A atuação de Altemar Di Monteiro como dramaturgo é um desdobramento de sua prática contínua como artista-pesquisador da cena junto ao grupo Nóis de Teatro – do qual é um dos fundadores – e em suas investigações pedagógicas e acadêmicas nas instâncias formais de educação superior e pós-graduação – Altemar é doutor em Artes da Cena pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Seu modo de produzir e pensar dramaturgia não está isolado de seu modo de produzir e pensar teatro de grupo, assim como seu modo de produzir e pensar grupo não está isolado de seu modo de produzir e pensar o território.
Fundado em 2002 na Granja Lisboa, um dos cinco bairros que integram o Grande Bom Jardim na denominada periferia de Fortaleza, o Nóis de Teatro faz da própria existência – e resistência –, como coletivo de periferia, seu objeto de interesse artístico. A cena produzida pelo grupo se vincula a uma vertente eminentemente política, na qual o coletivo é tanto um princípio ético e estético quanto um modo de produção e gestão. Em parceria com a Escola Porto Iracema das Artes, realiza desde 2017 o Seminário Periferias Insurgentes, ampliando os espaços de debate e pesquisa sobre a cena cultural das periferias urbanas em Fortaleza assim como sua interlocução com as histórias dos corpos, das cidades, dos territórios e, principalmente, das corporeidades pretas e indígenas do Ceará e do Brasil. O Nóis do Teatro questiona a ideia de periferia restrita à abordagem da geografia e busca entendê-la como campo produtivo de subjetividades, corporeidades e memória.
Em paralelo às atividades do grupo, Altemar Di Monteiro ingressou em 2004 no Curso Superior em Artes Cênicas do Instituto Federal do Ceará, dando início à sua trajetória acadêmica juntamente com outros artistas de sua geração – a exemplo de Silvero Pereira, Gyl Giffoni e Andréia Pires. Cursou posteriormente a Licenciatura em Teatro na Universidade Federal do Ceará, onde também desenvolveu sua pesquisa de mestrado. Em 2018, Altemar publicou pela editora Piseagrama o livro Caminhares Periféricos – Nóis de Teatro e a Potência do Caminhar no Teatro de Rua Contemporâneo, um desdobramento da pesquisa apresentada à universidade.
O vínculo evidente com o teatro de rua, com uma dramaturgia para a rua – e, numa perspectiva mais ampliada, com a discussão em torno dos direitos à cidade – e a presença de aspectos característicos dos processos de natureza colaborativa – como a participação de atrizes/atores-criadoras/criadores e a utilização do improviso como gerador de material cênico – aproximam a prática dramatúrgica de Altemar à sua prática como encenador. Em seus textos, as biografias são sempre expostas em face a seus deslocamentos pela cidade, ressaltando de forma dialética os aspectos macro e micropolíticos da resistência periférica.
A obra Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (2014) é uma peça dividida em três atos – “Primeiro Ato: guia prático para a construção de um oprimido”, e “Segundo Ato: arma de guerra ligada para a autodestruição” – e começa com o nascimento de uma criança negra, Natanael, rejeitado pela mãe e adotado pela parteira. Vemos Natanael crescer em meio a diversos tipos de opressão ao longo da peça, até que aos 18 anos, ele decide entrar para a corporação da Polícia Militar. A escolha de Natanael inverte os papéis vividos por ele na dinâmica política de opressão sistêmica e termina com seu quase inviável julgamento, recurso que evidencia o caráter dialético da dramaturgia de Altemar, também observado em Ainda vivas (2019).
Conforme rubrica no prólogo da peça, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro é uma macumba hightech que conta com elementos da tradição trágica, a exemplo do Coro, e referências visuais do Ocidente sincretizadas com referências da cultura negra, a exemplo da Vênus-Oxum e da Pietà com o filho negro morto no colo. Muita coisa acontece nas rubricas, desde a descrição de ações longas – como a entrada de Yemanjá – até a indicação das músicas – que oscilam entre ritmos da periferia e canções populares brasileiras. Um narrador atravessa toda a dramaturgia, fazendo a ponte com a tradição e atualizando a voz que conhece as emoções em torno do que se passa em cena.
Além de Ainda vivas, em parceria com Pedro Bomba, e No porto do Ceará não se embarcam mais escravos (2020), em parceria com Henrique Gonzaga, compõem a obra dramatúrgica de Altemar Di Monteiro os textos Eu não te amo, Paulo (2020), no qual o autor propõe uma discussão sobre o desejo de amar e o direito ao afeto entre pessoas negras, e Desterro (2021), apresentado em formato on-line durante a pandemia. A originalidade da produção dramatúrgica de Altemar Di Monteiro o inscreve no panorama do teatro negro das duas primeiras décadas do século XXI no Brasil, implicando-o na pesquisa de uma linguagem que se pesquisa e se inventa ao mesmo tempo como estética e gesto político.
Glauber Coradesqui