Talvez ele não soubesse que estava em cima da cama de um hospital, entubado, morrendo de aids em 1995, meses antes da chegada dos antirretrovirais. Imagine... a posição em que estava... se de pé ou sentado, ou deitado. Mas o cérebro ainda, ainda, mas o cérebro ainda, ainda. Porque o seu primeiro pensamento foi... educado como ele, foi acreditar com os outros desinformados num Deus capital misericordioso... (risos) Foi sua mãe apelar a todas as religiões para que ele se curasse.
Algo havia, algo havia, pois algo aconteceu...
O seu primeiro pensamento foi... que estava a ser castigado porque dava o cu e chupava piroca. Os termos são esses... todo termo é válido quando se pode entender... ainda que esta boca seja considerada imunda por mentes obscuras que mantém suas opiniões guardadas a sete chaves dentro de um cofre podre. Alguns pensamentos passaram pela sua cabeça... estava sendo castigado pelos seus pecados. Alguns pensamentos passaram pela sua cabeça... um atrás do outro... depois esse pensamento se dissipou... quando ele subitamente percebeu... gradualmente percebeu... que ele não estava sofrendo... imaginem... não estava sofrendo. Na verdade, não conseguia se lembrar em sua vida quando é que tinha sofrido menos...
A não ser que estivesse destinado a sofrer... enquanto isso, gays nas ruas de Nova York lutavam para que os malditos laboratórios soltassem uma cura... para sobreviver em um mundo onde ele teria que se esconder por um simples vírus no sangue... pensamento atrasado... pensamento atrasado... mana, ela tem a tia... ora, mas que coisa mais IDIOTAAA!!! Essa é a melhor forma que as pessoas mais cruéis encontram para disseminar suas doenças mentais, suas impurezas espirituais no lodo da ignorância criada por governos que AMAM, AMAM tudo isso.
Fadado a sofrer, tal como já outras vezes da sua vida, quando claramente preparado para ter prazer, ele acabara por não ter prazer nenhum...
Castigo, castigo... vinha de novo da sua mente ainda confusa... por alguma ou outra razão de pecado... sua mente estava colonizada.
Educado como fora a acreditar como os outros desinformados extraviados que aquilo se pegava no ar, nos talheres, nos copos... a vizinha... a vizinha... casada... casada... CASADA... Quando indagada por ele se ela poderia lhe dar um copo de água, pois ele havia perdido a chave de casa, tinha tanto medo de pegar aquilo que após ele beber a água em seu copo o lançou contra a parede e ainda por cima lavou as mãos com água sanitária, em seguida aqueceu as mesmas mãos na boca do fogão (hummmmmmmmmmmmm).
Educada como fora a acreditar com os outros desinformados extraviados a acreditar... num Deus capital... misericordioso (risos).
O seu primeiro pensamento foi... ridículo... talvez não fosse tão ridículo assim... pois, afinal de contas...
Mas a MÁQUINA, mas provavelmente a MÁQUINA, tão desligada, o agrediu nos jornais quando ele assumiu que já estava doente de aids.
Sem ser capaz de reagir, pois já se sentia entorpecido, não conseguia mais emitir aquele som.... A enfermeira mal remunerada do Brasil pegou seu braço magro para recolher seu sangue e em seguida lhe colocar um soro com nutrientes em sua veia, e dizia... Abre e fecha a mão... criatura desprezível… se meu sobrinho morreu em três meses, no estado em que tu te encontras só dura o tempo de uma borboleta.
Ele já não ligava para tanta falta de respeito. Ele silenciava porque no fundo ele tinha uma fé, nele mesmo, inabalável de que em algum momento aquele corpo iria reagir.
Um grito saía de sua cabeça pedindo ajuda. Tudo silencioso.
Sua vizinha... infelizmente havia falecido... ela ficou acamada em casa... os médicos vinham e não podiam acreditar... Ela também estava infectada com o vírus... ela gritava e gritava desesperada... eu peguei em um copo d'água.
Eu tive misericórdia e minha paga foi essa....
Mal sabia ela que seu marido desaparecido há meses a tinha infectado. Sim, minha senhora... seu marido a infectou e pode lhe infectar.
O erro médico foi realizar todos os exames possíveis sem cogitar o agravamento de um HIV, pois ela era uma senhora distinta e casada. Pois que sirva de exemplo... se fosse o primeiro exame, ela estaria a fofocar com as outras vizinhas até hoje... ou quem sabe fosse uma ativista dos direitos dos positivos.
A congregação na época disse que o uso da camisinha era imoral...
Educada como fora, com os outros desinformados extraviados, a acreditar... num Deus capital... misericordioso (risos).
Eu peguei num copo d ́água. Foram suas últimas palavras antes do choque séptico.
De repente ouviu uma voz... e olhava para todos os lados e não via ninguém... de repente percebeu que estava se mexendo... e que aquela voz não podia ser outra a não ser a sua própria voz...
Afinal, sua mãe trabalhava em um ritmo alucinante para pagar o melhor hospital para ele. Nada era de graça.
Era um tempo de extrema consciência. Nada poderia ser gasto com futilidades.
Ele saiu do quarto e as pessoas olhavam fixamente com um ar de incompreensão. Ele que foi praticamente sem voz toda a sua vida... ele sobreviveu ali e dizia... eu quero um copo de água... ele esperaria o tempo que fosse preciso... ali, no meio da multidão que morria de cólera, cólera, CÓLERA.
Ele caiu e de repente sentiu sua boca ser violada por um pano molhado com água. Era a enfermeira dos diabos que estava a se impressionar e a lhe dizer... tu és a bactéria mais resistente que existe aqui entre todas nós.
Na madrugada, ele delirava... era todo aquele fluxo de gente que passava pela porta do quarto... não tinha nenhuma ideia do que estava a dizer...
Mas ele havia conseguido, ou estava quase a conseguir, estava quase a conseguir depois de demorados esforços.
E subitamente se percebeu, gradualmente se percebeu, os lábios a mexer...
Uma guerra silenciosa a matar milhões.
Somos 72 milhões, doutora.
Somos 72 milhões, doutora.
Somos 72 milhões, doutora.
Idosos, crianças, homens, mulheres, negros, brancos, homo, héteros, grávidas e não grávidas. E tantos outros e tantos outros e tantos outros...
sem parar, sem parar, sem parar, a cada 17 segundos chega mais um. mais um...
um
dois
três
quatro
cinco
seis
sete
oito
nove
dez
onze
doze
treze
quatorze
quinze
dezesseis
dezessete
Sejam bem-vindos
O cérebro dele entrou em delírio
(Fragmento de Lázaro)