DONA CELINA: Ninguém vai impedir o meu marido de fornecer nuggets para
ele mesmo. Ninguém. Os pintinhos, meu deus, os pintinhos indo pro triturador
tão jovens! Os pintos não têm culpa de nada. Viram nuggets. Os pintinhos são
trabalhadores como eu, como você, ciscam, ciscam, existem e depois não
existem. Otávio disse que eu não aguentaria olhar o triturador, mas parece que
é tudo muito rápido e então eles talvez nem sintam. A margem de lucros
aumenta, somando dá 10%, mas qual o problema? Uma coisa é supermercado,
outra é acionista de... embutido. Está embutido quer dizer, está implícito. Ele
também tem gastos, não é só lucro não, tem gasto com mão de obra, tem o
décimo terceiro dos pintos. Depois eles morrem e é como uma demissão por
justa causa. Eles são carinhosamente embalados, postos nas caixas ilustradas
e depois são levados pros supermercados e comprados e comidos e depois
assim como galinhas são
MENSTRUADOS.
Menstruados, Maria Juliana.
MARIA JULIANA: Ela abaixa a faca, fraca.
O molho de tomate fervendo.
A carne malpassada, escorrem...
Primeira menstruação de Maria Juliana.
DONA CELINA: Rose instrua a menina. Eu sempre quis ter uma. Mas veio
Homem fazer-o-que
ROSE: Chorou Dona Celina por uma primeira vez em anos.
DONA CELINA: Rímel escorrendo não convence deputado. Diz pra ela Rose,
daqui pra frente tem que se cuidar: pernas fechadas, roupa branca nesses dias
não convém. Comprar absorvente na farmácia. Ela sabe usar?
MARIA JULIANA: No cu. No cu de vocês bando de filho da puta.
ROSE: Maria Juliana minha filha
MARIA JULIANA: Quando a gente se machuca também sangra.
DONA CELINA: Antônio vamos lá pra sala, Antônio? Respira meu filho, se
acalma
MARIA JULIANA: Vem dizer que virei mocinha. Ah agora sim, finalmente
sangrou. Sangrou de nascer; de nascer já sangra. Mãe e filho. Dona Celina é
vaca de cativeiro que pariu sem sangrar? É hormônio fabricado, é um nuggets?
Como é que gerou essa bosta desse menino? Não foi trepando? Me diz? Não
foi trepando?
DONA CELINA: Rose o que que ela está dizendo?
ROSE: Dona Celina a senhora me desculpa pelo amor de deus. A senhora me
perdoa. Nunca vi essa menina assim. Vai dar 40 de febre. São os hormônios.
Vou recolher a menina pra cama. A senhora desculpa.
DONA CELINA: Filho vamos lá pra sala?
ANTONIO PEDRO: Eu quero ficar aqui com a Rose...
DONA CELINA: Fica onde você quiser, só parem de gritar. Eu vou receber os
pintos lá na sala.
ROSE: Maria Juliana, por Deus minha filha, o que é que te deu?
MARIA JULIANA: A senhora nunca me deu valor. Quem é que carrega as
compras do mercado até aqui, daqui até em casa, de casa até escola? É
Toninho, por acaso?
ROSE: Silêncio de Rose
MARIA JULIANA: Não é. Mas Toninho... Ah Toninho é como um filho. Se Maria
Juliana tem dor de barriga, se Maria Juliana tem dor de cabeça, é frescura de
Maria Juliana. E filha minha não pode ter frescura. Ah, mas experimenta perder
a hora da nebulização de Toninho? Experimenta Toninho numa tosse um pouco
mais aguda? Já dispara o coração de Rose.
ROSE: Eu tenho obrigações com meu emprego.
MARIA JULIANA: Só pode ser, pra você me deixar ano e mais ano presa
nesse quartinho sem ar o dia todo, todo final de semana. O emprego em
primeiro lugar. O ar falta é pra mim, não pra Antônio Pedro.
ROSE: Tem coisa que você não entende.
MARIA JULIANA: O que é que eu não entendo?
ROSE: Meu outro patrão, ex-marido de Dona Celina. Bastava ela sair. Achava
que era meu dono. E você Maria, você virando moça, chama até atenção. Eu
tenho medo, minha filha. Medo. Esse homem que ela arrumou agora olha até
estranho pra tudo.
MARIA JULIANA: Maria Juliana chora.
Maria Juliana sangra um sem fim.
Abriu a tampa da panela que vinha fechada
Desde quando ela nasceu.
(Fragmento de Rose)