, não somente cavoucando na narrativa de sua ancestral, mas principalmente a partir de suas próprias vivências, as situações em que seu corpo de homem negro foi estigmatizado por sua raça. Ele põe em diálogo a memória do passado com a sua condição no presente.
Ligia Souza