A dramaturgia de Assis Benevenuto é atravessada pela experiência das diversas funções criativas que o artista exerce no teatro, pela continuidade da interlocução com os integrantes do seu grupo, em especial a parceria de escrita com Marcos Coletta, e pelo intercâmbio com outros coletivos de Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele integra o Quatroloscinco – Teatro do Comum, mas participou de espetáculos de outros grupos, como a Zula Cia. de Teatro e o Espanca!. Como se pode apontar sobre outros dramaturgos da capital mineira, sua produção dramatúrgica encontrou espaços de experimentação criativa em projetos continuados da cidade, como a Janela de Dramaturgia, criada por Vinícius de Souza e Sara Pinheiro. Belo Horizonte possui ainda a Segunda Preta, espaço voltado especialmente à criação de artistas negros, e o longevo Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, realizado pelo Grupo Galpão, que tem um papel de grande relevância na formação e no desenvolvimento de muitos grupos da cidade.
Assis Benevenuto também se dedica a projetos pedagógicos voltados à escrita para o teatro e à tradução de peças para a língua portuguesa. Seu comprometimento com a produção dramatúrgica nacional e com o pensamento sobre a dramaturgia contemporânea se faz ainda mais evidente na criação e coordenação da editora Javali, especializada em teatro, idealizada em parceria com Vinícius de Souza.
Em seus textos, é possível perceber uma dramaturgia que repensa seus procedimentos, apresentando sempre alguma dobra, corte ou comentário sobre a construção da linguagem. Com o Quatroloscinco, Assis Benevenuto e Marcos Coletta escreveram várias peças juntos, eventualmente com participação de seus companheiros de cena Ítalo Laureano, Rejane Farias e Sérgio Andrade, com os quais realizaram diversas turnês e participaram de festivais no Brasil e outros países.
Com Fauna (2016), o grupo participou do Palco Giratório, projeto de circulação do Sesc que proporciona apresentações e intercâmbios com grupos locais em todas as regiões do país. Nesta peça, o grupo se dedica a uma investigação instigada pelo livro O circuito dos afetos, de Vladimir Safatle, e realiza o que chamaram de peça-conversa. O público precisa tirar os sapatos para entrar: uma proposta de desnudamento. Em uma sala multiuso, Assis e Marcos recebem os espectadores descalços em um círculo, distribuem algumas cervejas, puxam conversa. Os sapatos vão fazer parte de um jogo de adivinhar identidades que diz muito sobre o modo como os signos visuais atuam como códigos sociais e imprimem afetos, modos de conhecer que podem ser bastante questionáveis, mas que naturalizamos, sem perceber. A aproximação com o público e a pesquisa com a circulação dos afetos são características desta dramaturgia do grupo, mas que aparecem com destaque em textos que o artista assina sozinho.
Uma questão que parece movimentar algumas das dramaturgias de Assis é a relação entre cena e efeito, entre o que é construído (na vida ou na arte) e a ação que as imagens e narrativas (reais ou fictícias) têm sobre os afetos. Isso aparece de maneira mais evidente em Get Out!, solo criado em 2013, em que o texto e a atuação constroem uma relação de proximidade com o espectador. A fala é endereçada ao público e alguns elementos das convenções teatrais são relatados, mas não executados, como se a dramaturgia se despisse dos protocolos da mediação cênica, dando a ver um desejo de comunicação mais direta entre autor e espectador. A proposta de uma visualidade sucinta contrasta com a proliferação de imagens narradas na descrição da filmagem de um roteiro de ação, com cenas externas e acontecimentos espetaculares. Mas, ao final, o “menor” dos elementos da cena, um adesivo do Snoopy colado num ukulele, é o dado mais significativo e energizado de afetos em toda a visualidade do espetáculo.
Assim, o que parecia não ter “efeito”, pela construção da narrativa em um primeiro momento, se converte em uma materialidade que cria vínculo pelo afeto. De um lado, a grandiosidade do cinema e as expectativas de impacto em larga escala. Do outro, a simplicidade artesanal do teatro, sua capacidade de alcance na medida da estatura humana – e na complexidade das relações humanas. Mas o problema colocado não parece ser a mera dicotomia entre o real e o ficcional, o natural e o construído. O que está em jogo é a experimentação com os modos de narrar, pôr em cena, atuar, enfim, de se relacionar com quem assiste e escuta.
Para uma montagem da Zula Cia. de Teatro, grupo de Belo Horizonte liderado por Talita Braga, que se dedica ao teatro feito a partir de experiências vividas, relatos e acontecimentos reais, o autor fez um trabalho de criação poética a partir da linguagem mesma do depoimento. Em Mamá, de 2015, a escrita se debruça sobre testemunhos reunidos (e criados) para fazer uma elaboração textual polifônica, em que muitas vozes estão presentes ao mesmo tempo, criando e recriando falas sobre a experiência da maternidade. Tais falas, no entanto, se desprendem da pessoalidade de uma experiência partilhada ou das situações ficcionais elaboradas, situando-se em um território liminar entre autoria, imaginação, pesquisa, vivência, endereçamento e escuta.
A investigação da poética do depoimento ganha espaço e verticalidade em Obstinada noite, trabalho apresentado em 2019 na Janela de Dramaturgia, em um formato experimental, anterior à materialização do texto no papel, em que a escritura se mostra corporalizada, visual e sonora. Nesta ocasião, Assis compartilhou com o público uma série de arquivos de áudio, gravados ao longo de oito anos, em diversas cidades brasileiras, na roça de seus avós, em encontros privados e eventos públicos, como as muitas manifestações anteriores às eleições de 2018. Nesta apresentação única, ele fez uma mediação criativa dos arquivos, contextualizando as situações, questionando o hábito mesmo de gravar conversas, comentando a relação tensa com a memória e o desinteresse do Brasil pelas mais de 200 línguas de povos originários faladas no país. Os depoimentos eram traduzidos por uma intérprete de Libras e essa performance, essa escrita do corpo, uma dobra do texto, uma reescritura, é parte inalienável da dramaturgia. A intérprete faz, a seu modo, outra mediação dos arquivos, que não tem efeito apenas para os deficientes auditivos. Para os demais, a performatividade do seu trabalho realça o fato de que a expressão da linguagem, mesmo cotidiana, também é uma espécie de encenação, uma poética, uma construção.
O interesse pelas línguas indígenas, mais especificamente a língua guarani, passou a protagonizar alguns dos projetos mais recentes do artista, que também tem se dedicado à tradução de peças de teatro para a língua portuguesa, como Ñuque – texto mapuche-chileno do grupo Teatro KIMVN, que tem relação direta com a cultura kaiowá, e que foi objeto de estudo da sua dissertação de mestrado. No início de 2020, ele criou o projeto Quase 100 papéis, com o objetivo de se encontrar com cerca de 100 pessoas em condições de conflito com os papéis do poder. Na ocasião, fez uma residência artística em Dourados, cidade do Centro-Oeste do país, frequentando um curso de língua e cultura guarani e guarani kaiowá, visitando territórios kaiowá no Brasil e no Paraguai, participando de celebrações e reuniões políticas. Interrompido pela pandemia, o projeto será retomado em breve, concretizando uma nova etapa na pesquisa de Assis Benevenuto.
Daniele Avila Small