QUADRO 2:
ECLODE UMA REBELIÃO DE MULHERES TERRÁQUEAS DANÇANDO
[Márcie e outras mulheres iniciam uma dança que parece festiva, mas é de guerra]
Márcie:
Caríssimo público a nos observar perplexo
Escutem agora o motivo de nosso confronto
Dançar neste espaço também é um gesto
Pela memória dos mortos e desaparecidos
Profundos abismos da Ditadura
É nosso direito restituir
Zarka:
Um fenômeno intrigante
Mulheres desconhecidas em passo consonante
Dançando com ferocidade e delicadeza
Em calçadas, na entrada de prédios, templos, farmácias, delegacias
Obstruindo a passagem das outras, se desviando
Em cima dos bancos e fontes de água em praças públicas
Pra nós, um total mistério
Por isso vamos entrar em seus pensamentos
E narrá-los em primeira mão para as queridas ouvintes
Márcie:
[na Telepatia dos cabelos prateados]
Minha mãe é meu herói
Demorou pra ela ter nome
Até os dez anos de idade eu era sem nome
E desconhecia que outras mães e pais
Tinham nome e sobrenome pessoais
E sempre explicaram objetivamente tudo
Se a polícia chegasse a gente saía correndo
Mas não me foi difícil
Ser criança e feliz
Brincar só pertinho de casa
Pra ninguém me descobrir
Se eu ia um pouco mais longe
Vinha o vento e me soprava de volta
Pra perto do meu pai e dos meus irmãos
O vento era quem me fazia a escolta
Quando minha mãe vinha
Sempre de três em três dias
Em sacolas coloridas trazia
Um monte de pacote enrolado
Que eu jamais poderia encostar
Se acaso eu chegasse perto
Já sentia o vento a soprar
Às vezes outros adultos vinham
As luzes se apagavam
Quando isso acontecia
Alguns ficavam deitados no chão
Esperando a hora de se levantar
As palavras desapareciam nesses dias
Márcie:
[para o público]
Há décadas o governo nos deve explicações
Algumas famílias não têm nem certidão de óbito
Nossa infância foi roubada, e com ela a inocência
Em nenhum momento nós provocamos uma situação
Que justificasse uma violência da qual nós fomos vítimas
A violência de Estado
Essa palavra vítima infelizmente é uma coisa que se repete
Quando a gente vitimiza o ser humano
É quando a gente não deixa que ele se expresse
Esse país se diz uma democracia
Mas as pessoas continuam sendo decepadas
Os desaparecidos continuam desaparecidos
Os arquivos continuam fechados
Nós não sabemos onde nossos familiares foram parar
E queremos e exigimos uma resposta pra isso
Nós queremos enterrar os nossos mortos
É um direito que nós temos como seres humanos
Zarka:
Sinais de interferência
Na vertigem da memória
Curiosos movimentos
De quem dança por fora
E parece lembrar por dentro
(Fragmento de As mulheres dos cabelos prateados)