1. CADEIRA DE DIRETORA
Desenho em traços finos uma espiral. Assim dou início ao processo de criação de uma obra poética, seja ela cênica, lúdica ou visual. Gero pensamentos espiralados, corpos moventes entre elementos múltiplos. Parece pensamento enrolado esse de criação, né? E é. O movimento da espiral faz tudo sair do lugar e, a cada volta, novas combinações revelam outras composições e voltas e vácuos e... Tanta coisa começa a surgir na minha cabeça, se espalha por todo o meu corpo, pela casa toda e vai pra rua...
Todo esse movimento não faz porto seguro, faz maresia tumultuante. É tufão. Eu sou tufão e sou barquinho a velejar. Sou paragem, portagem, embarcação. Maquinaria! Máquina de fazer poesia! Aqui, ali, além e aquém do outro, eu encontro comigo, comigos, umbigos, costelas, com elas, com velhas velas do mar. Cenarianas confissões, conficções, confusões....
Tudo na mais serena e mentirosa posição de quem quer apenas assistir a tudo sentada, numa cadeira de tecido “azul in Plêiades”, em seu espaldar reto e estreito, escrito: “Aqui, jazz and blues uma diretora!”. Próxima cena!
2. VASO SANITÁRIO
Eu não resisto e tenho sempre uma cadernetinha aposta no banheiro para a chegança das inspirações. Sentar no vaso sanitário é ação-força altamente criadora! Chego meio sonolenta e devagar vou acordando as camadas do meu corpo. Primeiro eu acordo a camada das sensações. Estou sentindo isso, aquilo, literalmente são varizes se insinuando em minhas coxas, preciso ir ao médico. Ou, pelo menos, comprar uma bisnaga daquele remédio que a minha amiga me ensinou. Tem um cheiro incrível. É ótimo para minhas dores... E péssimo para os pulmões!
Depois, acordo a camada das preocupações. Minha mãe está bem, será?... Ah, minha mãe... E aquela janela? Quem poderá reconstrui-la, mantendo os traços originais? E o IPHAN? Ih, lá vem merda de novo.
Em seguida, acordo o senso de organização, que já é tempo. Você precisa tomar banho mais rápido hoje, porque entra em sala de aula às 9h da manhã e só termina às 11h da noite, significando arrumar uma verdadeira mala de viagem. Não esquecer de uma blusa, material de higiene pessoal, os livros da aula x, os livros da aula y, devolver os desenhos da menina... Hum, tem que pagar o menino pelos livros comprados pela internet... Será que dá tempo de passar no banco? Essa história de biometria acabou com minha folga de pedir a uma amiga que caso fosse ao banco, tirasse um dinheirinho para mim também. Dá até vontade de cortar a mão...Credo! Não dá ideia pra bandido!
Ai, tá bom, menos organização e mais devaneios. Hora de acordar a inspiração, boas ideias e mesmo boas soluções. E que tal se além do desenho do pensamento espiralado da minha pesquisa, eu construísse também um objeto tridimensional desse mesmo pensamento? Gente! Pode ser muito interessante. Vou levar a ideia para nosso grupo de estudos. Só de imaginar fico toda arrepiada, vai ter gente enlouquecendo, pirando! Eles são tão inventivos, que já sei que vou ter que equilibrar as invencionices todas.
Caramba! Toma banho rápido, sua doida! Será que anotei tudo? Milho? Mas eu não me lembro de ter comido milho ontem...
3. POLTRONA
Olhar para as coisas com olhos de reconhecimento.
Eu precisava encontrar alguns bagulhos meus, desaparecidos dos meus olhos já a algum tempo. Esta caixa de guardados é uma confusão! Nela, não se acha nada e se encontra de um tudo! Que surpresa... minha velha poltrona! Se tão usada, ainda mantém o meu corpo manchado em seu colo. Ah, não resisto! Meu corpo lembra de seus abraços... Sento sobre a grande mancha deixada pelo meu suor no tecido velho, nas dobras costuradas que formam o assento-ninho...
Foi um mergulho! Um mergulho para dentro de mim. Eu ainda era jovem e fazia teatro de manhã, de tarde e de noite. Às vezes, noite inteira. Quando eu não estava na rua fazendo teatro, eu estava afundada naquela poltrona. Lá eu dormia, comia e pensava. Na verdade, nos braços daquela poltrona, eu vivia vida-sonho, meu poetar-pensar. Éramos um corpo só. Lá deixei meu suor, minhas lágrimas, meu sangue, meu gozo... Gozo é modo de falar. Me refiro aos gozos do pensar, inventar, devanear... Se essa bichona falasse!
Mas hoje, olhando para esta poltrona, eu vejo... o que você vê? A mim mesma! Olho para ela e vejo a minha própria vulnerabilidade: sensível, frágil, mas sempre tão aberta pro mundo. Vou contar um pouco os nossos segredos, talvez me faça bem, talvez me faça potente...
1998. Um ano extraordinário, porque difícil e inusitado. O ano começou com uma crise grave nas minhas pernas, problemas de circulação. Minhas dores eram tão intensas, que eu não conseguia dormir deitada, as dores ficavam piores. Passei três meses dormindo sentada nessa poltrona. Sentada e apenas cochilando, quando a dor ficava mais branda. Para ajudar na tentativa de conforto, ficava agarrada numa rede estendida sobre mim. Por causa dessa situação, fiz uma cirurgia para redução de gordura, para aliviar o corpo.
Sim, nessa época eu pesava mais de 200 kg.
Alguns meses depois, um novo acontecimento marcou minha simbiose com minha poltrona. Em um momento de pânico, ingeri uma quantidade enorme de comprimidos. Passei um dia infernal, entre ambulância, serviço de pronto atendimento emergencial, lavagem intestinal e uma ressaca moral perturbadora.
Voltei correndo para o colo desse objeto inanimado. Eu amo essa gorda, minha cadeirona, e sei que ela me ama também!
(Fragmento de mEU pOEMA iMUNDO)