Após um tempo, Suzi levanta, pega as bolinhas e começa a jogar malabares. Kelly entra, senta-se no chão e a observa.
KELLY: Por que você não foi hoje?
Suzi ignora e continua jogando malabares. Nandinho entra e senta ao lado de Kelly.
KELLY (para Suzi): Ele tava olhando escondido, quando você tava arrumando suas coisas. Assim, com o zoião aberto. Parecia até que tava vendo um fantasma! (ri)
Suzi se aproxima de Nandinho e joga malabares para ele, como numa apresentação.
NANDINHO (apontando para o saco): Eu tava só olhando as coisas.
SUZI (tom dramático): Olhando meus objetos mágicos?
Kelly se anima. Após um tempo, Suzi para de jogar e agradece ao público, que é Nandinho. Suzi organiza os objetos no chão novamente.
SUZI (para Nandinho): Bem, já que agora você faz parte dessa casa, vou te apresentar nossos objetos mágicos.
KELLY (confusa): Eu também não conheço.
SUZI: Conhece, Kelly. Só não sabia que eram mágicos.
KELLY (convencendo-se rapidamente): Ah, é verdade.
SUZI: Mas hoje é o grande dia da revelação.
Suzi passa a representar uma personagem e adota atitude tranquila em cada gesto. Faz tudo dramaticamente para as plateias, que são tanto o público do espetáculo como Kelly e Nandinho, em cena. Suzi coloca duas cadeiras no centro do espaço, pega o espelho em cima do pequeno armário e o coloca em cima de uma das cadeiras. Suzi senta na outra cadeira, de frente para o espelho, e passa a pentear os cabelos vagarosamente, deixando-os bem-arrumados. Veste o modesto vestido, admirando suas partes (saia, alças), e anda pela sala de modo mais recatado que de costume. Suzi olha para as plateias, cumprimenta-as, sorri, segura a barra do vestido. Calça as meias e o tênis, com semelhante delicadeza, e guarda o restante dos objetos na mochila. Suzi coloca a mochila nas costas e caminha pela sala, encarando as plateias. Oferece olhar e sorriso serenos, singelos. Após um tempo, Suzi senta, pega um papel na mochila e faz, com ele, um aviãozinho. Brinca com o aviãozinho e caminha, sempre numa atitude performática para suas plateias, quase dançando. Suzi senta novamente, guarda o aviãozinho na mochila e pega umas fotos. Contempla as fotos com carinho, toca-as, coloca-as contra o peito e volta a guardá-las. Suzi levanta e volta a caminhar pela sala. Após um tempo e aos poucos, Suzi faz movimentos de dança que se aproximam do balé. Sempre cautelosos, suaves. Dança. Após um tempo, Suzi se dirige até a parede onde estão presos os vários espelhos. Olha a si mesma e para as plateias através dos espelhos, brinca.
SUZI (para Kelly e Nandinho): Toda revelação vem de um enigma decifrado. Já perceberam?
Kelly e Nandinho estão maravilhados e respondem afirmativamente com a cabeça.
SUZI (olhar misterioso): E hoje é o dia de decifrar dois enigmas. Pode ser?
Kelly e Nandinho não compreendem a pergunta.
SUZI: Prestem atenção! Vocês têm que decifrar dois mistérios hoje, combinado?
KELLY e NANDINHO: Combinado!
SUZI: Caso decifrem o primeiro, saberão qual é o segundo.
Kelly e Nandinho escutam Suzi com atenção.
SUZI: Primeiro enigma: qual mágica os meus objetos são capazes de fazer?
KELLY (levantando a mão): Muito fácil!
NANDINHO (também levantando a mão): Eu também sei.
SUZI: Muito bem. Quando eu falar “já”, os dois vão dizer as respostas juntos e aí eu falo se alguém acertou. (breve pausa) Qual mágica meus objetos são capazes de fazer? Um, dois, três e já!
KELLY e NANDINHO: Fazem crianças fantasmas parecerem crianças de verdade!
SUZI: Muito bem! (batendo e pedindo palmas) Palmas, por favor!
Kelly e Nandinho comemoram.
SUZI: Agora, o segundo enigma. Preparados?
Kelly e Nandinho estão entusiasmados. Suzi volta a se aproximar dos espelhos na parede, aponta-os e torna a olhar para Kelly e Nandinho.
SUZI: Hoje, eu deveria ter ido pra rua com minha mãe. (para Nandinho) Nas quintas-feiras, eu recebo uma proteção especial dos deuses fantasmas e, usando meus objetos mágicos, posso aparecer sob a luz do sol.
KELLY: Bonito isso...
SUZI: Mas, hoje, minha mãe me disse “não” e eu fiquei chateada, já que é na rua que encontro os objetos mágicos. (misteriosa) Agora me dou conta que minha mãe, sábia, me deixou em casa para que eu pudesse ter essa conversa com vocês. (para o alto) Obrigada, deuses fantasmas, pela sabedoria alcançada.
Kelly e Nandinho olham também para o alto, procurando algo.
SUZI (apontando para a parede): Esses espelhos grandes, pequenos, não estão quebrados, como vocês pensam. Eles são partes de um quebra-cabeça. (pausa) Se vocês conseguirem montar o quebra-cabeça, ganham um prêmio.
Kelly e Nandinho reagem euforicamente.
SUZI: Se vocês montarem o quebra-cabeça, a gente deixa de ser fantasma e vai morar numa casa de verdade. (breve pausa) Cada um na sua.
NANDINHO (eufórico com a informação): Se a gente montar o quebra-cabeça, a gente deixa de ser fantasma?
SUZI: Exatamente. E deixa de morar nessa casa fantasma, claro.
KELLY: Eu achei que a gente gostasse de ser fantasma.
SUZI: Nada é pra sempre. Crianças de verdade podem fazer coisas que crianças fantasmas não podem.
NANDINHO: Eu não quero ser uma criança fantasma pra sempre.
KELLY: Sim, meu filho, nem eu.
SUZI: Então, é muito simples: basta montarem o quebra-cabeça!
KELLY (para Suzi): Se foi você que achou as peças, por que você mesma não monta?
SUZI: Porque o meu papel é entregar o enigma a vocês. (apontando os espelhos) Então, se querem deixar de ser fantasmas e ir morar numa casa de verdade, olhem bem pra eles!
NANDINHO: A gente precisa saber o que os espelhos formam.
Silêncio.
SUZI (atrapalhada): Como assim?
NANDINHO: Como assim “como assim”? Quando a gente terminar de montar o quebra-cabeça, qual forma ele vai ter? Um carro? Uma nave? Um...?
SUZI (improvisando): Uma casa, né?
KELLY e NANDINHO (sonhadores): Uma casa...
NANDINHO (indo em direção aos espelhos): Vamos, Kelly!
SUZI: Calma, Nandinho! Primeiro, vocês devem observar os espelhos por uns dias. Eu vou ser avisada pelos deuses fantasmas quando for a hora de montar o quebra-cabeça.
Silêncio. Kelly e Nandinho observam os espelhos na parede.
SUZI: Certo?
Kelly e Nandinho continuam a observar os espelhos na parede, em silêncio.
(Fragmento de Noite com Sol)