Desde sua fundação, em setembro de 2016, a Academia Transliterária vem irrigando o panorama artístico de Belo Horizonte com performances, espetáculos, cenas curtas e publicações que não apenas fortalecem as artes e culturas trans, como também explicitam os mecanismos transfóbicos presentes em circuitos, espaços e dinâmicas da arte. O coletivo é majoritariamente composto por artistas travestis e transgêneros dos mais diversificados campos poéticos (teatro, dança, performance, artes visuais, literatura, dentre outros), que, em suas próprias elaborações criativas, produzem emaranhamentos entre linguagens, procedimentos técnicos e epistemológicos. Além de propor experimentações artísticas no que tange aos corpos e às corpas trans, a Academia Transliterária descentraliza, geográfica e esteticamente, as suas criações, pesquisando também processos artístico-culturais periféricos. A iniciativa nasceu quando estudantes da ONG Transvest – projeto social e pedagógico que oferece acolhimento, experiências formativas, doações de alimento e assessoria para incluir a comunidade trans no mercado de trabalho e nas universidades – sentiram a necessidade de constituir um coletivo artístico a fim de elaborar, no plano estético, suas dores, memórias, afetos e demandas. A Academia Transliterária caminha por diferentes eixos, incluindo residências artísticas, no desenvolvimento de saraus, performances individuais e coletivas, concursos literários e ações formativas, especialmente as oficinas de artes cênicas, escrita criativa, fotografia, e a promoção de economia solidária, colaborando de uma forma ou de outra para a sobrevivência de travestis, transgêneros e transsexuais. A iniciativa, artístico-política por excelência, é pioneira em Belo Horizonte e, em suas multifaces, expande, com temas e formas, a conjuntura cênica da capital mineira. A formação atual da Academia é: Rodrigo Carizu (ator e performer), Titi Rivotril (cantora e artista visual), Ed Marte (artivista e performer), Idylla Silmarovi (atriz), Pitty Negreiros (atriz), Jomaka (escritor, produtor e arte-educador), Lui Rodrigues (ator), Fernando Cardoso (artista visual), Fredda Amorim (multiartista e pesquisadora), Eli Nunes (dançarine), Nickary Aycker (atriz e performer), Brisa Alkimin (poeta e performer) e Marta Neves (escritora e artista visual).
Nas performances Transuruba – Uma suruba literária (apresentada no CCBB-BH e no Centro de Referência da Juventude) e Atraque Literário (apresentada pela primeira vez no Fórum Permanente de Artes Negras – Aquilombô), ambas de 2019, há sofisticadas explorações na própria matéria da palavra, em seus aspectos fonéticos e semânticos, provocando, por exemplo, irreverentes neologismos e corruptelas que subvertem estrategicamente significados tradicionais, ao passo que descortinam os instrumentos excludentes da linguagem. Nestes experimentos disruptivos, corpo e poesia são postos como entidades indissociáveis. Nos versos encantados surgem críticas à discriminação e à violência transfóbicas, sagazes ironias para com os artifícios de poder generificados, reflexões sobre a história colonial do país e do mundo, além de mergulhos nas intimidades e nos prazeres dos/das corpos/corpas trans em êxtase. Por terem a estrutura de saraus abertos, o público é sempre convidado a participar, compartilhando composições poéticas, musicais e cênicas em um convívio propositivo e afetivo.
Coroação de Nossa Senhora das Travestis é certamente um de seus trabalhos mais conhecidos. Nesta performance, o coletivo organiza um festivo cortejo adornado coreográfica e musicalmente para, em suma, celebrar vidas trans. A cada apresentação, uma das travestis que integra a Academia é coroada. A travesti-rainha, cuja existência é exaltada, é símbolo reluzente que visa expurgar os rastros da cisnormatividade brutal, assim como abençoa tantas existências trans em constante perigo, anunciando outros futuros. Mais uma vez, o público presente adentra a ação cênica e torna-se parte de um coro plural e que se deseja insubmisso a cerceamentos das inúmeras formas de ser/estar no mundo. A história desta performance, criada em 2018, é marcada por uma grave, tóxica e transfóbica censura que vetou a participação da Academia Transliterária na Virada Cultural de Belo Horizonte em 2019. Corroborando com os setores religiosos e sociais mais conservadores, o prefeito Alexandre Kalil impediu que a Nossa Senhora das Travestis pudesse se apresentar. Em nota, o coletivo afirmou: “Coroação de Nossa Senhora das Travestis: um atraque (ataque?) literário é, portanto, uma celebração da potência que vive em cada travesti [...] Não se trata de religião. Há aqui apenas um aspecto religioso no encontro com todos em volta de nós: a ideia de religar as pessoas, de coração aberto e na alegria.” Em 2020, esta performance foi adaptada para a virtualidade.
Em 2019, o coletivo concebeu o seu Manifesto Academia Transliterária, um experimento dramatúrgico que integrou a programação da mostra Janela de Dramaturgia (BH). O breve texto, como em uma crônica, lança agudos olhares para o cotidiano, as pequenas derrotas diárias, os inconvenientes, os fardos que se repetem, assim como capta sensivelmente os feixes de alegria que despontam entre o cansaço e a tristeza. Ao mesmo tempo, os contornos líricos da dramaturgia trazem reflexões acerca das regras, dos acomodatícios protocolos em uma ordem social cisnormativa. Em sua configuração, o texto se assemelha a um vívido fluxo de consciência que, entre impressões, sensações e memórias, projeta uma bela afirmação de existências dissidentes num mundo binário.
Também em 2019, o espetáculo teatral Atenção!, com dramaturgia de Gabriela Figueiredo (BH) e Jomaka, estreou, tendo em seu elenco integrantes da Academia Transliterária e artistas convidades. Este projeto partiu de entrevistas que a pesquisadora Andréia Resende dos Reis realizou com travestis usuárias do serviço público de saúde. Algumas entrevistadas e seus relatos integraram o espetáculo, cuja concepção se desenvolveu de maneira coletiva, por meio de oficinas em que as participantes puderam colaborar em diversos aspectos da cena. Atrizes e não atrizes compuseram o elenco. Em Atenção! cinco vozes travestis compartilham experiências, pensamentos e sonhos, que, a um só tempo, contestam estereótipos reducionistas acerca de suas vidas, denunciam as violências psicofísicas sofridas e expõem histórias capazes de redimensionar suas existências para além das narrativas/imagens ligadas ao sofrimento ou à dor. A dramaturgia, fundamentalmente híbrida, fragmentada e não linear, justapõe monólogos, esquetes cômicos, tiradas dramáticas, coreografias e performances musicais, em um caleidoscópio poético-existencial que enfatiza a complexidade de suas trajetórias. A discussão sobre corpos/corpas com HIV também atravessa o espetáculo. No final daquele mesmo ano, a Academia lançou a sua coletânea de fotos, desenhos e escritos poéticos.
O último trabalho cênico da Academia, já em 2021, foi rindo-cê-onde?: uma desleitura de Ionesco, cuja dramaturgia foi criada por Jomaka e Marta Neves. A obra O Rinoceronte, do reputado dramaturgo romeno, é desobedientemente relida, a partir do protagonismo criativo e discursivo das poéticas transgêneras. A ironia performática e um apurado jogo intertextual intentam debater as instáveis noções de monstruosidade e humanidade, uma provocação que se aproxima das proposições da artista e curadora Jota Mombaça.
As fabulações artísticas da Academia Transliterária operam, na dramaturgia, um radical encantravamento, como nos ensina a professora Dodi Leal, ou seja, instauram “as indisciplinas transgêneras como episteme fabular”.
Guilherme Diniz